Nova onda progressista na América Latina traz ao mundo um grito de esperança

Protestos no Chile, em 2019, culminaram no processo da nova Constituição e na eleição de Gabriel Boric em 2022 | Foto: Carlos Vera M - Coletivo +2

29 Setembro 2022

 

O ex-vice presidente socialista boliviano Álvaro Garcia Linera conversou com Guilherme Boulos, líder do MTST e candidato a deputado federal, sobre como reverter o processo golpista e derrotar a extrema direita, enquanto se enfrenta os desafios da crise climática e os horizontes de luta que se abrem com a nova onda progressista latino-americana em um mundo cada dia mais conflagrado.

 

A entrevista é conduzida por Rafael Valim e publicada por Jacobin Brasil, 27-09-2022. 

 

Álvaro García Linera, o militante socialista e pensador marxista que serviu como vice-presidente da Bolívia entre 2006-2019, esteve no Brasil há poucos meses para participar da abertura do Salão do Livro Político, em São Paulo, onde também lançava no Brasil o seu novo livro Qual horizonte: hegemonia, estado e revolução democrática (Autonomia Literária, 2022) – um diálogo com o pensador político espanhol Íñigo Errejón sobre os desafios das lutas sociais na América Latina e Europa.

 

Pouco antes da sua fala, García Linera conversou com o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), e pré-candidato a deputado federal, Guilherme Boulos em uma entrevista conduzida pelo jurista Rafael Valim. No diálogo, García Linera e Boulos debateram sobre o primeiro ciclo de governos progressistas na América Latina, seus avanços e interrogações, além da nova onda que já é uma realidade eleitoral no continente e, como não poderia ser diferente, traz inúmeras outras questões.

 

Em um momento no qual testemunhamos uma inédita vitória da esquerda na Colômbia, a reversão do golpe na Bolívia e Lula com grandes chances de derrotar Bolsonaro nas urnas no primeiro turno, o papel histórico dos “de baixo” na América Latina vem interpelando o mundo inteiro.

 

Seria a América Latina o lugar em que a chama da esperança de toda humanidade repousa, protegida, em tempos de um vendaval apocalíptico – onde peste, fome e guerra se sucedem? É esse assombro sobre o tempo presente, mas acompanhado por boas notícias que nossa sofrida, porém resistente, Pátria Grande insiste em produzir em torno do qual gira o diálogo de alto nível entre García Linera e Boulos, dois dos maiores expoentes da esquerda no continente latino-americano.

 

Álvaro Garcia Linera foi vice-presidente da Bolívia.

 

Guilherme Boulos é professor, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e foi candidato à presidência nas eleições de 2018 pelo PSOL.

 

Rafael Valim é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, onde lecionou de 2015 a 2018, atualmente é professor visitante na University of Manchester (Inglaterra), na Université Le Havre Normandie (França), na Universidad Panamericana (México) e na Universidad de Comahue (Argentina). Diretor Cultural do IREE.

 

Eis a entrevista. 

 

Rafael Valim - Já é possível vislumbrar a identidade dessa segunda onda progressista? Se sim, no que ela se diferenciaria da primeira onda progressista latino-americana?

 

Álvaro Garcia Linera - É uma pergunta complicada porque estamos em plena onda e é difícil vê-la com distanciamento. Quando vemos o primeiro grande momento do progressismo latino-americano e comparamos com esse segundo, pode estabelecer diferenças que não o tornam melhor ou pior, apenas diferentes.

 

O comum é que sejam forças progressistas de esquerda que estão pensando na justiça social, na distribuição da riqueza e no papel do Estado como promotor de desenvolvimento. Isso é o comum. A diferença é que hoje o progressismo é mais moderado por vários motivos.

 

Primeiro, há setores de direita mais radicais, que colocam barreiras. Nos anos 2000, a direita se encontrava derrotada moralmente, o que é o pior tipo de derrota. Hoje não: a direita está organizada e enfurecida e isso limita o progressismo.

 

 

A segunda coisa é que parte das reformas feitas na primeira onda já foram cumpridas. Tiramos 70 milhões de pessoas da pobreza na América Latina nesse período. Agora, ainda não está claro quais são as novas grandes reformas. Particularmente, a grande dívida dessa segunda onda progressista é não apenas redistribuir riqueza — algo que deve ser feito para acabar com tanta injustiça —, mas também um sistema produtivo que dê a redistribuição da riqueza, fôlego e sustentabilidade.

 

A terceira coisa é que durante a primeira onda, éramos um projeto disruptivo. Colocávamos de lado o cenário eleitoral tradicional. Já hoje, o progressismo é parte estável do sistema político. E talvez passemos de um sistema bipartidário entre direitas das décadas de 80 e 90, a um bipartidarismo de extrema direita e esquerda. Mas o progressismo já é parte do sistema político novo. Isso também modera suas possibilidades.

 

Guilherme Boulos - Concordo com o diagnóstico que faz o Álvaro, mas vou para outro lado, que é o das perspectivas neste ciclo ainda embrionário e em construção.

 

Para falar de uma dessas perspectivas e para que esse ciclo tenha sucesso, é preciso entender como entre o primeiro e o segundo ciclo progressista da América Latina, nós tivemos uma ascensão da extrema direita mundial. A extrema direita ascende de um lado como reação aos avanços sociais, mobilizando ódios, preconceitos, ressentimentos, racismos diante a um avanço popular, e por outro lado também explora as brechas do nosso primeiro ciclo. Isso tem a ver também com um limite da democratização.

 

 

A extrema direita no Brasil conseguiu crescer do ressentimento contra política, diferentemente da América do Norte e Europa, onde ela emergiu da disseminação da ideia de converter o imigrante em inimigo. Aqui, Bolsonaro é um exemplo vivo disso, ele encontrou um campo fértil na triste representação, porque nossa democracia também falhou.

 

Isso coloca um desafio para que o novo ciclo progressista aprofunde a democracia. É claro que falo da perspectiva brasileira e sei que o Brasil tem uma enorme dificuldade em se encontrar como parte da América Latina. Ao contrário dos avanços feitos na Bolívia, com sua Nova Constituição, aqui o poder continuou muito concentrado nas estruturas arcaicas e oligárquicas, tivemos muita dificuldade em construir uma democracia participativa. A Constituição de 1988 prometeu a democratização dos direitos, mas não entregou sua promessa, o que contribuiu para essa insatisfação.

 

Um segundo ponto é o modelo de desenvolvimento. Nosso primeiro ciclo se alçou com base em uma economia primário-exportadora. Precisamos repensar isso para nosso próximo ciclo. É evidente que não controlamos o mercado mundial, somos produtores de commodities e não se pode acabar com o agronegócio brasileiro, ou o comércio do gás boliviano ou do petróleo venezuelano. Mas precisamos também pensar em um modelo de desenvolvimento mais sustentável a longo prazo. Um modelo que nos coloque na vanguarda, pois temos no Brasil potencial territorial e estratégico para estarmos na vanguarda energética, com uma transição de modais de transporte e uma economia com reduções de emissões de carbono, ainda que do ponto de vista agrícola.

 

Já uma terceira e última questão diz respeito a uma diferença temporal. Mesmo que o segundo ciclo progressista quisesse repetir ações do primeiro, não conseguiria. A América Latina de hoje não é a mesma de vinte anos atrás.

 

Se por um lado é verdade o que diz o Álvaro, que este ciclo nasce mais moderado por ter um adversário mais forte, por outro lado, este momento também nos exige graus maiores de radicalidade.

 

Qual foi o arranjo que o Lula fez de maneira muito hábil em 2002: ele percebeu haver correlações de forças e apoio, mas é preciso fazer acordos e pactos. Então Lula construiu a margem de manobra para fazer políticas sociais de combate à pobreza, de ampliação do mercado de consumo interno e não enfrentou temas profundos ligados ao conflito distributivo.

 

O próprio Lula diz que a maior vitória de seu governo foi colocar o pobre no orçamento, e foi, só que hoje estamos com um país devastado, um continente machucado pela pandemia e crise econômica. Temos uma nova alta do preço das commodities que não sabemos quanto tempo durará, mas a margem de manobra para se fazer políticas sociais e avançar em direitos hoje, sem enfrentar o conflito distributivo, é menor do que vinte anos atrás.

 

Precisamos enfrentar mais, e nesse sentido ser mais ofensivo em certas agendas do que fomos, e ao mesmo tempo, as condições hoje são também de adversários mais fortes. No meu ponto de vista, esse é o maior dilema que a segunda onda progressista irá enfrentar nos próximos anos.

 

 

Álvaro Garcia Linera - Guilherme falou de dois elementos que me parecem chaves. Todo o processo de ampliação de direitos, ou de distribuição de riqueza, inevitavelmente, vai gerar, cedo ou tarde, algum tipo de reação anti-igualitária. Porque pode haver setores, não necessariamente as grandes elites, mas setores médios altos, que vão aderir a uma paixão pela desigualdade.

 

Na Bolívia, por exemplo, durante décadas, o acesso a cargos públicos, cargos de governo e ministérios, de prefeituras, eram monopolizados por setores médios, falantes de castelhano, brancos, com formação acadêmica universitária e família tradicional. A chegada de Evo significou que os de baixo podiam subir na vida – a maioria indígena no caso da Bolívia, mas também pode ser de operários de fábrica ou de afrodescendentes em outros lugares.

 

 

Os de baixo entraram nas universidades, se tornaram autoridades, viraram chanceleres, presidentes. Sua identidade indígena popular os permitiu conseguir contratações para construir escolas, hospitais e mais justiça. Mas os setores médios tradicionais veem isso como perda de privilégios: a ascensão de indígenas ou de operários, ou de mulheres que se empoderam, fazendo que esses setores tradicionais sintam que sua segurança entrou em crise – crise de poder do homem tradicional, o patriarca da casa; crise das famílias que tinham acesso aos poderes públicos por privilégios. Esses setores se protegem e, a partir daí, há uma tendência à direita nos setores médios.

 

Ou seja, todo processo de igualdade social gera uma rejeição à igualdade. E o progressismo tem que entender para neutralizar essa tendência à direita. No mundo e na América Latina, há hoje uma politização de direita da classe média alta, e isso é complicado. Por causa dos processos de justiça social, não se deve retroceder nesses processos, mas fazer políticas de mobilidade social também nesse setor. Porque aí está a base da extrema direita. É preciso alcançá-los também, com políticas públicas, não se esquecer deles.

 

E o segundo dado mencionado por Guilherme é que a pandemia modificou a estrutura mundial, definitivamente. Em tempos neoliberais, a economia crescia algo como 1% a 2% na América Latina. Com o progressismo, cresceu na faixa de 2% a 4%. A partir de 2015, voltamos aos 1%. E com a pandemia, menos do que isso. Algo precisa ser feito.

 

Para o progressismo, não estava em nossos cálculos esta pandemia e essa crise planetária que fez o PIB mundial cair, que fechou mercados, que gerou mais pobreza, e mais demandas. Então, como remontar essa crise, que não é apenas latino-americana e sim mundial, e como estabelecer um novo período de crescimento de 2% a 4%? Tomara! Melhor se 6% ou 8%, mas, no mínimo, de 2% a 4%, porque quando o crescimento for menor que 2%, ele está crescendo a uma velocidade menor do que o crescimento populacional, e é assim que se gera pobreza. Nosso grande desafio é um crescimento além de 2% e isso vai possibilitar políticas redistributivas.

 

Então, a pandemia e a crise econômica geraram um novo cenário para o qual não estávamos preparados, mas o progressismo tem que ter uma proposta para se recuperar da pandemia, da guerra entre Ucrânia e Rússia, que está obrigando países do norte a se isolarem, estabelecendo cadeias locais, colocar barreiras comerciais. Disputas entre Rússia e os Estados Unidos, Europa contra a Rússia, com cada um deles começando a se isolar. E a América Latina precisa ter a capacidade de propor um mecanismo que não seja esmagado por essa fragmentação em escala global, mas que encontre, na nossa região, opções de um crescimento sustentável a longo prazo.

 

 

Rafael Valim - A primeira onda progressista se encerrou com diversas rupturas institucionais, seja por meio de golpes de Estado clássicos ou com lawfare, algo que se nota no Brasil, Bolívia e outras partes. Também se verifica a consolidação de uma extrema direita, algo que não estava bem desenhado vinte anos atrás. Como fortalecer a democracia no atual cenário, visto que tivemos uma prova da fragilidade da democracia latino-americana?

 

Álvaro Garcia Linera  - Acho que a grande contribuição do progressismo latino-americano, preciso insistir nisso, é que a esquerda chegou ao governo por meio de eleições. Essa é nossa bandeira, nossa conquista é nossa contribuição. Houve tempos em que a esquerda, legitimamente, buscou outras vias de acesso ao governo e falhou. Mas, em tempos de ditadura, era legítimo lutar por outras vias porque não havia opções democráticas. Mas, na democracia, a esquerda chega ao poder pelo voto.

 

Na verdade, a democracia é um estorvo para os setores mais conservadores. A Bolívia é um exemplo, mas Donald Trump é outro: ele mandou seus apoiadores ao Congresso dos Estados Unidos para impedir a consagração do voto. E na Bolívia, esses setores recorrem aos policiais e aos militares. Diante disso, a esquerda tem que se renovar e se reafirmar. Há mudanças políticas que só são feitas pelo voto, porque o voto também já é um senso comum popular. O voto é um patrimônio popular. É preciso garantir e defender o voto. A única maneira de mudar governos num sistema democrático é pelo voto, não com artimanhas jurídicas, não é com assalto policial nem militar. É preciso defender essa conquista e reforçá-la.

 

 

A democracia vem, associada ao progressismo, com a igualdade. A democracia também tem que entrar no bolso. Também tem que ser traduzida em que minha filha pode comer três vezes ao dia. Minha filha pode ir ao colégio e à universidade pública. A democracia também é isso. É o direito de exercer a liberdade de escolha pelo voto e é o direito de comer decentemente, de que meus filhos possam estudar num colégio público, que meu filho possa ser profissional se for capaz e competente. Então, a democracia não é apenas a participação democrático-liberal mas também justiça social e igualdade. Essas são construções fundamentais da esquerda latino-americana. Devemos nos orgulhar dessas contribuições e olhar para o resto do mundo com essa ótica.

 

Podemos fortalecer a democracia agarrando-nos sempre ao voto, sem permitir que ninguém chegue ao governo a não ser pelo voto popular e com cada vez mais justiça social, cada vez mais igualdade. A democracia como bem-estar das famílias mais pobres, mais humildes, de todos, mas em particular, dos mais humildes.

 

Guilherme Boulos - Concordando com Álvaro, eu agregaria dois pontos.

 

As nossas formas de democracia representativas precisam ser defendidas a ferro e fogo e, aliás, elas foram conquistadas a ferro e fogo. Às vezes subestimamos um pouco nossas liberdades democráticas, o direito ao voto, a organização política e partidária, a liberdade de expressão, de imprensa, mas elas custaram mortes de uma geração antes da minha que foi torturada e perseguida.

 

 

Temos, portanto, o dever histórico de resguardar essas liberdades, mas também precisamos acrescentar a democracia participativa à democracia representativa. Ampliar nossos mecanismos de participação popular, para que as pessoas se sintam mais participantes do processo político como um todo. Porque, se a democracia é apenas ir votar a cada quatro para dizer se um eleitor gostou ou não, ela acaba sendo um cheque em branco.

 

A democracia precisa envolver mecanismos de participação no orçamento, nas formas de deliberação, em conselhos e plebiscitos. A Bolívia, quando Álvaro e Evo estavam no governo, foi um exemplo disso. Tive a oportunidade de estar em La Paz quando estava acontecendo o debate de aprovação da nova Constituição. Houve uma cena que me marcou: a praça principal de La Paz, São Francisco, e de repente havia um grupo de pessoas reunidas. Eram pessoas lendo os artigos da Constituição e debatendo sobre eles em praça pública. As pessoas incorporaram o processo político para elas. Isso é muito importante para que as pessoas compreendam que fazem parte da democracia, e entenderem que quando há um ataque à democracia, é um ataque a elas também, não um ataque a uma formalidade política.

 

Uma segunda questão que vimos também na ascensão da extrema direita — com Bolsonaro, Trump, o Brexit no Reino Unido e etc. — é que a democracia não pode ser sequestrada por grandes corporações de Big Data. Precisamos de marcos regulatórios, assim como tivemos o Marco Civil da Internet (MCI), para os dados. Isso não pode ficar na mão dos donos das grandes empresas de tecnologia.

 

Assim, temos de impedir a possibilidade de acontecer fatos como os que ocorreram no Brasil nas eleições de 2018, quando um empresário bolsonarista comprava por oito milhões disparos de WhatsApp para 100 milhões de pessoas, influenciando o processo eleitoral. Precisamos estar mais atentos às formas de manipulação da opinião pública, e isso precisa ser feito por marcos regulatórios – como o projeto de Lei das Fake News.

 

Rafael Valim - Estou diante de dois grandes conhecedores dos movimentos sociais. Quais são hoje os desafios da mobilização social e em que medida, as chamadas lutas identitárias, interferem no processo de mobilização social?

 

Álvaro Garcia Linera  - Não existe melhor pedagogia política do que a mobilização social para que um governante se anime a dar passos de maior justiça social. É uma regra. Quanto menos movimento social, mais moderação. Quanto mais movimento social, mais radicalização. As coisas são assim.

 

Na Bolívia, conseguimos nacionalizar e mudar as estruturas raciais do poder, tornando-as mais indígenas. Conseguimos superar o trilema do crescimento, distribuição e equidade, que parecem nunca coincidir, e conseguimos fazer todos com ação coletiva. A possibilidade de que o novo progressismo dê passos mais audazes vai depender das pessoas. É preciso governabilidade no parlamento, é preciso fazer acordos, somar forças, enfim. Mas também é necessário ter governabilidade na sociedade. Há duas fontes de governabilidade: a parlamentar e a social. Foi assim que surgiu o progressismo. O progressismo não é mais um partido do sistema, é uma expressão de participação, de esperança coletiva.

 

 

E a segunda coisa do movimento social: sua constante politização. Preocupa-me que hoje estejamos assistindo, após quinze anos dessa onda progressista, uma politização das classes médias, mas conservadora e muito reacionária, e uma despolitização do social. Isso é complicado porque quando uma pessoa se diz de esquerda é algo místico, um objetivo, os pobres, os humildes, o país, a justiça social, uma missão de vida. Não uma ambição pessoal. Isso é chave para a esquerda, porque a esquerda não é composta por ricos. Não tem dinheiro para pagar redes, não tem bancos para contratar. Não, somos pessoas que andam a pé, de ônibus, de metrô. Dependemos do nosso trabalho. Onde está nossa força? Nas nossas convicções.

 

As forças de nossos opositores são a força do capital, e essa força quase sempre ganha. Mas em momentos excepcionais, a convicção ganha. É quando surge o progressismo. Se não há convicção das pessoas de baixo, dos dirigentes políticos, o progressismo perde força. Por isso é importante a permanente politização da organização social nos bairros, nas universidades, nas fábricas, no campo, de ver a vida, a luta social, o envolvimento com a política por querer o melhor do país e do bem-estar das pessoas. Não é porque se quer um carro, um cargo ou escritório.

 

A primeira onda se baseou nisso, e em seguida, começou a perder força. Esta segunda onda tem que vir com uma nova politização das organizações sociais desde baixo, da base, dos indigentes e de seus representantes políticos. Então se constrói novamente uma cultura de metas coletivas, de sacrifícios e objetivos coletivos, que é o que move a esperança das pessoas. Digo que esses são dois elementos importantes na nova conjuntura de ação política e movimento social.

 

 

Guilherme Boulos - Parece-me perfeito o diagnóstico feito por Álvaro. Ao mesmo tempo que vemos uma politização dos setores médios à direita, também passamos por uma despolitização dos setores populares e isso é dramático. Acredito que isso inclusive nos ajuda a entender os avanços dos setores das igrejas neopentecostais nas periferias latino-americanas.

 

Vejo tanto um sintoma de que a cultura progressista perdeu espaço nos setores populares, em parte porque ela se institucionalizou demais e em parte por ela ter deixado de ser uma cultura militante, perdendo suas redes de sociabilidade. A quem as pessoas podem recorrer em uma comunidade, um bairro, uma periferia para resolver seus problemas? As igrejas neopentecostais ocuparam um espaço que a esquerda deixou de ocupar e não há espaço vazio. Elas criaram redes de sociabilidade, inclusive, muito relevantes, até mesmo de solidariedade e apoio mútuo. É impressionante os vínculos territoriais que elas criaram. E, muitas vezes, lideradas por figuras ideológicas conservadoras de extrema direita.

 

 

A América Latina do século XXI tem uma tradição muito potente de movimentos territoriais. Ou seja, o sindicalismo perdeu força em nosso continente, e também perdeu força como expressão de uma desorganização neoliberal no mundo do trabalho, onde as identidades coletivas das pessoas são mais difíceis de serem estabelecidas pelas relações de trabalho estável e formal – então ela se estabelece na comunidade e no território.

 

Na Bolívia, tive a oportunidade de conhecer e fiquei encantado com a organização local, assim como na Argentina com os piqueteiros, aqui no Brasil com o movimento sem-teto. Redes de unidade e solidarização devem ser potencializadas. Esse é o papel territorial do movimento social. Quando a esquerda está no poder, precisa ver isso como um ponto de estímulo, não uma ameaça. As pressões do capital — das elites e oligarquias políticas — em um governo progressista são horríveis. Precisamos ter uma contracultura popular para avançarmos em nossas agendas e pautas. Acredito que este seja o papel do movimento social latino-americano, e que se construiu com muita força a partir dos territórios.

 

Uma frase, óbvio que ela é hiperbólica, de um dos movimentos piqueteiros argentinos me chamou a atenção. O lema deles era “a nova fábrica é o bairro“, com isso dizendo que ali, também estavam construindo um espaço de organização coletiva, identidade de classe e lutas importantes. Precisamos valorizar mais isso.

 

Tenho até algumas ressalvas de colocarmos “identitários” nesses termos. Acho que são movimentos que se organizaram e ganharam muita força, cada vez mais em lutas contra opressões históricas e são opressões transversais a questão da classe. Pautas raciais, de gênero, pautas de diversidade sexual, de identidade de gênero.

 

Acho que há, às vezes, um conflito entre nós que viemos de uma esquerda mais focada nas lutas de identidade de classe com novos movimentos, com muita potência. E primeiro, precisamos compreender que muitos desses movimentos não são de minorias. O movimento negro no Brasil é um movimento de maioria, a maior parte da população brasileira é negra. O movimento feminista é também um movimento de maioria, a maior parte da população também é feminina. Isso deve nos dar uma dimensão de incorporar transversalmente esses movimentos em nossas agendas e pautas. Se não o fizermos, cria-se um sectarismo que se retroalimenta, de ambos os lados. De um lado com uma esquerda com foco na pauta da desigualdade, tratando tais lutas como lutas menores. Do outro, um conjunto de movimentos muito legítimos, fortes e potentes, se sentindo não reconhecidos nessa luta da esquerda e dizendo “é nós por nós mesmos”.

 

Assim, criamos uma dificuldade de integração que é o pior caminho, e por vezes, se tangencia esse tipo de saída. O melhor jeito é construir uma forma de integração e diálogo nesses tipos de movimentos, reconhecendo sua legitimidade, autenticidade, expressão e buscando pautas transversais e não uma luta pontual que às vezes é uma luta ambígua no campo da esquerda.

 

Rafael Valim - Vocês dois falam muito de esperança. Como o despertar e conduzir as esperanças em um mundo de profunda desesperança?

 

Álvaro Garcia Linera - A desesperança é o espírito do tempo. Por quê? Porque os grandes relatos, as grandes ideias fortes e dominantes que guiaram a vida da humanidade durante 40 anos, começaram a perder força – ainda durarão um bom tempo, mas com menos força. Desde a década de 1980, livre mercado, privatização, Estado mínimo, globalização e empreendedorismo eram ideias fortes que articulavam o imaginário das pessoas, tanto das classes altas, quanto das médias e baixas.

 

Isso começou a perder força na América Latina na primeira onda. Há rachaduras, crises, frustração e o progressismo emerge. Isso que aconteceu no continente agora se reproduz em todo o mundo. Falavam do livre mercado e vem Joe Biden com um decreto e tira da globalização 20% do território terrestre e 15% da humanidade, com apenas uma ordem. Os russos não podem mais estar nos circuitos financeiros, não podem vender seu carvão, nem o petróleo, não podem mais usar o dinheiro que tinham em bancos europeus. É uma loucura. Mas para os europeus, os estadunidenses são vistos como valentes e poderosos.

 

Antes nos diziam que a globalização e o livre mercado eram questões naturais, e agora querem desglobalizar com apenas um decreto. Vimos, na pandemia, franceses e alemães brigando por respiradores, e agora dizem que os chineses não podem entrar em nossos países por serem nossos inimigos e que o 5G não pode ser uma invenção chinesa. Mas quem falava de fronteiras antes? Globalização significa comprar o mais barato e ponto.

 

Durante 40 anos nos disseram que o Estado deveria ter austeridade fiscal e disciplina fiscal era a palavra de ordem. Agora, a Europa imprime euros e os Estados Unidos imprimem dólares, 13 bilhões de dólares impressos em apenas dois anos por decisão política. É como se agora o governo dissesse: “vou imprimir bilhões de reais para presentear as pessoas!”. Foi o que os Estados Unidos fizeram para salvar as empresas durante o isolamento. Então, os grandes relatos, os grandes mitos unificadores enfraqueceram, se fissurando. O que isso gera nas pessoas? Incerteza. Qual é a verdade e como será o futuro?

 

 

Chamo esse de período liminar, um conceito que vem da antropologia. Sabemos o que não está bem, o que está acabando, mas não temos a menor ideia do que está por vir. Enquanto isso acontece atualmente letargia, confusão e incerteza. No meio disso, surge uma proposta. Agora mesmo há uma espécie de quebra do horizonte previsto. Os seres humanos, os coletivos, sempre imaginam um horizonte para onde vão e direcionam seu esforço, seu sacrifício, suas economias. Prevemos um horizonte do futuro. Quando nos tiram isso, ficamos parados, letárgicos. Vem a incerteza, a inquietação. Isso não pode durar muito.

 

Na América Latina, começamos a buscar saídas progressistas ou saídas reacionárias e muito conservadoras. No mundo, isso também ocorrerá. Agora, vivemos o momento da letargia. Caem as antigas crenças e não há novas. Mas isso não durará uma década, e sim alguns poucos anos. As pessoas não podem viver indefinitivamente na incerteza estrutural, vão se agarrar a algo — ou ao progressismo, ou ao conservadorismo autoritário.

 

É um momento muito complicado. E aí que a força política capaz de desenhar esperança coletiva e dar alguma certeza articula o esforço da sociedade. As esquerdas, o progressismo latino-americano, tem o dever de lutar por isso. A política é o monopólio das esperanças da sociedade. Quem monopoliza as esperanças é o poder. Agora há desesperança, é preciso produzir, e esse é um desafio das esquerdas. Precisamos buscar e reproduzir realisticamente na sociedade, com as possibilidades, com nossas forças, uma flecha que aponta ao futuro, porque se não criamos essa flecha chamada esperança, outros o farão, e eles podem recorrer à repressão, ao autoritarismo – e há quem defenda isso. E se a esquerda não disputar nem lutar pela esperança, quando as pessoas foram buscá-la baseadas na letargia, a direita estará preparada. Não será somente um regresso há 20 anos, mas um regresso há 40 anos. As esquerdas possuem o grande desafio de produzir o horizonte de expectativas da sociedade, a esperança.

 

Acredito que temos condições. A América Latina esteve à frente do mundo nos debates sobre globalização, desglobalização, progressismo e agora sai na frente em busca de um projeto duradouro de organização econômica. Acredito que essa segunda onda progressista é um segundo esforço por uma esperança de grande fôlego, então vamos dar sustentabilidade a essa esperança. Não devemos pensar em apenas quatro anos em como distribuir a riqueza, mas como distribuirmos a riqueza para que a sociedade latino-americana passe de 180 milhões de pobres a 20 milhões de pobres, para que a sociedade latino-americana se industrialize e use as capacidades industriais do Brasil, do México e da Argentina, e seu mercado total de 650 milhões de pessoas, para sair na frente no mundo.

 

Façamos a transição energética, uma economia sem emissões de carbono daqui a 30 ou 40 anos e que não haja mais pobres nas ruas, dormindo nas calçadas, que todas as famílias do campo e da cidade possam ter acesso à universidade gratuita. Há um conjunto de tarefas das quais podemos colocá-las como o grande horizonte pelo qual juntamos forças e desejos coletivos. Esse é um bom momento para que a esquerda não apenas se proponha a administrar, mas também produzir o novo futuro. Cabe a nova geração produzir isso.

 

Guilherme Boulos - O Álvaro trouxe, acho que brilhantemente, essa perspectiva de um projeto de esperança a partir do macro, de um programa de sociedade, um programa de futuro. Vou fazer um ligeiro aporte a partir de outra perspectiva, que diria ser uma noção mais psicológica e ética. A nossa sociedade hoje também enfrenta uma patologia social: a depressão. Nossas sociedades enfrentam e a América Latina também sofre com isso, um processo brutal do qual foi acelerado pelo neoliberalismo a partir do desenraizamento comunitário, de perda de senso coletivo.

 

Fomos, nos últimos 40 anos, nos tornando sociedades do cada um por si, do individualismo, da solidão e, portanto, da depressão. Uma depressão, inclusive, clínica. O número de pessoas medicadas é brutal em nosso continente. Um estudo feito há alguns anos mostrou que São Paulo era uma das cidades com maior incidência de depressão e ansiedade. A desesperança, a falta de perspectiva, também tem a ver com o desenraizamento, a perda dos laços e dos vínculos comunitários, com as pessoas se sentindo completamente sozinhas no mundo.

 

 

Isso não é apenas um espectro psicológico, mas social. Ele é produzido socialmente, basta ver o que o aumento da segregação e da fragmentação da vida nos grandes centros urbanos – onde vive a maior parte das nossas populações – causa. O que David Harvey coloca como cidade fantasma, onde as pessoas vivem em espaços segregados e homogêneos, onde a cidade é um local de passagem para o condomínio empresarial, o condomínio residencial, para o shopping center, e espaços de convivência se perdem. E não existe esperança sem convivência, sem coletividade. Aliás, é justamente essa perda que deu toda a abertura para a ideologia de extrema direita.

 

Quando você não convive e não sente o outro, você abre espaço para a intolerância, falta de empatia, incapacidade de sentir a dor do outro, indiferença. Esses valores, dos quais a extrema direita se alçou, foram produzidos também por um modo de vida do cada um por si. O resgate da esperança passa muito pelo resgate das lógicas comunitárias. Isso não é um pensamento idílico, se trata de reconstruir vínculos e redes com base na solidariedade, sendo a base da sociedade almejada pelo progressismo. Existe uma experiência incrível nas periferias de Buenos Aires onde as cooperativas dos bairros, ligadas aos movimentos piqueteiros, assumiram a gestão dos serviços comunitários. Assim, criou-se cooperativas de serviço e criam um senso comunitário. A esperança é coletiva, não existe esperança de alguém sozinha do mundo, ela se dá em torno da relação humana.

 

Nos movimentos sem-teto, é impressionante como aquelas pessoas, que sofrem tanto do mesmo problema, se juntam ali para lutar e como aquele encontro de pessoas que se sentiam invisibilizadas gera um processo de empoderamento coletivo e de esperança coletiva incrivelmente potente. Vi isso acontecer diversas vezes durante o movimento social e suas ocupações. A esperança passa, também, pelo engajamento social e coletivo que precisamos recuperar.

 

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