A crise do progressismo pode ensejar o surgimento de um novo ciclo, marcado pela forte atuação dos movimentos sociais e de “partidos-movimento”? Entrevista especial com Juliano Medeiros

Para o historiador e líder político, a novidade está no fato de os movimentos de nosso tempo terem outra configuração que busca a superação das crises da combalida democracia liberal

Militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ocuparam a entrada do prédio onde funciona o escritório da Presidência da República, em São Paulo, em 2016 | Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 31 Mai 2021

 

Quando as perspectivas políticas mais à esquerda chegaram ao poder, especialmente na América Latina, logo se descobriu que há posições à direita da esquerda ou mais ao centro, se formos levar em conta espectros políticos maiores. Para o historiador, pesquisador e líder partidário Juliano Medeiros, esse modelo foi, na verdade, ungido pelo ideal de democracia liberal. Fato é que tudo isso ruiu. “A crise da democracia liberal se revela no crescente ceticismo manifestado por milhares de pessoas em todo o mundo, seja através do surgimento de processos de contestação, seja pelo fortalecimento de forças políticas que prometem superar os limites da democracia liberal dando voz às maiorias excluídas das decisões que realmente afetam sua vida”, avalia Juliano, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

E com essa configuração política acabou surgindo espaço para a direita da direita, ou a extrema direita, como é mais conhecida. Mas que não surge sozinha. Aliás, desde que a esquerda se mostrou múltipla, as discussões sobre uma nova esquerda têm surgido. Para Juliano, “essa nova esquerda nasce dos movimentos sociais. Tem na sua composição social elementos predominantemente originários das classes populares e endereça sua crítica ao ‘sistema’”. Pode parecer óbvio, uma vez que a ‘velha esquerda’, especialmente a brasileira, nasce do sindicalismo. Mas o fato é que os movimentos a que Juliano se refere têm outra natureza, mais conectada com os problemas de nosso tempo. “Não há, no entanto, um modelo alternativo pronto e acabado. A nova esquerda é uma antítese do que existe, mas ainda não expressa a superação dialética dos limites do sistema”, completa.

 

O pesquisador toma tais formulações a partir de observações de casos concretos, como, por exemplo, “movimentos como a Frente Ampla chilena, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST no Brasil, o movimento feminista na Argentina e uma enorme variedade de movimentos identificados com as lutas ambientais e territoriais em todo o continente”. Claro, todas reações que, para ele, se iniciam no ciclo de 2008, de onde emerge tanto a nova esquerda como a extrema direita. “Considero que o ciclo aberto com a crise de 2008 não se encerrou. Pelo contrário: ele inaugurou uma ofensiva ainda mais violenta contra os direitos sociais, o que seguirá alimentando o conflito social e a demanda por uma maior presença das maiorias sociais no centro das decisões. A crise, portanto, coloca as condições históricas para o surgimento de uma nova esquerda, mais radical e menos domesticada pelo sistema”, completa.

 

E, no caso brasileiro, tanto a nova como a esquerda tradicional sofrem do que ele chama de “violência com a qual as classes dominantes resolveram o conflito distributivo que se abriu no interior do governo Dilma a partir de 2014”. Para 2022, há um ingrediente novo: a pandemia, que “revelou a farsa por trás das promessas do neoliberalismo. E no mundo todo hoje se fala em taxação dos bilionários, em renda básica permanente, em retomada do papel do Estado na promoção de investimento que possam gerar renda e assegurar o emprego para milhões de pessoas”. Mas o desafio segue. “Por tudo isso, penso que o papel das esquerdas deve ser aproveitar a oportunidade que se abriu para apresentar uma agenda nitidamente antineoliberal”, resume Juliano.

 

Juliano Medeiros (Foto: divulgação PSOL)

 

Juliano Medeiros é historiador, formado na Universidade de Brasília - UnB, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História e doutor em Ciência Política, ambas as titulações obtidas na UnB. Foi presidente da Fundação Lauro Campos e atualmente é presidente nacional do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL. É autor da tese A nova esquerda latino-americana: movimentos sociais, institucionalização e crise do progressismo. Iniciou sua militância no movimento estudantil secundarista e foi duas vezes diretor da União Nacional dos Estudantes - UNE, entre 2005 e 2009. Ainda é autor de Cinco mil dias – o Brasil na era do lulismo (São Paulo: Boitempo Editorial, 2017).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que caracteriza a democracia liberal e como se configura sua crise?

Juliano Medeiros – A democracia liberal é, ao mesmo tempo, o paradigma teórico dominante nas Ciências Sociais e a forma através da qual se estruturaram os sistemas políticos em boa parte dos países no século XXI. Como paradigma teórico, pode ser resumido na combinação de um conjunto de procedimentos que assegurem a liberdade de participação na vida pública, a competição entre elites políticas eleitas pelo voto universal em pleitos periódicos e livres, a defesa do consenso em torno das regras do método democrático e o controle dos líderes pelo voto da maioria durante os processos eleitorais. Na prática, a democracia liberal é sinônimo de um sistema político estruturado a partir da competição entre partidos para o acesso ao aparato do Estado.

 

 

 

Com a complexificação da concorrência intercapitalista, as elites políticas optaram por restringir gradualmente todo o sistema, basicamente, aos procedimentos eleitorais. Com isso a democracia liberal se converteu em sinônimo de democracia representativa, limitando o exercício da cidadania ao processo eleitoral e excluindo milhões de pessoas de decisões fundamentais. Em resumo: a democracia liberal se converteu na forma política do sistema do capital.

Nos últimos anos, com o aprofundamento da crise estrutural do capital, esse modelo tem dado sinais de fadiga. Como aponta Manuel Castells, isso se deve a uma soma de fatores relacionados à globalização, que desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-Nação de responder a problemas que são globais em sua origem, como as crises financeiras, a violação dos direitos humanos, a mudança climática, a crise migratória, e economia criminosa ou o terrorismo. Enquanto as elites cosmopolitas se conectam em nível global viabilizando negócios em questão de segundos, as massas de trabalhadores têm acesso a escassos benefícios, quando não são penalizados pelo desenvolvimento tecnológico com desregulamentação das leis de proteção social, desemprego e miséria.

 

Crise de 2008

A crise financeira que explodiu em 2008 colocou em xeque a globalização. Ela deixou evidente que as instituições do Estado agiram para garantir a manutenção do sistema de valorização do capital, mesmo que isso custasse a proteção dos mais vulneráveis. Na Europa, os “ajustes” impostos pelas instituições supranacionais da União Europeia impactaram profundamente o que sobrava do Welfare State em países como Grécia, Espanha e Portugal.

Nos Estados Unidos, o governo desembolsou bilhões de dólares para evitar que outros agentes financeiros tivessem o mesmo fim do banco Lehman Brothers, que foi à falência em 2008. Na América Latina as políticas “anticíclicas” do progressismo retardaram os impactos da crise, mas não foram capazes de evitá-la, revelando a fragilidade e a dependência externa dos modelos baseados no neodesenvolvimentismo.

 

Crise da democracia liberal

A crise da democracia liberal, assim, se revela no crescente ceticismo manifestado por milhares de pessoas em todo o mundo, seja através do surgimento de processos de contestação – como aqueles vistos a partir de 2010 – seja pelo fortalecimento de forças políticas que prometem superar os limites da democracia liberal dando voz às maiorias excluídas das decisões que realmente afetam sua vida.

Na origem do mal-estar do nosso tempo estão as dificuldades do sistema do capital em assegurar sua dinâmica de valorização expandida e a incapacidade da democracia liberal de oferecer saídas ao crescente incômodo provocado pela interdição dos canais de interação entre sociedade e Estado.

 

IHU On-Line – De que se trata a crise do “progressismo”?

Juliano Medeiros – A crise da democracia liberal é também a crise dos partidos que a sustentaram como ideal de organização dos negócios públicos. A deterioração da legitimidade do sistema representativo arrastou consigo as forças mais ao centro do espectro político, que incorporaram a perspectiva de convivência amistosa com o sistema político e econômico sem questioná-los profundamente. Por isso, os processos de contestação ao modelo têm como alvo, num primeiro momento, os partidos “do sistema”, isto é, aqueles que estão mais integrados ao establishment político. Na Europa, em geral, esses partidos são também os mais antigos e expressam a histórica divisão entre centro-esquerda e centro-direita.

O progressismo, como corrente política, é a expressão latino-americana das forças de centro-esquerda que tem na social-democracia sua principal tradição nos países do capitalismo central. É evidente que a trajetória do progressismo está ligada diretamente às lutas antineoliberais que encontraram na América Latina um terreno fértil na virada do século XX, diferenciando-a em muitos aspectos, portanto, da tecnocracia social-democrata da Europa e Estados Unidos. Mas com a integração dos diferentes partidos e movimentos do progressismo à democracia liberal, sua crise também se manifesta como um desdobramento das várias dimensões estruturais da crise capitalista que se materializa tanto no fim do ciclo expansionista que impulsionou a agenda neodesenvolvimentista, quanto nas derrotas políticas acumuladas na década passada (derrotas eleitorais no Chile, Argentina e Uruguai; golpes parlamentares ou guinadas reacionárias no Peru, Equador, Colômbia, Bolívia, Paraguai e Brasil).

 

 

A crise da democracia liberal, como vimos, provoca uma ruptura com os padrões dominantes de representação, onde as forças do centro do espectro político – à direita e à esquerda – passam a ser associadas com a manutenção de um sistema crescentemente questionado devido a sua incapacidade de incorporar demandas por mais democracia e medidas de proteção aos mais vulneráveis diante da crise do neoliberalismo. O progressismo – e isso vale especialmente para as experiências que mais fortemente se integraram à dinâmica da democracia liberal, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai – também passou a ser questionado por sua incapacidade de responder à crise e por sua defesa intransigente do modelo democrático-liberal.

 

IHU On-Line – Qual a relação entre a crise global de 2008 e a emergência de novos movimentos sociais, especialmente os de esquerda?

Juliano Medeiros – Considero que os movimentos sociais surgidos a partir de 2010 são produto direto da combinação entre crise econômica e crise política. Aquilo que Boaventura de Sousa Santos chamou de “revoltas de indignação” só ocorreu pela absoluta incapacidade dos sistemas políticos de darem respostas à insatisfação com as políticas de austeridade promovidas por diferentes governos e à deterioração das condições de vida.

É claro que no bojo da crítica ao “sistema” também surgiram movimentos de extrema direita, que prometiam um retorno mítico a um mundo de ordem, baseada na autoridade patriarcal, e prosperidade. Esses movimentos conquistaram vitórias políticas e eleitorais importantíssimas na Europa – a principal delas, a saída do Reino Unido da União Europeia – e nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump em 2016. No Brasil, uma onda tardia impulsionou a vitória de Jair Bolsonaro com um discurso contra o “sistema”.

Ainda assim, considero que o ciclo aberto com a crise de 2008 não se encerrou. Pelo contrário: ele inaugurou uma ofensiva ainda mais violenta contra os direitos sociais, o que seguirá alimentando o conflito social e a demanda por uma maior presença das maiorias sociais no centro das decisões. A crise, portanto, coloca as condições históricas para o surgimento de uma nova esquerda, mais radical e menos domesticada pelo sistema.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia as manifestações da Primavera Árabe, os “Occupys” e, um pouco mais tarde no Brasil, Junho de 2013? Até que ponto tais movimentos estão inter-relacionados e a partir de que ponto são diferentes?

Juliano Medeiros – Considero que todas essas são expressões da crise da globalização neoliberal. É lamentável que setores de esquerda ainda considerem esses fenômenos como mero resultado de estratégias do imperialismo para “manipular as massas” contra a democracia. Essa leitura coloca a esquerda como fiadora de um sistema que não tem qualquer condição de dar respostas ao profundo mal-estar produzido pela globalização neoliberal. Ao ser “mais realista que o rei” essa esquerda se coloca voluntariamente ao lado do establishment e não dos indignados.

É evidente que reconheço que agentes externos atuaram fortemente para influenciar os rumos de muitos desses movimentos, como os levantes populares no norte da África ou mesmo as manifestações de junho de 2013. Não sou ingênuo. Mas reduzir a chave explicativa desses fenômenos apenas a uma “tática da CIA” é perder a oportunidade de compreender a potência da luta contra o neoliberalismo e como ela encontra eco na crítica aos limites da democracia liberal.

 

IHU On-Line – No contexto da América Latina, o que são e como se caracterizam as novas esquerdas? Que exemplos podemos pensar?

Juliano Medeiros – Quando falamos de nova esquerda, estamos nos referindo a uma variedade enorme de movimentos que têm como característica comum o enfrentamento às políticas neoliberais e a crítica aos limites do sistema representativo de partidos. Os movimentos sociais da nova esquerda, especialmente entre 2011 e 2013, ao mesmo tempo que forjam uma identidade própria, compartilham referências comuns.

Além dos aspectos abordados na minha tese e que remontam à crítica aos limites da democracia representativa e à crise da globalização neoliberal, há uma série de referências compartilhadas pelos movimentos sociais na América Latina. Nas entrevistas realizadas com ativistas de movimentos sociais no Brasil, México e Chile perguntei “Quais as referências internacionais, entre partidos e movimentos sociais, mais presentes nos debates do seu movimento entre 2011 e 2013?”. Pedi que os ativistas citassem, se possível, até três partidos ou movimentos que os inspiravam. Quase todos, por exemplo, mencionaram a experiência do movimento dos Indignados, na Espanha, que mais tarde daria origem ao Podemos.

Muitos ainda citaram movimentos como o movimento Occupy Wall Street. Poucos foram os ativistas, porém, que mencionaram referências que remetessem a experiências históricas mais presentes no ciclo anterior, como a Revolução Cubana ou mesmo a experiência da Unidade Popular de Salvador Allende, no Chile.

 

Centralidade dos movimentos sociais

Essa nova esquerda nasce dos movimentos sociais. Tem na sua composição social elementos predominantemente originários das classes populares e endereça sua crítica ao “sistema”. Esse sistema é a combinação, no seu imaginário, da ação das elites econômicas com os tecnocratas – eleitos ou não – que mantém, através de uma democracia limitada, as maiorias sociais longe dos processos decisórios.

Incapazes de incorporá-la, a democracia liberal e seu modelo de representação volta e meia colapsa, dando origem a movimentos massivos como aqueles vistos a partir de 2011 em todo o mundo. Não há, no entanto, um modelo alternativo pronto e acabado. A nova esquerda é uma antítese do que existe, mas ainda não expressa a superação dialética dos limites do sistema.

 

 

Como exemplos, vejo movimentos como a Frente Ampla chilena, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST no Brasil, o movimento feminista na Argentina e uma enorme variedade de movimentos identificados com as lutas ambientais e territoriais em todo o continente.

 

 



IHU On-Line – Pensando a partir dos seus objetos de estudo na tese de doutorado – o movimento estudantil do Chile, o movimento sem-teto do Brasil e o movimento #YoSoy132 do México –, quais são os pontos de conexão e de não conexão entre eles? Como eles também exprimem a situação política de seus países de origem?

Juliano Medeiros – Entendo que esses movimentos, embora tenham trajetórias distintas e atuem sob condições políticas muito diversas, marcam a entrada em cena de novos atores num contexto de crescimento do conflito social a partir de 2010. A incapacidade dos governos em darem respostas adequadas ao crescente mal-estar provocado pelo desgaste do modelo neoliberal, permitiu a eclosão da onda de protestos que vimos nesses países. O que os diferencia é, essencialmente, o caminho adotado por cada um.

 

 

 

Enquanto no Chile, o movimento estudantil optou por um processo de institucionalização a partir de “refundação” do sistema político, criando seus próprios partidos, no Brasil os sem-teto só deram esse passo muito tempo depois, enquanto no México o movimento #YoSoy132 optou por manter-se majoritariamente à margem do sistema. Isso se deve a uma série de fatores que analiso no meu trabalho, como o nível de autonomia de cada movimento em relação ao sistema político; sua confiança na democracia representativa; os impactos da experiência de governos progressistas em cada país; a acessibilidade dos sistemas partidários e a coesão interna de cada movimento.

 

 

 

IHU On-Line – De que se trata o “quinto ciclo das esquerdas na América Latina”? Quais são os ciclos anteriores e como se assemelham e se diferenciam da atual versão?

Juliano Medeiros – Em um trabalho que se tornou uma referência nos estudos históricos sobre o tema, o historiador franco-brasileiro Michael Löwy divide a história das esquerdas na América Latina em quatro grandes ciclos. O primeiro seria aquele correspondente à chegada e difusão das ideias socialistas no continente na virada do século XIX. O segundo seria marcado pelos impactos da revolução bolchevique de 1917 na Rússia e pela tentativa de formulação de uma teoria da revolução latino-americana. O terceiro ciclo seria caracterizado pela “hegemonia stalinista” e a transplantação mecânica das teses aprovadas pela direção do Komintern para as Américas.

Predomina, nesse período, a tática das frentes populares em aliança com as burguesias nacionais contra o fascismo e a absurda teoria da “classe contra classe” que privilegiava uma associação automática entre social-democracia e nazifascismo como manifestação de uma classe burguesa multifacetada. O quarto ciclo é caracterizado pelo fim da hegemonia stalinista nas esquerdas e pelo que Löwy chama de “novo período revolucionário” inaugurado nos anos 1960, no qual diferentes correntes políticas disputam a hegemonia das esquerdas: o castrismo e guevarismo, o maoísmo e o trotskismo, a teoria da dependência e a “via chilena” de Salvador Allende.

A divisão em quatro ciclos, proposta por Löwy, coloca o progressismo latino-americano como herdeiro do novo ciclo revolucionário que teve início com a Revolução Cubana em 1959. Ele ressalta, no entanto, que muitos intelectuais, por ocasião da crise do socialismo soviético, consideram que os anos 1990 deram início a um novo ciclo para as esquerdas no continente, marcado pela hegemonia de um projeto de reformas dentro dos marcos da economia de mercado e da democracia liberal.

 

A crise no progressismo abre um novo ciclo?

O que questiono no meu trabalho é se a crise do progressismo pode ensejar o surgimento de um novo ciclo, marcado pela forte atuação dos movimentos sociais e de “partidos-movimento” na busca por uma radicalização democrática e pela interdição da agenda neoliberal na América Latina. Não se trataria, portanto, de um ciclo hegemonizado pelas ideias socialistas – embora elas estejam presentes –, mas por uma perspectiva mais próxima do populismo de esquerda, com vistas à construção de uma nova hegemonia política das maiorias sociais.

Não tenho uma resposta definitiva para essa questão. Mas não há dúvida de que a liderança do progressismo nas esquerdas está em crise, não obstante tenha conquistado uma sobrevida na Argentina e Bolívia (no Chile o processo é totalmente diferente), e também no Brasil, com o lulismo ganhando novo fôlego após a anulação das condenações contra o ex-presidente Lula.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia o papel da esquerda brasileira na oposição ao governo Bolsonaro?

Juliano Medeiros – As esquerdas no Brasil foram profundamente impactadas pela violência com a qual as classes dominantes resolveram o conflito distributivo que se abriu no interior do governo Dilma a partir de 2014. A opção pelo golpe parlamentar, pela criminalização da política através da Operação Lava Jato e pela perseguição de lideranças como o ex-presidente Lula, criou as condições para a eleição de Jair Bolsonaro. Para ver avançar a agenda de desregulamentação e ataque aos direitos sociais, as elites não se importaram em pagar o preço de ter um presidente de extrema direita no Palácio do Planalto.

Nesse contexto de “demonização” das esquerdas, considero que os últimos anos foram de reconstrução. Primeiro, assegurando as bases para um maior diálogo no campo partidário em torno de posições comuns para denunciar e enfrentar a agenda ultraliberal. Segundo, retomando uma dinâmica propositiva em torno da proteção aos mais pobres, do papel do Estado no combate às desigualdades, da defesa do meio ambiente e dos Direitos Humanos. E terceiro, já na pandemia, garantindo uma ação articulada de enfrentamento ao negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro.

Nesse contexto, acho que a oposição tem feito o possível. O problema não é tanto em relação à oposição partidária, que no contexto da pandemia priorizou a luta institucional. O grande problema é a dificuldade da oposição social de promover grandes manifestações de rua, fundamentais para alterar a correlação de forças na sociedade. Sei que há setores da oposição que passaram a ter um medo enorme das ruas após 2013. Mas quem achar que será possível reconstruir este país sem um forte movimento de massas em favor da revogação dos ataques promovidos por Temer e Bolsonaro, realmente perdeu a noção da realidade.

 

IHU On-Line – O que é possível projetar para o cenário eleitoral de 2022? Qual deve ser o papel das esquerdas neste contexto?

Juliano Medeiros – Considero que a pandemia do novo coronavírus – que é uma tragédia sob todos os pontos de vista – revelou de forma cristalina os limites da globalização neoliberal e as consequências nefastas das políticas de desmonte do Estado. Isso porque as pessoas sentiram na pele, talvez como nunca tinham sentido, os efeitos dessas políticas quando se depararam com a fragilidade do sistema público de saúde – apesar do SUS brasileiro ser um dos mais exemplares modelos de universalização da saúde em todo o planeta – após anos de subfinanciamento criminoso; sentiram as consequências quando perderam o emprego e não havia garantias trabalhistas que pudessem ampará-las; ou quando as políticas de ajuda aos mais necessitados foram suprimidas no altar das regras fiscais draconianas que determinam que políticas públicas devem ou não sobreviver.

 

 

A pandemia revelou a farsa por trás das promessas do neoliberalismo. E no mundo todo hoje se fala em taxação dos bilionários, em renda básica permanente, em retomada do papel do Estado na promoção de investimento que possam gerar renda e assegurar o emprego para milhões de pessoas. Até o tal “Plano Biden” demonstra que, em contextos de crise, o capital não hesita em recorrer às forças do Estado para manter ou retomar seus padrões de acumulação.

 

As oportunidades à esquerda

Por tudo isso, penso que o papel das esquerdas deve ser aproveitar a oportunidade que se abriu para apresentar uma agenda nitidamente antineoliberal. Isso significa questionar as regras fiscais que buscam impedir que o Estado brasileiro possa ser um agente eficiente no combate às desigualdades, como o superávit primário, as metas de inflação, e principalmente, o teto de gastos, que congela a ampliação dos investimentos públicos por 20 anos.

É preciso enfrentar o discurso dominante nos meios econômicos, mostrando que em 2020 o Estado injetou mais de R$ 600 bilhões diretamente na economia – através do Auxílio Emergencial e de políticas de crédito – e o país não quebrou. Pelo contrário: as estimativas mais otimistas previam uma queda de -9% no PIB e graças a essas políticas a queda ficou em -4%, atenuando em muito o desastre provocado pela pandemia. O centro, portanto, deve ser o combate às desigualdades sociais, cobrando do 1% mais rico a fatura pelo sofrimento dos outros 99%.

 

IHU On-Line – O que significa o “fator Lula” para as próximas eleições? Até que ponto ajuda e a partir de que ponto atrapalha as esquerdas brasileiras?

Juliano Medeiros – Considero a retomada dos direitos políticos do ex-presidente Lula, antes de tudo, um ato de justiça. Após 580 dias preso injustamente, a anulação das condenações de Sérgio Moro, por parte do STF, começa a recolocar as coisas no lugar. Além disso, sua capacidade de dialogar com diferentes setores sociais é um ativo do qual a oposição não pode prescindir num momento tão grave da vida política do país. Como disse noutra entrevista recentemente, a volta de Lula ao “time da oposição” pode ser comparada ao retorno de um craque depois de um longo afastamento.

 

 

Mas Lula não é e nem pode querer ser o dono do time. O lulismo tem um programa próprio que, obviamente, não contempla setores que defendem uma radicalização do confronto com as elites econômicas. Por isso, nesse momento penso que devemos trabalhar juntos buscando sínteses para criar uma alternativa capaz de interditar a agenda bolsonarista. Evidentemente, essa é a tarefa mais urgente, o que fará com que o processo de renovação das esquerdas tenha de assumir outro ritmo até que coloquemos novamente o Brasil nos trilhos.

 

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