“Aqueles três anos com o Cardeal Martini. Uma montanha de moedas de ouro”

Cardeal Martini (Foto: Reprodução YouTube)

31 Agosto 2022

 

Palavras do secretário do Arcebispo de Milão, que morreu há exatos 10 anos: "Ele era um homem de fé e ciência com um coração de criança".

 

"Naqueles três anos é como se uma montanha de moedas de ouro tivesse sido descarregada sobre mim. Ainda não consegui contar todas. De vez em quando me lembro de algo novo”. Dom Damiano Modena é um sacerdote, hoje pároco de Ogliastro Cilento, secretário de Carlo Maria Martini de 2009 a 31 de agosto de 2012, dia da morte do cardeal, aos 85 anos. Ele sofria há anos com o mal de Parkinson, que em seu agravamento o obrigou a retornar de Jerusalém, onde havia se retirado para estudar depois de ter sido arcebispo de Milão por mais de vinte anos, de 1979 a 2002.

 

Havia sido indicado para liderar uma das maiores dioceses do mundo por João Paulo II quando, renomado biblista, Martini era reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana. Como bispo, ele "desarmou" as Brigadas Vermelhas que em junho de 1984 lhe entregaram fuzis, granadas de mão, bazucas no Arcebispado, enfrentou os anos difíceis de Mãos Limpas. Ele havia dirigido a Escola da Palavra, especialmente para os jovens, e a Cátedra dos não crentes, diálogos nos quais os ateus faziam as perguntas.

 

Em 1990, quando o tema ainda não era quente, dedicou o discurso de Santo Ambrósio às relações entre os cristãos e o Islã, destacando os pontos de contato e as formas de diálogo que eram suas balizas, mas não deixando de observar: "A sua chegada à Itália coincidiu com uma retomada das correntes mais fundamentalistas". Profeta da paz, ele era considerado progressista de acordo com nossas categorias atuais. O seu lema episcopal era "Pro Veritate adversa diligere", amar as adversidades, mas também os adversários, em nome da Verdade. Portanto, é difícil saber com certeza qual era o ponto de observação desse filho da alta burguesia de Turim, que se tornaria jesuíta. Ingressou na Companhia de Jesus aos 17 anos.

 

Dez anos se passaram desde o dia de sua morte, quando os portais do Duomo de Milão permaneceram abertos a noite toda para receber o fluxo de fiéis e pessoas que queriam se despedir. A memória de Martini não se desvaneceu naqueles que o visitam no túmulo da catedral. Seus títulos, apesar da "concorrência" dos textos do Papa Francisco, são atrativos até no "Il libraccio", um sebo que pega os livros que sabe vai vender na hora: o nome Martini é suficiente. Quem o conheceu sente sua falta, há também quem não o conheceu e têm o remorso de não o ter encontrado em Jerusalém ou no Aloisianum dos Jesuítas em Gallarate, quando recebia todos aqueles que pediam para falar com ele.

 

Secretário é pouco, para definir Dom Damiano Modena, o sacerdote que não contará as glórias do Martini triunfante, quando mediava entre progressistas radicais e conservadores jesuítas e era aclamado por multidões e criticado por aqueles que não apreciavam a sua predisposição para diálogo. Dom Damiano permaneceu ao lado de Martini dia e noite, noite e dia, como irmão, filho, assistente, ouvi-o dizer as palavras: “Não aguento mais. Deixe-me dormir". Era 29 de agosto, dois dias antes da despedida do Cardeal Martini deste mundo.

 

Contatei-o por telefone para combinar quando e como entrevistá-lo, mas aquele telefonema durou 120 minutos e se tornou a própria entrevista.

 

A entrevista com Dom Damiano Modena é de Sabrina Cottone, publicada por Il Giornale, 30-08-2022. A traduçção é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Uma lembrança pessoal, mesmo sabendo que você se ofereceu principalmente para continuar a conversa entre Martini e o resto do mundo.

 

Certa noite eu estava colocando-o na cama. Perguntei-lhe: Padre, existe um período da vida em que nos sentimos tranquilos? Ele levantou o dedo daquele seu jeito inconfundível e respondeu sério: Nunca. Eu ri e logo depois ele riu também. Ele estava certo, eu entendo agora como pároco. Sobre a entrega das armas pelos terroristas revelou-me: há coisas que levarei comigo para o túmulo”. Evidentemente, foram palavras recebidas no sacramento da Confissão.

 

Mas Dom Damiano não guarda memória apenas de episódios tristes. Pelo contrário: “Ele me apresentava aos amigos assim: Aqui está Damiano, nosso palhaço”.

 

Como era a vida cotidiana de um homem doente, mas ativo, que recebia todos os dias pessoas importantes, sacerdote e conhecedor das Escrituras, amado e conhecido em todo o mundo?

 

Para mim foram três anos maravilhosos e dolorosos. Todos os dias olho os principais eventos e memórias na minha agenda. Eu me pergunto: como conseguimos fazer tudo com alegria? Mas ele era fantástico, nunca recuou diante dos desafios. Era como se o homem de fé e ciência tivesse colocado sua curiosidade, seu desejo de investigar, no coração de uma criança que adora entender, desmontar as peças do jogo. Se havia uma proibição de acesso, ele perguntava o por quê.

 

Já se sabe bastante sobre a criança Carluccio. Você poderia nos contar sobre essa criança Martini de 1,85m de altura e mais de oitenta anos?

 

Um dia ele viu uma capela de longe e disse: vamos lá, vamos lá. Atravessamos um terreno de grama alta, com mais de um metro de altura, em declive, com ele na cadeira de rodas apreciando a montanha e dizendo: Coragem, coragem, você conseguiu. Quando chegamos à capela, vimos que estava cercada por uma cerca. E ele: Onde está o problema? Vamos pular sobre ela. Eu coloquei as mãos nos cabelos. No final, apoiou-se de pés naquela cerca e ficou olhando o horizonte.

 

Você viu santidade na vida de Martini nos anos que passou com ele?

 

Que ele tocasse as pessoas e elas se curassem, não. Se a santidade significa viver o Evangelho e fazê-lo até as consequências extremas, sim. Ele morreu abandonando-se, sem ter mais nada de seu. Um dia ele nos disse: Mesmo que não houvesse nada do outro lado, eu ainda estaria feliz por ter estado aqui com vocês.

 

Recorda uma frase de São Francisco de Sales, que na escuridão de uma crise de fé, temendo a danação, disse: "Eu vos amarei, Senhor, pelo menos nesta vida, se não me for concedido amar-vos na eternidade".

 

Outra vez ele me disse: Muito lindo este salmo, será que é verdade. Um senso crítico levado ao extremo. Ele tinha feito do diálogo com os não crentes o coração da missão, a ponto de ser contagiado pelos ateus que tentou escutar durante toda a sua vida.

 

Imagino que é isso que acontece com quem vive o Evangelho em profundidade. Muitos homens e mulheres de fé atravessaram noites do espírito, de Madre Teresa a Teresa de Lisieux. Por outro lado, o próprio Jesus morreu dizendo: Eli, Eli, lemà sabactàni, que significa: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?.

 

Alguma vez ele lhe confidenciou quem era a pessoa ou personagem que mais o havia impressionado?

 

Perguntei isso a ele um dia. Chamou-me a atenção que ele tenha respondido Nelson Mandela, a razão foi porque ele não mostrou nenhum ressentimento pelos anos passados na prisão e estava totalmente reconciliado consigo mesmo e com seu passado.

 

Como conheceu o cardeal?

 

Eu havia escrito uma tese de doutorado sobre seus escritos quando Martini tinha 80 anos. Só o conheci no final do trabalho. O material que coletei na tese, mas na época nem podia imaginar, me ajudou a conhecer a sua linguagem e conseguir entender o que ele queria dizer quando respondia às pessoas que lhe faziam perguntas já que agora falava com dificuldade.

 

Ter estudado seu pensamento a fundo me ajudou a ler as frases em seus lábios. Ele depois confirmava. Em junho de 2012, ele quis ir ao Corriere para cumprimentar a todos: por muito tempo havia respondido às cartas dos leitores. O encontro durou duas horas.

 

Eu estava ajoelhada perto dele, ao lado dele, lendo as frases em seus lábios para amplificar sua voz. Em certo ponto fiquei em dúvida de ter entendido corretamente. Quando saímos, perguntei a ele: Respondi bem aquela pergunta? E ele: Você falou melhor do que eu mesmo pensei.

 

Por que ele quis aquela visita dois meses antes do fim? Ele sentia a morte se aproximando?

 

Em fevereiro de 2012, por volta de seu aniversário (15 de fevereiro, ndr) ele teve uma crise cinestésica muito séria. Pensávamos que fosse o fim. Em vez disso, guiados pela ajuda do professor Gianni Pezzoli, um dos principais especialistas em Parkinson, que o estava tratando, ele se recuperou. Mas já a partir de 14 ou 15 de agosto estava claro que suas condições haviam piorado.

 

Você sente muito a falta dele?

 

Sinto muito. Sinto falta do homem que tinha um olhar muito lúcido e profundo sobre o homem. Ele era tão afiado, com uma vasta abertura para o mundo, para a orientação que a humanidade estava tomando. Meu desgaste desses anos se deve à ausência de uma pessoa com um olhar profético tão longo. Era um homem muito amável, todos o amavam porque se deixava amar, era de uma delicadeza requintada.

 

Quem vinha visitá-lo naqueles anos?

 

Os seus familiares vieram, atendendo a um desejo de proximidade que não tinham podido satisfazer quando ele era bispo de Milão. Quando chegava Silvano Fausti, que naqueles anos era seu confessor, conversavam por longas horas sem necessidade de intérpretes.

 

Lembro-me dos irmãos jesuítas e amigos bispos, Bruno Forte, Renato Corti, Franco Brambilla, Roberto Busti, Giovanni Giudici, Francesco Brugnaro, os cardeais Angelo Scola e Dionigi Tettamanzi. Do exterior muitos cardeais africanos. E, além disso, muitos telefonemas. Entre as relações mais importantes, cito aquelas com os judeus e, em particular, a amizade que o ligava a Rav Giuseppe Laras, que vinha uma vez por ano, talvez até mais. Uma vez houve também um encontro com os muçulmanos.

 

É verdade que o cardeal recebeu todos os que pediam para vê-lo, apesar do cansaço causado por sua doença?

 

Ele tinha um horário fixo todos os dias dedicado às visitas e era um compromisso importante para ele, no final todos saíam com sua preciosa caixinha de respostas. Não só. Ele dava de presente a todos tudo o que lhe pediam, até coisas importantes e às quais era ligado: o chapéu do bispo, o pequeno retrato de Nossa Senhora, determinados textos bíblicos sobre os quais havia estudado durante anos.

 

Testemunhei uma espoliação total dos objetos ao seu redor. Ele tinha liberdade interior até mesmo das coisas em que havia trabalhado por toda a vida. Quando o arcipreste do Duomo, Luigi Manganini, lhe perguntou onde queria ser enterrado, ele respondeu: Você decide.

 

Aqui estamos novamente falando de sua morte: até mesmo naquela ocasião ele acabou sendo questionado. Alguns até usaram a palavra eutanásia.

 

Eu não gosto de falar sobre essas coisas abstratamente. Anos depois da morte de Eluana Englaro, encontrei o pai Beppino, que sofria muito, e o encorajei a dar-se paz, a seguir em frente. Mas da morte do cardeal Martini se falou à toa. Disseram que os aparelhos foram desligados, mas ele não tinha aparelhos, nem oxigênio, nem respirador.

 

O único equipamento que desconectamos após sua morte foi o colchão antidecúbito. Colocamos as bolsas de água e nutrição após a sedação. Ele morreu de modo muito natural. Naquele dia, 29 de agosto, ele disse: não aguento mais, deixe-me dormir. Ele já não dormia a noites.

 

Chamamos os médicos paliativistas, conforme combinado, e eles procederam com uma leve sedação. Qualquer outra intervenção teria sido apenas uma obstinação terapêutica. Eu ensino Bioética, sempre fui cuidadoso. As dúvidas sempre permanecem, descobri que é assim para todos. Depois de algum tempo me acalmei.

 

Não se arrependeu nem mesmo daquele cobertor peruano que incomodou a irmã do cardeal, Maris Martini? Ela teria preferido um lençol branco.

 

Eu sei que Maris ficou impressionada com aquele cobertor. Eu não me lembro. Lembro-me que em 31 de agosto estava frio em Gallarate, soprava um vento forte. Tinha caído uma forte tempestade durante a tarde do dia em que ele morreu.

 

 

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