Bem-vindos ao capitalismo de escassez

Fonte: Wikimedia Commons

19 Agosto 2022

 

“Após o shock pandêmico, que já introduziu novas modalidades na regulação social, sob o cenário bélico podemos avançar ao que pode ser claramente caracterizado como um capitalismo onde o consumo de energia e de certos recursos será o primeiro objetivo social a regular. Bem-vindos ao capitalismo de escassez”, escreve Jose Castillo, doutorando pelo Departamento de Geografia Política da Universidade Complutense de Madrid, em artigo publicado por El Salto, 17-08-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

Todas as grandes corporações do capital e suas instituições governantes assumem que o sistema-mundo capitalista está em uma fase crítica de mudança e cronificação da crise econômica. Desde o início da pandemia de covid-19, o Fórum Econômico Mundial vem falando de um plano de “Grande Reset” para reconstruir a economia mundial e direcioná-la para um novo ciclo de acumulação.

 

Essa mudança de paradigma marca a conclusão e o aprofundamento lógico do que podemos chamar, seguindo as palavras do sociólogo Andrés Piqueras, de Segunda Grande Crise de Longa Duração do capitalismo, que começou por volta de 1973 e encontrou sua saída temporária no marco da regulação no modelo financeirizado-neoliberal. O fim desse modelo pode estar nos conduzindo, atualmente, para outra Grande Mutação do modelo de acumulação-regulação capitalista.

 

No entanto, apesar do canto da sereia difundido no início da pandemia, prevendo um novo modelo de “keynesianismo pandêmico”, sobretudo a partir dos campos políticos progressistas, que se basearia em uma espécie de retorno ao paradigma do Estado redistribuidor, a atual crise inflacionária e bélica demonstra que os rumos da governança capitalista apontam para um modelo de escassez marcado pela crescente pobreza e proletarização. Tudo isto aliado à tentativa de controle da exclusão e seus problemas sociais via políticas estatais de subsistência mínima.

 

Conforme avalia Giovanni Arrighi, um dos mais destacados autores do paradigma do sistema-mundo capitalista, sempre que acontece uma crise pelos excessos do capital financeiro sobre o produtivo, esta marca o sinal de decadência de determinado modelo de crescimento e da potência que se tornou hegemônica com ele. Estamos nesta fase, a uma década da explosão do sistema financeiro e com crescentes tensões geopolíticas pelo domínio mundial. Apesar de não podermos enxergar todas as características desta nova fase, é evidente que vivemos um período de transição para algo novo, e que claramente não se parece em nada com os “anos felizes” posteriores à Segunda Guerra Mundial.

 

As mudanças de fase do capitalismo

 

Como mencionamos, o capitalismo ocidental está em crise há décadas, renomados economistas marxistas e heterodoxos falam de uma longa depressão, ao menos dos anos 1970 até o presente. E os dados estatísticos oficiais demonstram essa tese. Nas últimas décadas, as taxas de reinvestimento e produtividade não pararam de cair, embora se buscou manter viva a demanda agregada via crédito fácil, bolha que estourou com a crise de 2008. Contudo, desta vez, estamos diante de uma nova dimensão da crise, já que o capitalismo se aproxima do que podemos considerar seus limites biofísicos. Portanto, além de seus limites internos, precisa enfrentar os externos: que os recursos do planeta que garantiram sua reprodução ao longo do tempo são finitos.

 

A Arábia Saudita alertou que já atingiu o seu teto de produção de petróleo e que, apesar de continuar sendo o maior produtor de petróleo do mundo, não terá capacidade adicional para aumentar a produção acima dos 13 milhões de barris por dia que se comprometeu a ter até 2027. O petróleo continua sendo uma peça-chave em todos os processos produtivos e imprescindível para todo o sistema de transportes. A crise não é apenas um buraco pontual, mas trará mudanças que serão instauradas como temporárias, mas que virão para ficar, como a do racionamento de energia em todos os níveis.

 

Mas, além disso, o sistema capitalista arrasta a habitual contradição entre o valor fictício gerado pela estrutura financeira mundial e a mais-valia e o valor real produzido, o que corresponde a uma estagnação da taxa de lucro que volte a cair em nossos dias. Prova disso é que a produção industrial mundial caiu 2,7% em abril, após ter caído 1% em março.

 

Concretamente, na Alemanha, a principal potência industrial europeia, o componente de compras prospectivas e inventários manufatureiros medidos pelo índice PMI (Índice de Gerentes de Compras, na sigla em inglês) caiu para os níveis de 2008, sendo provável, então, que a fabricação alemã e a demanda industrial mundial já estejam em recessão.

 

O fim do ciclo financeirizado centrado nos Estados Unidos está em declínio há mais de uma década, mas, atualmente, nenhuma outra área geográfica do sistema-mundo capitalista demonstra dinamismo suficiente para ser capaz de arrastar o sistema mundial, em seu conjunto, para um novo ciclo de acumulação baseado na produção real de valor e lucro. Além disso, este novo ciclo enfrentaria os limites biofísicos já mencionados.

 

Diante desse esgotamento de reservas energéticas e primárias vitais, pode surgir um novo modo de regulação e governança capitalista, com a guerra pelos recursos como elemento de regulação a nível externo e a imposição de medidas de racionamento à população a nível interno. De qualquer forma, o impacto e o alcance desse novo modo de regulação capitalista teriam efeitos e formas diferentes na periferia ou no centro do sistema.

 

Capitalismo de escassez na periferia

 

Está claro que essa possível transição para um modelo de regulação capitalista onde a escassez e o racionamento sejam a norma social não afetará os países do chamado centro do sistema da mesma forma que os da periferia. Uma vez que na periferia a real escassez material foi mais a norma do que a exceção, durante os séculos de modernização capitalista.

 

No entanto, nesta fase bélica de reconfiguração das relações capitalistas globais, podemos dizer que a chamada periferia de industrialização tardia se verá especialmente atingida pelas interrupções nas cadeias de abastecimento de alimentos, com a possibilidade de fomes em grande escala, como a que já se enxerga pelo bloqueio do trigo ucraniano e a solução que as potências globais tiveram que buscar para o seu desbloqueio provisório.

 

O trigo da Ucrânia e Rússia é exportado principalmente para o Oriente Médio e o Norte da África. Por sua vez, a Rússia é o maior exportador mundial de fertilizantes, com 15% do fornecimento mundial. Atualmente, dos 195 países do mundo, ao menos 34 são incapazes de produzir seus próprios alimentos devido às limitações de água ou de terra. Destes 34, a maioria está na lista dos principais importadores de alimentos da Rússia e a Ucrânia, localizados na região do Norte da África e Oriente Médio.

 

Entre esses países, também existem claras diferenças. Os países produtores de petróleo do Golfo conseguem acessar outras vias de fornecimento de alimentos graças aos seus recursos provenientes dos hidrocarbonetos, mas existem outros países africanos que não, pois dependem do trigo russo e ucraniano, mais barato devido à sua menor qualidade proteica em relação a outros exportadores desta matéria-prima.

 

Por exemplo, o Egito, que até agora obtinha mais de 85% de suas importações de trigo da região do Mar Negro e que precisará encontrar fornecedores alternativos, que serão mais caros. Outros países da região, como o Iêmen e a Síria, estão em uma situação ainda mais grave por causa de sua dependência da ajuda alimentar, pois o Programa Mundial de Alimentos também está com dificuldades para se abastecer. Em uma época em que o índice de preços dos alimentos atingiu recordes históricos, a previsão do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas é que 2022 será “um ano de fome catastrófica”.

 

Precisamente, os dados da própria FAO já alertam que a inflação mundial de alimentos aumentou consideravelmente, assim como, no intervalo de um só ano, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar, sobretudo na África, América Latina e Caribe. Nesse contexto, os países mais desfavorecidos já optam por uma estratégia de protecionismo alimentar. Uganda e Gana proibiram a exportação de grãos e outros produtos agrícolas. Este último país experimentou um aumento repentino de 27% na inflação e diversos protestos percorreram as ruas do país, no mês de maio, pela situação de fome que começava a se expandir.

 

Junta-se ao problema da fome, na periferia global, o da dívida e o aumento das taxas de juros, o que dificultará o refinanciamento dos Estados mais fracos e minará sua capacidade de importar alimentos e outros bens básicos. A quebra do Sri Lanka manifestou que o problema de financiamento dos países capitalistas é de máxima atualidade. Segundo uma informação publicada pelo portal de notícias econômicas Bloomberg, há pelo menos 15 países em risco de inadimplência nos próximos meses, com um prêmio de risco acima de 10% (>1000 bps), entre os quais se destacam países como Líbano, Bielorrússia, Ucrânia e Tunísia.

 

As consequências das turbulências econômicas globais são claras, mais de 260 milhões de pessoas adicionais podem se ver mergulhadas na pobreza extrema, neste ano de 2022, de acordo com um relatório recente da organização Oxfam Intermón. Tal é a situação, que a classe capitalista começou a ser alertada para as possíveis consequências sociais dessa crescente desigualdade. Larry Fink, CEO da BlackRock, manifestou-se alertando que está muito mais preocupado com o aumento nos preços dos alimentos do que com o da gasolina ou outros combustíveis.

 

Capitalismo de escassez no sistema central

 

Nos países do centro do sistema-mundo capitalista, como na Europa, a situação não chegará ao extremo de uma escassez tão generalizada, mas, sim, será instaurado um novo regime regulatório no qual os altos preços da energia e a racionalização do seu uso se fixarão como realidades permanentes. Apesar da intervenção que diferentes governos possam fazer na cobrança da conta de luz, na verdade, o tempo da energia barata parece ter terminado.

 

Por exemplo, e apesar da relativa prontidão para um julgamento absoluto, o teto ao preço da energia imposto pelo governo da Espanha diminuiu o valor da conta de luz, mas segundo dados da Facua, a conta de junho deste ano foi a terceira mais cara da história. O usuário médio pagou 133,85 euros, 65% a mais que um ano atrás.

 

Em relação à quantidade de gás real que a União Europeia acumula atualmente, no total, os Estados-membros acumulam 597 TWh de gás (terawatt-hora) dos 1.100 TWh de capacidade total que a UE possui, uma quantidade próxima a 55%. Para outubro, a UE espera ter seus depósitos de gás em 90%. Para isso, e porque os gasodutos provenientes da Rússia operam com capacidades muito distantes de seus máximos, a UE já propôs a seus Estados-membros um plano de economia de energia, que começou a ser aplicado em pleno verão, sem esperar o inverno.

 

O objetivo é que entre famílias e empresas sejam economizados entre 45 bilhões e 30 bilhões de metros cúbicos de gás. No entanto, a economia que uma família pode fazer não é a mesma de um ramo industrial totalmente dependente do gás natural, como é o caso dos fornos de fundição de algumas indústrias. Nesse sentido, o país que mais sofrerá será a Alemanha, pois tem a indústria europeia mais dependente do gás natural russo, devido à sua política de descarbonização e fechamento de usinas nucleares e pouca substituição por outras fontes de energia.

 

A Comissão Europeia deixou claro, no momento, que esta economia de energia não responde diretamente a nenhuma política climática, o objetivo é atenuar a situação de emergência que acarretaria uma paralisação na indústria alemã por falta de energia e que levaria a um “momento Lehman” de desmoronamento para toda a economia europeia.

 

É por isso que os Estados-membros já estão aplicando políticas de economia de energia. Desde o controle das temperaturas dos aparelhos de ar-condicionado e aquecedores em locais públicos até recomendações para banhos mais curtos ou manter todos os eletrodomésticos desligados quando não estiverem em uso. As medidas são variadas, mas, sem dúvida, está claro que este inverno será mais escuro e frio do que os países ocidentais se acostumaram.

 

O alcance do racionamento de energia dependerá de dois fatores: o primeiro, o clima, já que um inverno rigoroso e frio pode disparar a demanda por gás natural para aquecer as residências. O segundo fator é a demanda internacional de gás. Se países com um grande consumo industrial, como a China, recuperarem seu consumo pré-pandemia, poderemos enfrentar uma situação na qual o fluxo de gás russo aumentará para o sudeste asiático em detrimento da Europa.

 

De qualquer forma, uma interrupção total do fornecimento da Rússia para a Europa parece impossível, pois significaria um grande desarranjo nas receitas do governo russo, dado que, hoje, os países europeus são os maiores clientes do gás russo. Uma situação que não pode ser revertida, a curto prazo, por conta de todas as infraestruturas que precisariam ser construídas em pouco tempo.

 

Consequentemente, independente do alcance que o racionamento de energia finalmente tiver, o que já se nota é que deste inverno a classe trabalhadora europeia sairá notavelmente mais empobrecida, já que ao longo do ano de 2022 a maioria da população europeia vem enfrentando índices de inflação próximos a 10%. Ao contrário, como exemplo paradigmático, segundo dados do Ministério do Trabalho espanhol, os salários aumentaram em média 2,36% no primeiro trimestre, longe dos valores assinalados pelo IPC, sempre superior a 6%.

 

Portanto, a narrativa da economia de energia também tem consequências psicossociais, no sentido de que grande parte da população percebe que suas poupanças diminuíram, mas agora há uma narrativa a favor da economia e de uma vida mais austera, justificada pelo cenário bélico. Neste contexto, a taxa de poupança das famílias espanholas ficou negativa no primeiro trimestre, pela primeira vez em três anos, o que pressupõe que a as economias acumuladas durante a pandemia não eram tão grandes como a narrativa oficial pressupunha. O índice de confiança dos consumidores na zona do euro também caiu para seus níveis mais baixos, desde 2012, em plena crise do euro.

 

Este cenário de capitalismo de escassez terá repercussões nas legislações nacionais, que preparam um cenário de maior punição para controlar uma população mais pauperizada. O Congresso dos Deputados espanhol deu luz verde, em junho, para uma reforma do Código Penal que prevê punir pequenos furtos com prisão em caso de reincidência. Tudo isso com o objetivo de estigmatizar aqueles que serão mais afetados por este aumento do custo de vida. Como menciona o juiz Ramiro García de Dios Ferreiro, em regra geral, de 23 julgamentos destacados entre o conjunto dos tribunais, 20 são exclusivamente de tentativa de furto de produtos de valor inferior a 400 euros nas lojas.

 

Outros estados europeus também preparam um endurecimento de sua normativa legal no campo trabalhista. A Noruega, um dos principais substitutos exportadores de gás e petróleo em detrimento da Rússia, interveio no direito à greve dos trabalhadores da empresa estatal de energia, no final de junho, por temer que as reivindicações grevistas dos trabalhadores por aumento salarial pudessem diminuir em 13% o fornecimento de gás do país.

 

Conclusões políticas

 

Não é a primeira vez na história do sistema capitalista mundial que uma crise energética e uma crise inflacionária coincidem, pois o mesmo cenário foi vivido nos anos posteriores à conhecida crise do petróleo de 1973. No entanto, naquele momento, a economia capitalista mundial estava apenas iniciando o longo declínio que sofreria nas cinco décadas seguintes, com a concatenação incessante de crises de maior ou menor extensão, apenas suavizadas via crédito e crescimento artificial, ao menos no polo europeu-estadunidense.

 

Observem que o cenário, mesmo que de escassez, não quer dizer que as grandes empresas oligopolistas que administram essa escassez deixarão de ter lucros extras, já que o preço em alta as favorece, como demonstram as contas recordes das principais empresas de energia.

 

Além disso, ao contrário dos anos 1970, não existe hoje um movimento operário fortemente organizado na maioria dos países ocidentais. Coincidindo com a crise inflacionária dos anos 1970, a maioria dos empregadores vergaram a classe operária organizada impondo pactos de renda bem abaixo da inflação, no estilo dos Pactos de Moncloa. No entanto, o que se destaca no contexto atual é a existência de uma grande camada da população excluída temporária ou permanentemente dos circuitos do trabalho assalariado, o que a faz ainda mais dependente dos auxílios estatais de subsistência mínima que podem ser oferecidos.

 

Após o shock pandêmico, que já introduziu novas modalidades na regulação social, sob o cenário bélico podemos avançar ao que pode ser claramente caracterizado como um capitalismo onde o consumo de energia e de certos recursos será o primeiro objetivo social a regular. Bem-vindos ao capitalismo de escassez.

 

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