“Podemos sair do nosso sistema-mundo capitalista”. Entrevista com Fabian Scheidler

Eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes | Foto: ONU

06 Agosto 2021

 

Como pode a civilização ocidental, que alega ser movida pela razão, ser tão destrutiva? A acumulação ilimitada do capital, um Estado fortemente militarizado e o mito do Ocidente levaram à catástrofe ecológica, explica o filósofo, dramaturgo e jornalista Fabian Scheidler, autor de La fin de la mégamachine. Sur les traces d’une civilisation en voie d’effondrement, Éd. Le Seuil, 2020 [2015] (O fim da megamáquina. Nas pegadas de uma civilização em colapso).

A entrevista é de Céline Mouzon, publicada por Alternatives Économiques, 31-07-2021. A tradução é de André Langer.

 

Eis a entrevista.

 

O que é a “megamáquina”?

A civilização da qual fazemos parte criou uma situação que não tem equivalente na história humana. Hoje estamos assistindo à maior extinção de espécies em 66 milhões de anos. E vários mecanismos estão atualmente “disponíveis” para acabar com o mundo como o conhecemos: rápidas mudanças climáticas, uma guerra nuclear... Minha pergunta inicial era esta: por que essa civilização, que pretende ser a encarnação da razão, tem uma força tão destrutiva?

A resposta pode ser resumida nas estruturas daquilo que chamo de “megamáquina”, termo que tomo emprestado do historiador americano Lewis Mumford, autor, na década de 1960, de uma magistral história dos sistemas de poder que apareceram há 5.000 anos, O mito da máquina. Mumford usa aí o termo para descrever as sociedades que se assemelham a máquinas, sociedades hierárquicas como as criadas desde a época dos faraós.

De minha parte, ao assumir este projeto de uma história do poder, uso o termo em um sentido diferente: designa o sistema-mundo capitalista dos últimos 500 anos, portanto mais recente. Escolhi a imagem expressiva da megamáquina para oferecer uma contra-narrativa da modernidade ocidental.



Você diz que a megamáquina se assenta sobre três pilares. Quais são?

O princípio fundamental da megamáquina é a acumulação ilimitada de capital. Em outras palavras, é fazer o dinheiro crescer em um ciclo eterno de lucro e reinvestimento. Este princípio está, entre outros, no cerne das instituições econômicas mais poderosas do mundo: as grandes sociedades por ações. Porém, a máquina econômica não pode existir sem um segundo pilar de sustentação: o Estado moderno, altamente militarizado, que se desenvolveu de forma coevolucionária com o capital e que apoia os grandes grupos de forma extraordinária. Esses dois pilares formaram um sistema ao mesmo tempo extremamente produtivo e agressivo, que não pode existir sem expansão e crescimento perpétuo.

O desenvolvimento violento desse sistema foi legitimado desde o início por uma mitologia que apresenta essa expansão como uma missão salutar. Este “mito do Ocidente” é o terceiro pilar da megamáquina. Primeiramente, o cristianismo foi usado para justificar as conquistas coloniais; depois, as noções de “civilização” (em oposição aos chamados povos “selvagens”), de “progresso”, “desenvolvimento” (em oposição aos chamados povos “subdesenvolvidos”) e “valores ocidentais” (em oposição ao resto do mundo que é, nesta história, mais ou menos bárbaro) sucederam-no para justificar esta dominação.



Você faz um recuo histórico maior e identifica quatro tiranias que estão na raiz dos sistemas de dominação há cinco mil anos. Quais são essas tiranias?

Embora a megamáquina seja um sistema radicalmente novo na história, suas bases estão assentadas em estruturas mais antigas. A primeira tirania é o poder físico. Embora a violência física entre os seres humanos sempre existiu, o mesmo não acontece com o poder físico. Ao contrário da violência física, o poder físico permite que você exerça controle sobre o comportamento dos outros a longo prazo. Sua primeira ocorrência histórica pode ser localizada na Mesopotâmia, há 5.000 anos, quando os reis de Uruk criaram um sistema militar e escravista.

A segunda tirania é a violência estrutural. Trata-se de relações que não são físicas à primeira vista, como as relações de propriedade. No entanto, há violência física por trás da violência estrutural. Se estou devendo tanto a um grande proprietário de terras a ponto de perder as terras que possuo, sou forçado a trabalhar para ele. Hoje, 42 pessoas possuem tanto quanto a metade mais pobre do planeta. Esta é uma forma de violência estrutural extrema.

A terceira tirania é o poder ideológico. Há 5.000 anos, esse poder era exercido por meio da escrita, que surgiu na Mesopotâmia e foi utilizada para a coordenação da produção e da escravidão, e posteriormente para perpetuar a cosmologia das classes altas da sociedade, por exemplo, graças a um livro sagrado.

Hoje, os sistemas escolar e universitário são vetores de poder ideológico. E, claro, a mídia. Na Alemanha, dez bilionários possuem 70% da mídia impressa, e algo semelhante acontece na França. Em A manipulação do público: política e poder no uso da mídia (Editora Futura, 2003), Edward Herman e Noam Chomsky mostraram como a detenção do capital, mas também de outros fatores, como a autocensura ou certos vieses cognitivos, fazem com que as informações sejam filtradas de uma determinada maneira, sem a necessidade de recorrer abertamente a formas de coerção.



Você também fala de uma quarta tirania, o pensamento linear aplicado à natureza. Do que se trata?

O mundo vivo não funciona de forma linear, mas em rede. Cada efeito pode ter várias causas e, ele mesmo, ser a causa de vários fenômenos em ciclos de retroação, cujos efeitos podem ser virtuosos ou devastadores. Aplicar o pensamento linear à natureza viva é uma aberração. O exemplo da agricultura mostra isso. O uso de pesticidas para matar certos seres vivos tem consequências em cascata. Isso acaba destruindo ecossistemas e paisagens.

Essa ideia de um controle humano da natureza remonta à ideologia mecanicista, que está no cerne da ciência moderna desde os séculos XVI e XVII. Thomas Hobbes, Marin Mersenne e René Descartes retomaram a antiga ideia de que o mundo é constituído de pequenas partículas, de átomos, que se tocam, como um relógio. Descartes pensava que os animais eram máquinas, literalmente, e não era uma metáfora.

Essa ideologia teve sucesso porque atendeu às necessidades de expansão do capitalismo: havia a necessidade de navios mais rápidos, de canhões mais poderosos, de bússolas, de mapas, em suma, havia a necessidade de engenheiros. Nesse contexto, surgiu a ideia de que o engenheiro poderia controlar a natureza. Por analogia, assim como Deus controla a criação, o Estado controla seus súditos, o comerciante controla os recursos do seu comércio e os cientistas controlam a natureza. Ao interno do próprio ser humano, esta visão dualista que distingue a mente, dotada de vontade, e o corpo, mecânico, controlado pela mente, perdurou durante muito tempo. O Vale do Silício, que hoje imagina a possibilidade de descarregar sua mente em um computador, faz parte dessa linhagem.

Com a pandemia da Covid, o pensamento linear é onipresente. Nossa reação foi muito linear: colocamos parte da sociedade em espera enquanto esperávamos pelas vacinas, sem abordar os fatores por trás desse tipo de pandemia, no caso, a expansão perpétua da economia capitalista.

Sabemos que a maioria das atuais pandemias e epidemias, sejam elas Covid, Ebola ou HIV, se desenvolve a partir de animais selvagens cujos habitats foram destruídos. Devido à falta de barreiras suficientes, seus excrementos acabam na alimentação humana e é assim que os vírus são transmitidos aos humanos. Em vez de levar em conta essa dimensão circular, nós reagimos de forma linear, permanecendo em um sistema econômico cujo único propósito é crescer e acumular sem parar.

No momento em que a mudança climática é uma das maiores ameaças que temos que enfrentar – muito maior do que a atual pandemia –, temos pouquíssimas propostas para mudar profundamente o nosso sistema econômico. Refugiamo-nos na geoengenharia e na ideia de que basta substituir a tecnologia fóssil por energias renováveis. É claro que isso é necessário, mas totalmente insuficiente.



Você enfatiza em seu livro os vínculos historicamente fortes entre o Estado, a guerra e o mercado. Quais são esses vínculos?

Nós agimos como se o capitalismo fosse um sistema de livre comércio. No entanto, é muito diferente porque o Estado tem vínculos estreitos com as grandes corporações e as classes econômicas mais altas, e a existência de monopólios e oligopólios também é central no nosso sistema econômico.

A ligação entre Estados e grandes empresas fica evidente quando vemos que os setores da economia mais destrutivos do ponto de vista ambiental, como a aeronáutica e a indústria automotiva, são fortemente subsidiados. De acordo com o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), os combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) recebem subsídios anuais de mais de 5 trilhões de dólares. Em outras palavras, os contribuintes financiam a destruição da Terra.

Para entender o funcionamento do capitalismo e de suas ligações com o Estado e o poder militar, temos que voltar à sua história e, portanto, à transição da Idade Média para a Idade Moderna. Primeiro, a metalurgia desempenhou um papel crucial no advento dessa organização econômica e social, tanto para a moeda necessária para pagar os mercenários quanto para a fabricação de armas.

Na Idade Média, após o colapso do Império Romano do Ocidente, o complexo metalúrgico estava em ruínas. Os metais eram muito raros e as minas estavam deterioradas. Na ausência de metais preciosos, os soberanos durante muito tempo puderam contar com apenas exércitos muito limitados. No século XI, os maiores exércitos somavam no máximo 10.000 homens. Eram camponeses cuja presença era exigida nos campos a maior parte do ano. Para criar um exército de mercenários, como na época dos romanos, era preciso encontrar dinheiro para pagá-los.

Foi somente a partir do século XII que, por meio de pesquisas, novas minas de prata foram descobertas. Mas isso ainda era insuficiente para transformar as relações de poder. A introdução de armas de fogo da China nos séculos XIII e XIV foi decisiva para o nascimento do capitalismo.



Os centros financeiros da época, como Florença, Gênova ou Amsterdã, permitiram a implantação desses Estados militarizados e incentivaram as conquistas e as expansões coloniais. Como?

Como a compra de armas de fogo exigia grandes somas de dinheiro, os soberanos pediram emprestado a comerciantes de Gênova, Florença, Amsterdã e Antuérpia. Desde as origens do capitalismo, o Estado é dependente do capital privado.

Os comerciantes, por sua vez, exigiam o retorno sobre os investimentos para esses empréstimos. Isso forçou os soberanos a aumentar as pilhagens e as conquistas. Grande parte dos saques, inclusive aqueles obtidos nas empresas coloniais dos “conquistadores” espanhóis em dívida com os mercadores, voltou para os bolsos dos investidores. Não podemos entender os genocídios e a expansão colonial sem esse mecanismo.

Desse ponto de vista, a história do Império Chinês é muito diferente. Ele não criou realmente um sistema colonial, ao passo que os europeus, por causa de sua necessidade de dinheiro, criaram-no.



O financiamento das conquistas coloniais, assim como a afirmação do Estado e do poder militar, foram viabilizados pelas sociedades por ações. Qual foi o seu papel?

Até a invenção da sociedade por ações no início do século XVII, os mercadores de Gênova, Veneza ou Amsterdã podiam enriquecer consideravelmente por conta das expedições militarizadas. Mas não havia acumulação automática, e aqueles que enriqueciam podiam facilmente decidir encerrar seus negócios. Eles eram responsáveis pelas perdas e desastres causados por suas ações, pelo menos em seu próprio país.

Com a sociedade por ações, tudo muda. A acumulação é automatizada. A empresa certamente pode ir à falência, mas ela é potencialmente eterna. Os acionistas (isto é, os proprietários) não são responsáveis pelas ações da empresa, eles não precisam arcar com as consequências.

As sociedades por ações desempenharam um papel central no colonialismo genocida na América do Norte. São elas que conquistaram as terras. O mesmo aconteceu na Ásia ou na África. Na Indonésia, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, uma espécie de Estado dentro do Estado criado em 1602, impôs seu poder à custa do genocídio. A Índia foi colonizada pela British East India Company, que governou o território conquistado até 1858. Ela tinha o poder de condenar pessoas à morte, como um Estado. Ela tinha seu próprio exército. Essa história colonial, ainda em grande parte desconhecida, é fundamental para entender o papel das sociedades por ações hoje na destruição do planeta.

Essas sociedades atravessaram os séculos de diferentes formas. Aquelas responsáveis pelo genocídio no Congo Belga no final do século XIX, por exemplo, mudaram de nome, foram compradas por outros grupos, mas ainda existem. No entanto, esses genocídios e esses massacres permitiram que elas se enriquecessem consideravelmente, sem nunca serem responsabilizadas.

O poder desta forma jurídica continua a prevalecer. Os 500 maiores grupos controlam atualmente 40% do PIB global e dois terços do comércio. Eles não podem, por causa de sua constituição legal, existir sem crescer. Seu único objetivo é o acúmulo ilimitado de capital, não importa o que aconteça. Para isso, essas estruturas monstruosas transformam o mundo vivo todos os dias em uma massa de mercadorias mortas. Elas não podem parar. Este é o motor do ecocídio planetário. É por isso que a sociedade por ações é uma aberração fatal.

Se quisermos alcançar uma economia sem crescimento que permita viver em equilíbrio com a Terra, devemos nos livrar das sociedades por ações e de formas jurídicas semelhantes, e inventar outras organizações econômicas orientadas para o bem comum. As cooperativas e as empresas comunais são bons exemplos disso, mas permanecem marginais hoje porque o sistema de subsídios dos grandes grupos e a ideologia neoliberal permite que existam apenas de maneira marginal.



Você também se interessa pelo imaginário do apocalipse. O colapso que alguns estão prevendo hoje é uma variação contemporânea?

A ideia do apocalipse nasceu durante os impérios grego e depois romano. Foi inicialmente uma resposta ao domínio extremo que se exercia na época. Depois de Alexandre, o Grande, que criou um império baseado no dinheiro para pagar os mercenários no século IV a.C., o comércio no Mediterrâneo atingiu um nível sem precedentes. A tirania também é exercida no nível ideológico, ao impor à força a presença de estátuas de imperadores gregos e romanos nos templos judaicos. Essas dominações acumuladas criaram um sentimento de impotência, do qual surge a ideia do apocalipse: o mundo, tal como é, deve ser destruído e substituído por um novo mundo.

Em um mundo em que não é possível resistir ao domínio dos imperadores, Deus e seu exército celestial irão intervir. Além disso, no Apocalipse de João, o mundo é dividido entre aqueles que são escolhidos por Deus e aqueles que são rejeitados. No início da era capitalista, a ideologia calvinista reinterpretou essa narrativa: os ricos são eleitos, os pobres condenados. Essa justificativa para a extrema desigualdade ainda está presente hoje na ideia neoliberal com a ideia de que os pobres são os responsáveis pelo seu destino.

A civilização ocidental sempre foi obcecada pelo imaginário do apocalipse, como ilustram os muitos filmes de Hollywood dedicados a este tema. Ao mesmo tempo, essa civilização criou a possibilidade real de um colapso ecológico. O apocalipse do nosso imaginário corre o risco de se tornar realidade. Nesta situação, é importante resistir à lógica binária do pensamento apocalíptico: ou salvamos o mundo ou tudo está perdido. A realidade se situará provavelmente entre esses dois polos. Na verdade, existe uma grande diferença entre 2, 3 ou 4 °C de aquecimento. Cada décimo de grau de diferença decidirá a vida ou a morte de milhões de pessoas. Na minha opinião, é essencial ver as coisas dessa forma e lutar neste terreno.



Como sair da megamáquina?

Devemos, em primeiro lugar, lembrar que uma transição sistêmica é um processo longo e complexo. Por exemplo, na época do nascimento do capitalismo e do advento dos tempos modernos, as mudanças não foram imediatas, e isso devido a múltiplos fatores, incluindo a resistência camponesa. Após a peste do século XIV, os camponeses se revoltaram contra os soberanos, como no caso dos jacqueries na França ou da revolta dos camponeses ingleses que sitiaram a Torre de Londres em 1381. Na Alemanha, as guerras camponesas no século XVI também são testemunhas dessa resistência.

No século XXI, acredito que entraremos mais uma vez nesse processo, o de criar um ou mais sistemas que são impossíveis imaginar de antemão. A emergência desse mundo diferente – que pode ser pior ou melhor que o nosso – será necessariamente marcada por inúmeros conflitos entre grupos sociais com interesses divergentes ou provisoriamente convergentes.

Posto isso, considero oportuno contar com dois pilares para orientar a nossa ação. Primeiro, limitar as forças destrutivas da megamáquina, uma vez que não podemos nos desvencilhar dela facilmente. Concretamente, devemos reduzir e acabar com a exploração e o uso dos combustíveis fósseis o mais rápido possível e resistir às forças autoritárias dos Estados. Ao mesmo tempo, devemos criar espaços onde uma lógica diferente seja desenvolvida, como evidenciado pelas iniciativas implementadas em vários níveis, sejam empresas alternativas ou cidades em transição, etc. que permanecem até hoje, por causa da legislação, confinadas à pequena escala.

Para nos guiar, precisamos olhar para a natureza de forma diferente e encontrar maneiras de cooperar com sistemas vivos complexos, em vez de tentar dominá-los. No meu livro, dou o exemplo do sistema subak em Bali, um sistema de irrigação dos arrozais. Muito elaborado, baseia-se em terraços, canais e represas, e está organizado em torno de templos de água, com uma forte dimensão espiritual. Essa gestão cooperativa, democrática e igualitária surgiu no século IX e se manteve durante séculos.

Na década de 1970, engenheiros suíços chegaram e decretaram que esse sistema era ineficiente e precisavam plantar espécies de arroz mais produtivas e usar pesticidas e fertilizantes químicos. Eles não buscaram entender os subak e os destruíram. Em consequência, depois de alguns anos, os desastres e as epidemias se multiplicaram, o volume das colheitas diminuiu e o sistema social ficou em desordem. O governo indonésio teve que reinstaurar os subak que levam em consideração os ecossistemas, as relações sociais e a espiritualidade. Este sistema foi comprovado ao longo de mil anos. Em escala planetária, nossa civilização demorou duzentos anos para produzir um desastre, se tomarmos a revolução industrial como ponto de partida.

Para efetuar uma transformação sistêmica, o Estado, apesar de sua história destrutiva, é um instrumento decisivo. No longo prazo, podemos imaginar sociedades sem Estado. Mas, no curto prazo, isso não é possível. Precisamos, portanto, mudar a lógica do Estado que hoje subsidia as organizações que destroem o planeta, e obrigá-lo a investir esse dinheiro em uma transição ecológica e social descentralizada. A dificuldade é que não temos muito tempo. Os próximos dez anos são decisivos.

Entre as alternativas, acho interessante a proposta da “economia do bem comum” de Christian Felber, de forma a reverter a lógica perversa dos subsídios. Cada empresa teria apenas um balanço financeiro, mas também um balanço para o bem comum para determinar o que está fazendo ecológica e socialmente em escala global, desde as matérias-primas até os dejetos. Se uma empresa agir de forma destrutiva, terá de pagar muitos impostos, não obterá nenhum crédito e o Estado não comprará nada dela. Por outro lado, se o balanço for positivo, os impostos e créditos serão reduzidos. É o contrário do que estamos fazendo hoje. O Banco Central Europeu pretende agora direcionar os empréstimos tendo em conta o acordo de Paris. Parece-me que estamos indo na direção certa.



Você não é apenas um historiador, mas também um dramaturgo. Por que, na sua opinião, foi importante oferecer uma contra-narrativa que também esconde uma forma de linearidade?

Como seres humanos, não podemos viver sem uma narrativa, não podemos compreender a complexidade do mundo sem uma narrativa. No entanto, nos encontramos em uma situação histórica em que perdemos nosso senso de orientação. Durante séculos, realmente ouvimos esta narrativa: “Estamos no caminho certo, estamos sempre ganhando em prosperidade, em conhecimento, etc.”. Com certeza, desfrutamos de algum progresso nos últimos séculos – pelo menos uma pequena parcela da humanidade. Mas também precisamos perceber que o caminho que percorremos é o caminho que levou à maior catástrofe em 66 milhões de anos. Isso ultrapassa, em termos de temporalidade e de amplitude, a história humana.

Além disso, essas transformações custaram caro desde o início, incluindo o colonialismo e os traumas que engendraram, mesmo que o minimizemos no Ocidente, já que somos os beneficiários diretos e a história é escrita pelos vencedores.

Ao contrário do historiador israelense Yuval Noah Harari que considera em Sapiens. Uma breve história da humanidade (Editora L&PM, 2015) que o ser humano sempre foi um animal cruel e que não pode ser mudado, defendo a ideia de que o ser humano é aberto: o que ele fez também pode desfazer. Podemos mudar a organização social e implantar outro sistema que não seja destrutivo para o meio ambiente. Para isso, temos que entender como chegamos nessa situação e em que momento nos encontramos.

Se ficarmos com uma narrativa enganosa, a conclusão será a seguinte: “devemos avançar em direção a mais digitalização, em direção ao crescimento verde”. Ora, isso nos leva direto ao desastre. Ao contrário, temos que refazer o mapa necessário para nos orientar, e esse é o objeto desta contra-narrativa.

 

Para saber mais:

 

Coady D., Parry I.W.H., Sears L., Shang B. How Large Are Global Energy Subsidies? (IMF Working Paper, 2015).

Felber C. A economia do bem comum (Editorial Presença, 2017).

Harari Y. N. Sapiens. Uma breve história da humanidade (Editora L&PM, 2015).

Herman E., Chomsky N. A manipulação do público: política e poder no uso da mídia (Editora Futura, 2003).

Mumford L., [1966]. Le Mythe de la machine : techniques et développement humain (Fayard, 1974).

 

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