A utopia alimenta-se de pão. Artigo de Carlo Petrini e Carolyn Steel

Ilustração do site "Terra Madre-Salone del Gusto"

08 Julho 2022

 

Aproxima-se a próxima edição de Terra Madre-Salone del Gusto, agendada de 22 a 26 de setembro próximo. Acontecerá na área do Parque Dora em Turim, um local de periferia e por décadas de grandes fábricas e que hoje desponta como um centro de socialidade. Na base está a ideia de que a "Regeneração" dos sistemas sociais e econômicos começará a partir dos bairros onde a vida comunitária se desenvolve concretamente.

 

Carlo Petrini envolveu Carolyn Steel, arquiteta, acadêmica e escritora, que concentrou sua pesquisa em âmbitos como a alimentação e as cidades (“Hungry City”, “Sitopia. Come il cibo può cambiare il mondo”).

 

O artigo publicado a seguir é uma conversa entre Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), e Carolyn Steel, arquiteta, acadêmica e escritora, publicado por La Stampa, 07-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a conversa.

 

Carlo Petrini

 

A comida sempre acompanhou a evolução da espécie humana na Terra, ajudando a moldar a geografia dos territórios e os lugares que habitamos. Sua relevância social não se limitou apenas aos espaços físicos, mas incluiu também os mais metafóricos, mas igualmente importantes da economia, do comércio e da política. Com o tempo, e de mãos dadas com a industrialização e a facilidade de obtenção, os alimentos tornaram-se um elemento marginal na vida das pessoas, e seu espaço também foi diminuindo gradativamente. No entanto, o conflito na Ucrânia e a crise alimentar conexa, bem como a emergência climática, evidenciam as consequências negativas da nossa negligência e levam-nos a reconhecer a necessidade de regenerar uma relação saudável com a primeira fonte de energia de que todos precisam para viver.

 

Aliás, estamos vivos porque comemos e nos alimentamos e a primeira relação com que deveríamos nos importar é, portanto, precisamente aquela com a alimentação, enquanto muitas vezes não a valorizamos ou, pior ainda, a damos como certa. Diante dessa situação, é mais do que nunca necessário trazer os alimentos de volta ao centro, definindo seu espaço operacional e raio de atuação, para depois tomar decisões que nos coloquem no caminho certo para enfrentar as múltiplas crises da atualidade. São temas que lhe são particularmente caros, aos quais dedicou duas décadas de estudos e que bem ilustrou no seu último livro, Sitopia. Come il cibo può cambiare il mondo (Sitopia. Como o alimento pode mudar o mundo, em tradução livre, Plano B, 2021).

 

 

Carolyn Steel

 

Eu concordo com você. Haveria tantas coisas a dizer a partir do fato de que não valorizamos mais os alimentos, assim como negligenciamos a história: a importância da Ucrânia na produção de trigo é, de fato, secular. A pandemia como a guerra nos expõem ao fato de que tomamos as coisas mais vitais como garantidas, ao mesmo tempo em que destacam as relações profundas que nos unem em escala global. Isso pode estimular a uma ação coletiva, lembrando-nos de nossa união de destinos como espécie humana.

 

Com essa comunalidade de ameaças poderíamos de fato criar uma nova época na governança mundial, onde os alimentos podem desempenhar o papel de construtor de paisagens, unificador de pessoas e provedor de soluções para nossos problemas globais. Deixe-me explicar: a pandemia, assim como a guerra, nada mais fazem que tornar mais tangíveis e visíveis as crises que já estavam em andamento (a destruição de ecossistemas, a perda de biodiversidade, as iniquidades do nosso sistema globalizado). E embora as crises sejam preocupantes e alarmantes, elas não são maiores daquilo que podemos fazer. Refiro-me à necessidade de restabelecer o equilíbrio entre duas relações fundamentais: a relação com a vida e a relação entre nós, seres humanos.

 

Ao fazer isso, a comida deve ser trazida de volta ao centro, ajudando-nos na compreensão e definição do que significa viver uma boa vida; também pelo seu potencial único e inigualável para nos dar prazer e nos fazer sentir melhor. De fato, a comida molda nossas vidas, nos permite estabelecer uma relação profunda entre nós e o mundo externo e moldou a evolução da civilização ao longo do tempo. Basta dizer que até a época pré-industrial era difícil alimentar os centros urbanos, principalmente por questões ligadas ao transporte e à conservação. As cidades eram, portanto, de tamanho limitado e altamente produtivas. Sem esquecer que Platão e Aristóteles já argumentavam que a autossuficiência alimentar era um objetivo primário da polis; buscado para garantir o equilíbrio entre contexto urbano e zonas rurais.

 

A partir dessa função do alimento de modelar e definir espaços - não só físicos, mas também sociais - cheguei à formulação do conceito de "sitopia": do grego sitos = comida e topos = lugar.

 

 

Carlo Petrini

 

O que você fala me faz pensar que precisamos retomar o caminho da soberania alimentar, que não é um convite à autarquia como muitos denunciam erroneamente. Soberania alimentar significa devolver dignidade à produção de subsistência. Devemos ter consciência da necessidade de fortalecer a economia local, pois é ali que se demonstra a participação de todos os cidadãos, se garante a defesa do solo, da paisagem e da nossa memória histórica. Isso não é autarquia, mas um elemento capaz de restaurar estabilidade aos territórios reduzindo a dependência do exterior.

 

Com isso não nego algumas virtudes do sistema global, mas também não posso aceitar que o horizonte de atuação de toda a cadeia alimentar seja o mundo, e que o parâmetro de medida seja o baixo custo. Devemos voltar a dar o devido valor a alimentos que sejam saudáveis, nutritivos e também culturalmente apropriados; destacando o benéfico poder transformador que isso pode ter para a vida, a economia e os espaços.

 

 

Carolyn Steel 

 

Penso que em primeiro lugar deveríamos enfrentar uma questão ética e moral. O atual modelo ocidental baseia-se na suposição errada de que os alimentos devem ser baratos.

 

Isso acontece porque na maioria dos casos o que comemos vem de longe, e porque há alguém que paga por custos que nós nem imaginamos. Se os governos parassem de subsidiar a produção agroalimentar industrial e, aliás, internalizassem os custos ocultos (desmatamento, mudança climática, erosão do solo, declínio no estoque de peixes), os preços aumentariam rapidamente. Em pouco tempo, os alimentos industrializados custariam tanto quanto os produzidos de forma ecológica, ou talvez até mais.

 

Se realmente déssemos valor aos alimentos e à sua dimensão territorial, poderíamos criar novos empregos, e isso permitiria que muitas pessoas saíssem da pobreza. O setor agroalimentar é de fato altamente intensivo em mão de obra que, se for valorizada, pode ser extremamente gratificante, pois nos coloca em relação com a natureza e com a vida. Para que isso aconteça, porém, é preciso desenvolver uma relação diferente com a tecnologia: não mais contra a natureza e como substituta das pessoas, mas para ajudá-las a trabalhar a terra de forma mais natural e menos cansativa. Não quero parecer demasiado otimista, mas acho que isso acabaria com a destruição ecológica, o monopólio e a escravidão e consagraria o direito de todos os seres vivos de comer bem. Por meio do alimento, seria incentivada a formação de redes colaborativas e uma sociedade mais democrática seria favorecida.

 

 

Carlo Petrini

 

Concordo com você e acrescento: se não passarmos para uma dimensão ativista, o risco é que essas belas ideias não se traduzam em comportamento. Devemos, portanto, passar à ação partindo de baixo; porque a democracia não existe se nós, cidadãos, em primeiro lugar, não a praticarmos, e o alimento é um campo perfeito para exercer nossa cidadania ativa.

 

Todo alimento que decidimos consumir é, de fato, resultado de dinâmicas políticas, econômicas, culturais e sociais que nós, cidadãos, através das nossas escolhas cotidianas, podemos contribuir para mudar para melhor. Gostaria que essa fosse a mensagem de regeneração que passe com força em nosso próximo encontro Terra Madre - Salone del Gusto. Porque é verdade que o nosso é um evento onde se come e nos divertimos, mas no qual também se reflete. De fato, nessa dimensão de festa, é central o reconhecimento de que o alimento e a agricultura são elementos políticos através dos quais se pode implementar uma economia centrada nos bens comuns, nos bens relacionais e na proteção do ambiente e da diversidade em toda sua possível manifestação.

 

 

Carolyn Steel 

 

Para uma mudança verdadeiramente profunda, acho que devemos começar com duas coisas: trazer a oikonomia - termo grego antigo para designar a gestão doméstica (esfera que inclui também a alimentação) - dentro da economia; e favorecer uma reforma da terra que facilite o acesso acabando com o conceito de propriedade e, em vez disso, cobrando um imposto sobre sua utilização.

 

Viemos de séculos de capitalismo e industrialização que nos fizeram acreditar que a natureza é gratuita, os recursos são infinitos e que o mercado deixado livre para agir se autorregula: todos pressupostos que se mostraram falaciosos. A comida é o elemento mais vital de que dispomos; colocá-la no centro da nossa economia permitir-nos-ia estabelecer uma relação harmoniosa com a natureza, reconstruir os laços entre a cidade e o campo e valorizar os laços humanos.

 

Graças a movimentos como o Slow Food, que mostram como o alimento pode ser nosso guia para a mudança, tudo o que eu disse parece menos utópico. Aliás, nenhum de nós existia antes da comida: ela nos precedeu, antecipou, nos sustenta e viverá depois de nós. A comida é o elemento emocional que nos liga aos entes queridos e continua a ser a nossa maior esperança para um florido futuro sitópico.

 

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