Geleiras dos Andes tropicais encolheram 42% desde 1990. Fenômeno é gerado pelo "carbono negro". Entrevista especial com Efrain Turpo

“'Quem administra as montanhas administra o rio.' Tudo o que se faz ou que muda nas montanhas terá impacto nas bacias abaixo", diz o pesquisador do MapBiomas ao comentar o encolhimento das Geleiras dos Andes e seus impactos na Amazônia

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | Tradução: Cepat | 30 Mai 2022

 

Os dados recentes do MapBiomas, uma rede colaborativa formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia que realiza mapeamentos espaciais e temporais dos territórios e biomas a fim de mostrar suas transformações e buscar, igualmente, a conservação das áreas e combater as mudanças climáticas, indicam que as Geleiras dos Andes tropicais encolheram 42% nos últimos 30 anos. Entre os fatores associados ao fenômeno, destaca-se o aumento das queimadas de áreas de floresta e pastagem na Amazônia, o uso de aerossóis na atmosfera e as mudanças climáticas. O "carbono negro" gerado por essas ações, explica, "ao entrar na superfície das geleiras, pode promover a aceleração do recuo destas, pois, por ser um material escuro, absorve mais energia solar, acelerando o derretimento das geleiras".

 

A notícia é preocupante porque, segundo Efrain Turpo, especialista do Instituto del Bien Común - IBC e do MapBiomas do Perú, "os Andes são essenciais para o ciclo da água da região. As nascentes do rio Amazonas são as geleiras. Apesar de ser uma área de mais de 8 milhões de km2, é um sistema interligado que vai de 0 a mais de 6000 metros de altitude".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele frisa que atualmente está ocorrendo uma "deglaciação a nível global, mas esse processo está sendo acelerado e intensificado pelas mudanças climáticas, fruto do aquecimento do planeta, que está ocorrendo a taxas mais rápidas do que em períodos anteriores". Turpo também comenta os impactos do recuo das geleiras na fauna e na flora da região e diz que, de acordo com as evidências, "a maioria das geleiras tropicais andinas atingiu o limite de não retorno", ou seja, é "difícil" recuperá-las, "mas é possível retardar seu rápido desaparecimento controlando os fatores que aceleram sua perda".

 

Efrain Turpo (Foto: Reprodução)

 

Efrain Turpo é mestre em Modelagem em Ciências da Terra e do Ambiente, pela Universidade Estadual de Feira de Santana, e doutor em Recursos Hídricos pela Universidad Nacional Agraria La Molina, Lima, Peru.

 

Confira a entrevista.


IHU - Segundo estudos do MapBiomas Amazônia, as geleiras dos Andes reduziram 42% desde 1990. Como se dá, sob condições normais, o derretimento dessas geleiras e o que esse aumento pode representar?

 

Efrain Turpo - Em escala geológica, a Terra tem ciclos, etapas de glaciação e deglaciação que duram milhares de anos. Atualmente, estamos em uma etapa de deglaciação a nível global, mas esse processo está sendo acelerado/intensificado pelas mudanças climáticas, fruto do aquecimento do planeta, que está ocorrendo a taxas mais rápidas do que em períodos anteriores.

 

 

IHU - O estudo ainda indica que esse derretimento é devido às mudanças climáticas e a fatores não climáticos. Gostaria que detalhasse como se dão esses efeitos das mudanças climáticas e explicasse o que são esses eventos “não climáticos”, pontuando de que forma eles também incidem nesse ecossistema andino.

 

Efrain Turpo - Quando se fala em fatores climáticos, frequentemente se relaciona a variáveis de temperatura e precipitação; no caso do aumento da temperatura global, tem-se um impacto direto nas geleiras.

 

Os fatores não climáticos têm a ver com variáveis que não estão diretamente relacionadas à temperatura e à precipitação. Por exemplo, o aumento de aerossóis na atmosfera, alguns dos quais originados da queima de florestas e pastagens nos últimos anos, chamados de “carbono negro”, que, ao entrar na superfície das geleiras, podem promover a aceleração do recuo destas, pois, por ser um material escuro, absorve mais energia solar, acelerando o derretimento das geleiras.

 

 

IHU - De que forma essas transformações que vêm ocorrendo nos Andes têm impactado a cultura e a economia das populações locais?

 

Efrain Turpo - Muitos costumes e a cosmovisão da população andina estão relacionados às geleiras. Além disso, essas geleiras têm importância econômica, pois são uma fonte de renda por causa da atividade turística. Além do mais, as geleiras são reguladoras do regime hidrológico das bacias, portanto, seu efeito é maior nas estações secas nas bacias abaixo delas.

 

POVOS ANDINOS

 

IHU - Por outro lado, como a flora e fauna da região vêm sendo impactadas?

 

Efrain Turpo - Existem estudos que mostram que as associações vegetais perto das geleiras estão mudando, por exemplo, em áreas pantanosas [humedales], que são ecossistemas próximos às geleiras, que dependem principalmente da água subterrânea que é recarregada nestas. Há evidências científicas de que existe um aumento maior da temperatura em altitudes mais elevadas, e estas estão provocando a migração tanto da flora quanto da fauna da região.

 

 

IHU - Esse estudo tem acompanhado a região dos Andes tropicais há 36 anos. Que outras mudanças têm percebido nesse período?

 

Efrain Turpo - O MapBiomas é um projeto de mapeamento espacial e temporal, por isso é possível observar muitas mudanças. Cito algumas: o aumento do tipo água (às vezes por razões antrópicas, outras pelo surgimento de novas lagoas que se formam com o derretimento das geleiras). Também no Equador, observa-se uma mudança no nível de altitude dos ecossistemas altos andinos que estão se ajustando lentamente às novas condições climáticas. Essas mudanças não são visíveis a olho nu, por isso precisamos de projetos que façam esse tipo de monitoramento temporal e espacial. Outras questões monitoradas pelo MapBiomas são as mudanças antrópicas: a expansão da agricultura, da infraestrutura e da mineração.

 

IHU - Qual a importância da Cordilheira dos Andes, como um todo, para o clima na América do Sul? Ela impacta o Norte e outros continentes?

 

Efrain Turpo - Os Andes são essenciais para o ciclo da água da região. As nascentes do rio Amazonas são as geleiras. Apesar de ser uma área de mais de 8 milhões de km2, é um sistema interligado que vai de 0 a mais de 6000 metros de altitude. É assim que, por exemplo, grandes massas de água que evaporam nas partes baixas da Amazônia viajam com as correntes de ar até colidirem com os Andes, onde são interceptadas pelas montanhas, a água esfria e cai como chuva, realimentando os rios com água rica em nutrientes que permite a agricultura e a manutenção de diversas populações animais e também a recarga de minerais dos solos vulcânicos que são o centro das atividades de mineração em toda a região.

 

Os Andes | América Latina Selvagem | Discovery Brasil

 

IHU - Especificamente no caso da floresta amazônica, como podemos compreender sua relação com os Andes? O que pode ocorrer com a Amazônia em casos de degradação severa nos Andes?

Efrain Turpo - Há uma frase que se repete entre aqueles que estudam as montanhas: “Quem administra as montanhas administra o rio”. Tudo o que se faz ou que muda nas montanhas terá impacto nas bacias abaixo; neste caso, para verificar se o recuo das geleiras tem um impacto nos rios amazônicos e estes nas florestas amazônicas, assim como nas florestas alagadas, são necessários mais estudos para saber qual é ele.

 

Amazônia: Ponto de Ruptura

 

IHU - Os últimos dados dos relatórios do IPCC têm apontado que, em muitas situações, estamos chegando a pontos limites em que a reversão de danos ambientais não é mais possível. Esse caso das geleiras andinas seria uma dessas situações em que é impossível haver reversão? Por quê? E se há, como recuperar essas perdas, o que precisa ser feito?

 

Efrain Turpo - Infelizmente, há evidências de que a maioria das geleiras tropicais andinas atingiu o limite de não retorno. Portanto, é difícil trabalhar a questão da recuperação das geleiras, mas é possível retardar seu rápido desaparecimento controlando os fatores que aceleram a sua perda. Além disso, recomenda-se trabalhar na adaptação a essas mudanças geradas pela perda das geleiras, por exemplo, reflorestando os Andes, melhorando a infiltração no solo para a recarga das águas subterrâneas, trabalhando com pequenas barragens para regular o regime hidrológico e evitar inundações, regulando os lagos de origem glacial para evitar perigos etc.

 

 

IHU - Em termos de políticas públicas e ações governamentais, o que pode ser feito para mitigar essa deterioração dos Andes? No atual contexto, é possível conceber acordos de cooperação entre países da América Latina para minimizar esses problemas?

 

Efrain Turpo - Deveríamos trabalhar de forma colaborativa, pois estamos interligados.

 

A Amazônia é estratégica em termos econômicos, o que obscurece a nossa visão sobre ela, mas, acima de tudo, é vital para a sobrevivência da espécie humana em um cenário de mudanças climáticas. É uma peça-chave para evitar uma situação ainda mais drástica, pois nela é armazenada grande quantidade de carbono na forma de biomassa, que, se emitida na atmosfera como gás de efeito estufa, só aumentará os efeitos negativos da mudança climática. É preciso agir seriamente para alcançar os objetivos que nos permitem controlar as mudanças climáticas, no caso de países primordialmente florestais como os da bacia amazônica, o que significa reduzir completamente o desmatamento. Há um consenso geral de que há terra suficiente para a produção de alimentos e de que não é necessário, portanto, aumentar a fronteira agrícola para produzi-los; pelo contrário, isso está colocando em risco nossa segurança alimentar de longo prazo.

 

 

 

IHU - Quatro indicadores-chave de mudança climática – concentrações de gases de efeito estufa, aumento do nível do mar, calor e acidificação dos oceanos – estabeleceram novos recordes em 2021, segundo aponta a Organização Meteorológica Mundial – OMM. Como analisa esse cenário? Em seus estudos, como tem percebido essas alterações nesses indicadores-chave?

 

Efrain Turpo - No nosso estudo, não tocamos diretamente nesses indicadores, mas sabemos que o derretimento das geleiras gera o aumento do nível do mar, especialmente as camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida são as que mais contribuem para o aumento global do nível do mar.

 

 

IHU - A civilização inca viveu por muito tempo no ambiente andino e, pelo que se tem estudos, causando pouco impacto ambiental, quase sempre usando a geografia e os ecossistemas a seu favor. O que essa relação dos incas com o ambiente andino pode nos ensinar diante do cenário que temos vivido?

 

Efrain Turpo - As culturas inca e pré-inca tinham uma visão de mundo diferente da atual; para eles, a natureza estava acima deles e não abaixo, como agora a percebemos. Algumas práticas que os incas realizavam eram, por exemplo, as práticas de captação de água, que realizavam recarregando os aquíferos nas partes superiores das montanhas nas estações chuvosas do ano, e mais tarde essas águas apareciam como olhos ou fontes de água nas partes baixas para serem aproveitadas nas estações secas de cada ano.



IHU - Agora em meados de maio, o Brasil foi surpreendido com uma onda de frio recorde, chegando à região central do país (Brasília marcou 1,5º C). Que relação podemos estabelecer entre fenômenos como esse e as mudanças climáticas?

 

Efrain Turpo - Eventos extremos como o ocorrido em maio deste ano no Cone Sul da América e a grande nevasca que ocorreu nos Estados Unidos em fevereiro de 2021, e que causou perdas milionárias e até mortes humanas, são fenômenos que são fruto de mudanças nos padrões de fluxo da energia do planeta devido às mudanças climáticas: até períodos recentes esses ventos polares permaneciam concentrados em torno dos polos, mas agora as “rotas” desses fluxos estão mudando, atingindo latitudes menores. Isso é muito grave, porque, por sua vez, faz com que o ar quente de outras áreas entre nos polos, o que acelera seu degelo e aumenta esse padrão desordenado dos ventos polares... os cientistas chamam isso de fenômeno de retroalimentação positiva, onde um efeito aumenta o desequilíbrio para um ciclo seguinte, e assim por diante, de maneira constante, como um pião que gira, mas que começa a perder o equilíbrio, fazendo movimentos cada vez mais desordenados, até cair no chão.



IHU - Diante de tantos fenômenos como esses do Brasil e tantos dados de pesquisas que apontam perdas em decorrência da crise climática, podemos considerar que o negacionismo climático e ambiental é superado? Por quê?

 

Efrain Turpo - O negacionismo climático é superado com dados e informações. Ao ver, por exemplo, o evidente recuo das geleiras, não se pode pensar que está tudo bem, pelo menos em tempos não geológicos.

 

 

IHU - Quais os maiores desafios hoje para conscientizar pessoas, instituições e governos de que as mudanças climáticas são uma realidade?

 

Efrain Turpo - Muitas vezes, entre a população em geral há um bom nível de consciência da necessidade de reverter os padrões predatórios da natureza, mas também falta vontade política dos governantes e a participação do setor privado. A desinformação é outro desafio a ser superado. Devemos promover o acesso ao conhecimento científico em formatos acessíveis para a população, pois não conseguiremos combater algo que não entendemos.

 

A mudança não depende apenas de quem está no topo; a mudança começa em cada pessoa, em cada lar. Se a população não estiver envolvida nas mudanças, as políticas e os projetos não terão resultados positivos.

 

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