Cidadania digital: a expressão de um outro mundo, um novo tipo de civilização. Entrevista especial com Massimo Di Felice

Pesquisador reflete acerca de um outro conceito de cidadania, conectado a esses tempos de digitalização e “datificaçao”

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 07 Abril 2022

 

“Se nas primeiras décadas do novo milênio o processo de digitalização se tornou um processo de extensões de redes que agregou, depois das pessoas e dos computadores, as coisas, as biodiversidades e os territórios, nesta segunda década a ‘datificação’, baseada na alteração de todos os tipos de superfícies em data e na conexão automatizada destes, apresenta-se como um processo de transfiguração do mundo.” É assim que o professor Massimo Di Felice lê o atual contexto em que estamos mergulhados. Na entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, aponta como urgente a concepção de uma outra ética, uma outra forma de pensar a cidadania. “Passamos a habitar um novo comum composto de materialidades, biodiversidades e superfícies físicas e conectadas, que se comunicam e interagem entre si pela combinação de dois processos: a digitalização e a ‘datificação’”, completa.

 

No entanto, Di Felice chama atenção, também, para que não caiamos numa tecnologização do mundo. Para ele, pensar o metaverso, por exemplo, deve ser a partir de nossa concretude material. O mesmo significa pensar nossa relação com outros elementos da natureza, os não-humanos, como ele e outros autores conceituam. “O protagonismo dos não-humanos e as formas deste novo tipo de social são apresentadas como arquiteturas concretas que compõem uma morfologia de um novo tipo de comum hipercomplexo, não composto mais apenas por humanos, mas, todavia, sempre exclusivamente físico, narrado como uma complexidade material, concreta e toda em presença”, reflete.

 

Por isso, considera que “a ideia de cidadania digital contribui ao debate internacional contemporâneo, no âmbito das ciências humanas e sociais, indicando a 'natureza digital' (a-natureza) e as especificidades informativas destas novas ecologias, produzidas pelo processo de datificação e, por tanto, pelos processamentos de interações e data em redes”. Assim, observa que “a nossa interação com o mundo, com a biosfera, com as florestas, com o clima, com os espaços urbanos é hoje uma interação datificada, isto é, produzida em simbiose com softwares, algoritmos, sensores e big data”.

 

Logo no início da reflexão, ele evidencia o conceito: “uma das primeiras caraterísticas da minha ideia de cidadania digital se expressa através do protagonismodatificadodosnão-humanos’". Mas é ao longo da entrevista que ele vai problematizando essa perspectiva e provocando, sejam pesquisadores, cientistas e teóricos ou professores que vivem a realidade da escola, a se colocarem como sujeitos dessa transformação. Do contrário, segundo ele, perderão o "trem da história". “A criação desta nova linguagem e desta nova episteme irá facilitar e acelerar a inovação e a solução de muitos problemas, beneficiando a coletividade inteira, humana e não-humana. Mas para fazer isso precisamos iniciar um tipo de navegação que atravessa não mais mares, estados, exércitos, mas que seja capaz de alcançar um outro tipo de complexidade que alcança as profundidades dos oceanos, as biodiversidades das florestas, as diversas redes de inteligências, conectando outros versos”, sintetiza.

 

Massimo Di Felice (Foto: Arquivo pessoal)

 

Massimo Di Felice possui graduação em Sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. É professor da USP e professor visitante na Università Roma III (Itália), na Université Paul-Valéry Montpellier III (França) e na Universidade Lusófona (Portugal). é coordenador do centro internacional de pesquisa Atopos da USP e diretor cientifico do Instituto Toposofia de Roma.

Sua obra mais recente é A cidadania digital: a crise da ideia ocidental de democracia e a participação nas redes digitais (São Paulo: Paulus, 2020). É autor também de Net-Ativismo. Da ação social para o ato conectivo (São Paulo: Paulus, 2017). Ainda destacamos Redes digitais e sustentabilidade - as interações com o meio ambiente na era da informação (São Paulo: Annablume, 2012), Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (São Paulo: Annablume, 2009) e Do público para as redes (São Caetano do Sul: Difusão, 2008).

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que podemos compreender como cidadania digital na atualidade? Que nexo podemos estabelecer entre esse modo de cidadania com as chamadas eras do conhecimento e revolução tecnológica?

 

Massimo Di Felice – Desde um ponto de vista tecnológico, a última década foi caracterizada por um conjunto de transformações que implementaram uma importante passagem do social network para as plataformas, as blockchains e os metaversos. Esta transformação assume uma dimensão qualitativa, pois é caracterizada pela passagem de um tipo de tecnologia relacional (web 2.0) para uma arquitetura informativa ecológica e uma estrutura diversa em um ambiente habitável.

Esta mudança vem comumente apresentada como a passagem da SMAC (Social, Mobile, Analytics, Cloud) para a DARQ (Distributed Ledger, Artificial Intelligence, Extended Reality, Quantum Computing). O advento das blockchain, das formas neuronais de inteligência conectadas e de realidades estendidas começou a desencadear um novo tipo de “interações ecológicas” que estendem as qualidades conectivas a data, robôs, entidades não humanas. Se trata de uma passagem qualitativa que não tem a ver apenas com a extensão da propriedade comunicativa às coisas, aos meio-ambiente, às biodiversidades, mas com a alteração em “data” da própria materialidade, isto é, com a alteração do próprio princípio da materialidade que passa a assumir, ao lado de suas propriedades concretas e visíveis, um conjunto de outras propriedades que torna a matéria sequencial, processável, transformável.

Não se trata de contrapor a materialidade à virtualidade, mas do surgimento de um novo tipo de matéria produzida pela datificação, que no meu livro “A cidadania digital” eu chamo infomaterialidade. A forma “data” não tem nada a ver com a tradicional produção humana de dados, estatísticos ou numéricos, pois esta indica o processo em boa parte automatizado da produção e do processo de junção de big data, isto é, de um novo tipo de dados produzidos pela junção autônoma de uma quantidade incontável de grandezas diversas.

 

A Cidadania Digital - A crise da ideia ocidental de democracia e a participação nas redes digitais, livro de Di Felice (São Paulo: Paulus, 2020)

 

Se nas primeiras décadas do novo milênio o processo de digitalização se tornou um processo de extensões de redes que agregou, depois das pessoas e dos computadores (social network), as coisas (internet of things), as biodiversidades (sensores) e os territórios (sistemas informativos geográficos), nesta segunda década a “datificação”, baseada na alteração de todos os tipos de superfícies em data e na conexão automatizada destes, apresenta-se como um processo de transfiguração do mundo. Passamos a habitar um novo comum composto não apenas de realidades físicas, mas também de datas, um mundo de inforrealidades, ou seja, de materialidades, biodiversidades e superfícies físicas e conectadas, que se comunicam e interagem entre si pela combinação de dois processos: a digitalização e a “datificação”.

 

Do comum ao data-comum

 

O nosso comum se tornou um data-comum, as nossas comunidades tornaram-se data-comunidades, o nosso social tornou-se, portanto, composto por redes transorgânicas. A nossa cidadania que, como visto, estende-se a novos atores, não somente tornou-se algo diferente do que pensamos, mas é o produto de um processo de conexão de todas as coisas (the internet of everything) e de um processo de alteração da realidade em data e, ao mesmo tempo, o resultado do processamento automatizado destes.

 

 

Protagonismo não-humano

 

Uma das primeiras caraterísticas da minha ideia de cidadania digital se expressa através do protagonismo “datificado” dos “não-humanos”. A questão do protagonismo dos não-humano encontra já uma ampla bibliografia que interessa à área jurídica, às Ciências Sociais, à Filosofia da Ciência e, portanto, diversas áreas do conhecimento. Penso as contribuições de M. Serres, M. Perniola, I. Stengers, B. Latour, R. Marchesini, S. Mancuso, E. Coccia (entre outros).

 

 

 

Em todo o conjunto destas importantes obras e contribuições, o protagonismo dos não-humanos e as formas deste novo tipo de social são apresentadas como arquiteturas concretas que compõem uma morfologia de um novo tipo de comum hipercomplexo, não composto mais apenas por humanos, mas, todavia, sempre exclusivamente físico, narrado como uma complexidade material, concreta e toda em presença.

 

Cidadania digital

 

A contribuição dos meus estudos e da minha pesquisa neste âmbito, sintetizada pelo termo oxímoro cidadania digital, aponta para a ideia de que este novo tipo de arquitetura do social, este novo tipo de comum, mais que basear-se em formas de agregações entre humanos e não-humanos, os conectam, através de redes digitais e de data. Significa que não somente os algoritmos, os big data, são actantes e entidades que intervém e que contribuem para a realização de uma ação emergente, hipercomplexa e em rede, mas a própria morfologia do comum passa a acontecer através de uma interação de data, de software, de plataformas e de redes digitais.

Em outras palavras, a ideia de cidadania digital contribui ao debate internacional contemporâneo, no âmbito das ciências humanas e sociais, indicando a “natureza digital” (a-natureza) e as especificidades informativas destas novas ecologias, produzida pelo processo de datificação e, portanto, pelo processamento de interações e data em redes. A nossa interação com o mundo, com a biosfera, com as florestas, com o clima, com os espaços urbanos é hoje uma interação datificada, isto é, produzida em simbiose com softwares, algoritmos, sensores e big data.

Isto marca o advento de uma nova morfologia do social, não mais restringida aos humanos, nem mais apenas agregativa, como aquela analisada pelo B. Latour, mas datificada e processada por arquiteturas computacionais, redes informativas e relações automatizadas. São exemplos concretos de cidadania digital, as plataformas para a construção colaborativa de processos decisionais; penso as experiências das plataformas Liquid feedback, desenvolvida na Alemanha, e Rousseau, realizada na Itália. Mas penso também as startups, que exprimem um novo tipo de empreendedorismo conectado, a baixo ou zero capital inicial, que representa, também, um novo tipo de ação entre entidades diversas construídas pelo processo de digitalização.

Penso, ainda, as plataformas ecológicas de interações que conectam data-humanos a data-espaços, a data-biodiversidades, a data-clima e green data, como as experiências de Chicago com o projeto Array of things, ou a experiência de Smart City de Barcelona, ambos com projeto de open data. Mas penso também que a nossa relação com os vírus durante a pandemia e, de forma mais geral, a nossa relação com a saúde e o meio ambiente, são expressões de uma cidadania datificada, pois é baseada em interações não mais narráveis apenas como sociais ou como exclusivamente biológicas. Isso porque também é resultado de processamentos de data e de interações conectivas não apenas desenvolvidas em um “hic et nunc”, compostas por realidades “não-objeto”, não delimitáveis e não externas a nós.

As mudanças climáticas, o vírus, os data não são realidades externas, mas agentes atópicos que alteram e limitam nosso poder de ação e que nos impõem uma nova arquitetura do comum e uma experiência de cidadania, diversa daquelas restringidas a atividades dos humanos realizadas entre os limites dos muros da polis. O processo desenvolvido pelos data e pelas últimas gerações de redes de conectividades se baseia na inclusão e no processamento dos outros mundos: geológicos, biológicos, climáticos, tecnológicos etc. A cidadania digital é, portanto, uma cidadania entre mundos datificados.

 

 

IHU – O que significa ser um cidadão num mundo digital e como assegurar este direito a todos os sujeitos?

 

Massimo Di Felice – Ser cidadão num mundo digital e “datificado” significa algo muito diferente da ideia de cidadania que conhecemos e que foi elaborada ao longo da história do ocidente. Esta ideia, que se desenvolveu na polis grega e que evoluiu em época romana, chegando à sua conformação moderna no iluminismo, limitava a cidadania apenas aos sujeitos humanos. Estes se consideravam fazedores da própria história, atores principais e artífices únicos de seus destinos. Esta ideia autopoiética e antropocêntrica da ação e da cidadania foi definitivamente derrotada pelas capacidades conectivas das evoluções das redes, pelas mudanças climáticas, pela Teoria de Gaia e pela última pandemia.

Tais experiências mostraram o advento de um novo tipo de complexidade e um novo tipo de comum, no qual a nossa história, o nosso agir, como indivíduo e como espécie, são construídos em diálogo com outras entidades agentes. Este novo contexto torna a ideia de cidadania ocidental um mito, no sentido etimológico do termo, uma invenção, uma representação abstrata, cuja perpetuação é hoje prejudicial para o desenvolvimento das nossas relações com o meio-ambiente, com as biodiversidades, com os vírus e com as demais inteligências que coabitam a nossa biosfera.

Ser cidadão digital num contexto datificado significa não habitar mais a polis ou apenas a esfera pública de um país ou de um estado, nem apenas a globalidade da comunidade humana, mas passar a habitar uma ecologia de interações que compõem a biosfera inteira. Significa estar em “um mundo onde cabem todos os mundos”, parafraseando a frase utilizada pelas comunidades descendentes do povo Maia que habitam na selva Lacandona, no sul do México.

 

 

Entrando na hiper-história

 

Como em épocas precedentes, através do alfabeto, realizamos a passagem da pré-história para a história, hoje, segundo o filósofo L. Floridi, estaríamos ingressando na hiper-história, ou seja, na época na qual todas as atividades que desenvolvemos como humanos são realizadas em diálogo e por meio de tecnologias digitais. Ingressamos num novo contexto e numa nova fase da nossa evolução que comporta, em primeiro lugar, a alteração da nossa episteme e da linguagem que adquirimos da tradição ocidental e que utilizamos para compreender a complexidade e significar nosso mundo.

 

 

Esta episteme e essa linguagem têm seu fundamento em quatro palavras principais: homem, técnica, natureza e sociedade. Hoje, para entendermos a nossa hipercomplexidade datificada, não podemos mais construir nossas narrativas, nossas pesquisas e nossa compreensão partindo destes conceitos, mas, ao contrário, conseguiremos fazê-lo somente pondo em discussão tais categorias. É impossível pensar as mudanças climáticas e as ecologias de Gaia a partir da ideia de natureza. Assim como é contraproducente pensar as redes conectivas neuronais partindo da contraposição entre humano e técnica, entre homem e “máquina”.

 

 

IHU – Como continuar, depois da pandemia, a descrever o nosso social como uma complexidade resultante apenas do agir e das agregações dos atores humanos?

Massimo Di Felice – Continuar a utilizar tais categorias significa inviabilizar nossa compreensão. Além da necessária superação da nossa arquitetura epistêmica, um segundo aspecto que podemos atribuir ao significado de nos tornar cidadãos digitais se encontra no reconhecimento do protagonismo dos não-humanos e na construção de uma nova ideia de comum, diversa daquela apresentada pela ideia de sociedade proposta pela sociologia. Nesta direção, já foram feitos passos importantes, seja de um ponto de vista teórico, pensando o trabalho de D. Haraway, de T. Morton e do próprio J. Lovelock, seja também de um ponto de vista jurídico.

Em 2017, a alta corte de Uttarakhand (NainitalÍndia) conferiu o status legal de uma pessoa viva para os rios Ganges e Yamuna, considerando-os como entidades com os mesmos direitos que as populações que vivem entre suas costas. Consequentemente, os diferentes afluentes e todo o ecossistema que se estende das montanhas ao mar também foram declarados jurídicos/legais, pessoas/entidades vivas. No mesmo ano, a Nova Zelândia aprovou uma lei que reconhece o direito legal à vida do rio Whanganui, o maior rio navegável do país. Caminhos semelhantes foram tomados pelas novas constituições do Equador e da Bolívia, reconhecendo à mãe terra e à biodiversidade (Pachamama) o direito legal à vida e à prosperidade.

 

 

Mas, como é fácil observar, a qualidade da questão não é apenas de natureza jurídica. Estes processos possuem uma natureza múltipla, são resultados de um conjunto de diversas transformações: tecnológicas, teóricas, conceituais, ambientais e também jurídicas. Digamos que hoje, em seguida à evolução da conectividade, a questão e o sentido da inclusão ganham novos significados. Não se trata de incluir, digitalmente e socialmente, apenas os humanos, objetivo este quase alcançado, pois a maior parte da população humana já está conectada e diversos projetos prometem a ulterior expansão de tal processo, mas de incluir os não-humanos ao nosso convívio que já estão sendo conectados pela internet das coisas, pelos big data, pelos sensores, tornando-se parte agentes de várias maneiras.

O projeto Oneweb prevê nos próximos anos o lançamento em órbita à baixa cota de uma rede de satélites, capaz de conectar cada ângulo do planeta. Hoje, o tema da inclusão alcançou, portanto, novo patamar e mesmo na sua dimensão social passa a assumir novos significados no sentido que uma vez incluída digitalmente, como no caso do Brasil, a grande maioria da população, o desafio será aquele de nos alfabetizarmos digitalmente, isto é, de aprender a utilizar plenamente e conscientemente os conjuntos de benefícios que a conectividade pode nos oferecer.

 

 

"Infovíduos"

Me parece que seja este o desafio contemporâneo da inclusão: nos tornarmos "infovíduos" e passarmos a habitar plenamente a nossa dimensão híbrida e o nosso ser on-life (L. Floridi). Aqui, as escolas e o sistema educativo poderiam ter um papel importante, mas me parece que ainda estamos muito lentos nesse processo, infelizmente. Me parece que este seja, junto à questão climática, um dos principais desafios da nossa época.

 

 

IHU – Qual é a sua avaliação sobre como a experiência da pandemia reconfigurou a educação a partir da tecnologia?

 

Massimo Di Felice – A ideia ocidental de cidadania se baseia na utopia da construção de um “apartheid ecológico” que imaginou possível separar os humanos do meio ambiente e da tecnologia, criando a polis, uma arquitetura artificial, uma redoma cercada por muros na qual os humanos se iludiram de poder exercer o próprio domínio sobre a natureza e sobre a tékhne. A pandemia nos acordou deste sonho e nos mostrou um novo horizonte no qual era possível desenvolver nossas relações, nosso trabalho, nossos estudos, nossas aulas e compartilhar nosso afeto somente através da tecnologia e as redes digitais.

Passamos assim a experimentar em maneira acentuada, ou quase absoluta, algo que já estávamos acostumados a experienciar, a dimensão não exclusivamente presencial das nossas relações sociais e das nossas vidas. Através das redes digitais, a pandemia foi menos dura, ficamos afastados somente pelas relações físicas, mas não socialmente; ao contrário, o nosso social, sobretudo no âmbito acadêmico, em muitos casos, multiplicou-se, expandiu-se, abrindo-se à experimentação de novos formatos e de novas experiências.

Uma vez que a tecnologia sempre foi um agente pedagógico (alfabeto, escrita, tipografia, computador etc.), deveria ser natural e espontâneo reconhecer a oportunidade que a pandemia ofereceu para podermos repensar a nossa antiga didática e a própria ideia de escola. Esta oportunidade para mim se traduz na possibilidade de “desescolarizar” as práticas de ensino substituindo as arquiteturas de concreto das paredes da sala de aula por aquela feita de redes neuronais digitais e de arquiteturas de conectividades.

Este processo de desmoronamento dos muros das escolas vem acontecendo já com a globalização, muitos países introduziram as viagens e as experiências de deslocamento dos alunos em outros países como uma parte integrante do processo de formação. Com o digital, nós podemos experienciar novas práticas de ensino. Penso os ambientes virtuais, nos quais a dimensão da aprendizagem se torna uma experiência imersiva que envolve todos os sentidos, mas que também produz a possibilidade de associar o processo do conhecimento à inovação através de um outro tipo de experiências capazes de envolver todos os sentidos.

 

 

Nativos da datificação

 

As novas gerações que já nasceram em ambientes conectados e datificados estão desenvolvendo uma nova arquitetura sensorial, construindo os seus sentires e suas ecologias cognitivas e relacionais em simbiose com as arquiteturas digitais. Não levar isso em conta seriamente significa amputar os processos pedagógicos e em muitos casos inviabilizá-los tornando-os, aos olhos dos alunos, uma prática incompreensível, anacrônica e distante do seu mundo.

Temos a oportunidade de pôr em discussão as nossas velhas e antigas práticas de ensino em sala de aula, baseadas na disseminação de conteúdos através da voz e o monólogo do professor, substituindo-as pela experimentação de interações em ambientes conectados e a deslocação em ecologias interativas. É esta uma grande oportunidade e uma obrigação, uma responsabilidade geracional, pois é a nossa geração que é chamada a fazer esta passagem de um tipo de ecologia e de didática para outra. Se não o fizermos, a história não nos absolverá.

 

 

Não se trata de abolir completamente a sala de aula, mas de transformá-la e de repensá-la, pois, ao lado desta, hoje temos novas ecologias de aprendizagem e não podemos não passar a utilizá-las se quisermos dialogar e interagir profundamente com os nossos alunos. Afinal, eles já as habitam e nelas constroem suas arquiteturas sensoriais e de significação.

 

IHU – E o metaverso? O senhor aposta que, de fato, será uma nova fase da revolução tecnológica e comunicacional ou deve apenas transformar lógicas já conhecidas e experimentadas?

 

Massimo Di Felice – A característica principal das últimas gerações de tecnologias digitais é a construção de ambientes digitais e de arquiteturas de interação. Estes não são mídias, ou ferramentas a serem utilizadas pelos usuários, mas ecologias a serem habitadas. Para podermos comunicar e interagir nestas redes, é necessário ingressar nelas, tornar-se parte destes ecossistemas. Somente assim conseguiremos nos comunicar e interagir. Não se trata mais de sermos expostos a um conteúdo, nem apenas de interagir com meios que difundem conteúdo.

Esta alteração das arquiteturas da informação, que eu sintetizei no conceito de “formas comunicativas do habitar”, inspiradas numa livre interpretação do pensamento ecológico de M. Heidegger, W. Benjamin, G. Bateson, entre outros, me parece a característica do atual processo inovativo tecnológico. Tal processo é antecipado pela banda larga e pela social network e continua com os sensores e os sistemas informativos geográficos para alcançar, somente recentemente, sua maturidade com as plataformas digitais e as blockchains.

O metaverso é parte desta história e promete um ulterior incremento deste processo. É necessário e importante falar no plural dos metaversos, pois existem e existirão diversos tipos. De qualquer forma, me parece claro que não se trata de um processo que possa ser enquadrado e compreendido dentro da lógica opositiva entre realidade e virtualidade. Não se trata de uma realidade virtual, isto é, de uma cópia digital do mundo real, mas sim da multiplicação das experiências e da extensão da nossa condição habitativa. Não será uma experiência de interação através das telas, mas através de computação vestível, luvas, óculos 3D e diversos tipos de interfaces que prometem tornar possível experienciar modalidades e formas de interações nas quais desenvolveremos novos tipos de sensorialidades.

Entraremos em novos tipos de arquiteturas que serão habitáveis por meio de interfaces e de tecnologias vestíveis e que, portanto, nos oferecerão a possibilidade de habitar de outra maneira nosso mundo. Isto não significa que deixaremos de habitar as nossas casas, as nossas ruas, nossos espaços físicos, mas que mudaremos profundamente o sentido destes. O metaverso, como o mundo digital, não é uma cópia da realidade ou um seu simulacro. Nada a ver com a ideia platônica da realidade falsa, recuperada nas películas hollywoodianas como Matrix, na qual existe um mundo visível e não real e uma realidade invisível e verdadeira, oculta aos demais, exatamente como no mito da caverna. Nem podemos considerá-lo plenamente narrável através da ideia de hiper-real ou da patafísica do J. Baudrillard.

 

 

Para entender o significado e a qualidade das alterações habitativas que provavelmente se darão com o advento do metaverso, caso este se torne um fenômeno coletivo, é necessário olhar para a complementariedade entre os diversos tipos de experiências habitativas: as das plataformas, as da blockchain, as dos diversos tipos de metaversos e as das geografias e dos espaços materiais que compõem nossas ruas e nossas cidades. Não é possível compreender e analisar uma destas arquiteturas a isolando das restantes, pois, pela lógica de redes, a nossa condição habitativa tornou-se plural e o complexo resultado do conjunto de interações em arquiteturas e geografias diferentes.

 

 

Habitar múltiplas geografias

 

Este fenômeno de habitar múltiplas geografias ao mesmo tempo é uma caraterística constante da experiência comunicativa. Walter Benjamin definia a perda do “hic et nunc” referenciando a perda da áurea da obra de arte, causada pelo advento da fotografia. Ele identificava com extrema clareza a influência das tecnologias na alteração da nossa condição habitativa: entre outras diversas contribuições, na Obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, escrevia:

os nossos botecos, as ruas das nossas metrópoles, os nossos quartos decorados, as nossas estações, as nossas fábricas, pareciam nos fechar irremediavelmente. Depois chegou o cinema e com a dinamite dos décimos de segundo fez explodir este mundo parecido com uma prisão” (Benjamin, W. A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, 2018, Porto Alegre, Ed. L&PM).

Há uma correlação entre as inovações tecnológicas e as transformações da nossa condição habitativa, entre a evolução tecnológica e a nossa relação com o meio ambiente. Aprofundei este tema no meu livro Paisagens pós-urbanas, o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (Ed. Annablume 2009), baseando-me, além de Benjamin, na obra de M. Heidegger e na sua concepção ecológica do ser. Neste sentido, sinto dizer que os metaversos continuam a tradição iniciada pela escrita e continuada com o cinema e a TV e que se caracteriza pela perda do sentido único do lugar. Todas as experiências midiáticas ao longo da história produziram a perda do “aqui e agora”, tornando o nosso habitar uma experiência plural e complexa.

 

Paisagens pós-urbanas, de Massimo Di Felice | Imagem: divulgação

 

Os metaversos são parte desta tradição, mas não são a mesma coisa que o cinema, a TV, pois não acontecem através das interfaces de telas. Em síntese, me parece que mais que um mundo virtual, cópia do mundo físico, os metaversos produzem uma ulterior transformação da nossa condição habitativa alterando a experiência e o sentido das nossas ruas, dos nossos botecos e dos nossos espaços físicos. A tal propósito, me parece que a interpretação mais adequada se encontra na particular ideia de simulacro elaborada por M. Perniola, filósofo italiano recentemente desaparecido.

À diferença das ideias dialéticas do Platão e do J. Baudrillard, Perniola pensa uma relação recursiva entre os diversos formatos que compõem um tipo de realidade na qual as multiplicações de versos produzem a alteração da forma originária. Na sua perspectiva, ao aumentar as versões e os versus de um objeto ou de um território ocasiona-se a alteração do seu formato “originário” através um movimento que produz uma mudança em todos os diversos níveis e, também, no seu status inicial. É esta a promessa dos metaversos: alterar ulteriormente nossas ruas, nossas casas, nossos lugares de trabalho, nossas universidades e nossa condição habitativa.

 

 

IHU – A presença no mundo digital, ou on-line, tem se mostrado de muitas formas. Quais são esses modos de presença e como podemos compreender essas ecologias da presencialidade, especialmente no espaço da educação?

Massimo Di Felice – A experiência da pandemia nos demonstrou mais uma vez a qualidade tecnológica da nossa situação social. Ao contrário do que pensava E. Goffman, as nossas interações não são formadas e dependentes apenas dos espaços físicos nos quais acontecem, mas são produzidas pelos fluxos informativos que atravessam e ressignificam a localidade. A própria antiga separação entre espaço público e espaço privado é hoje determinada mais que pelas paredes e pelas arquiteturas de tijolos, por um click, por um play ou um off que irão a moldar e modificar o contexto da nossa interação e, consequentemente, o nosso comportamento.

Se, por exemplo, estou fechado no meu quarto sozinho, me encontro num espaço que por sua natureza física é privado. No entanto, quando passo a ligar o meu computador ou o meu smartphone e começo a participar de um meeting numa plataforma como Zoom ou Meet, a minha situação social se torna imediatamente pública, alterando assim as características físicas do espaço e o meu comportamento. Da mesma maneira, em sala de aula, através dos smartphones e da conectividade, para um aluno abandonar a aula e se afastar dos conteúdos não precisa se levantar e sair pela porta; mas é suficiente, através de um click, ingressar numa rede social ou responder a uma mensagem.

A nossa situação social é hoje tecnológica e não depende mais exclusivamente do espaço físico. Neste sentido, devemos repensar a nossa ideia de situação social para além dos conceitos de ausência e presença física pois estas não são mais uma condição discriminante para o desenvolvimento das nossas relações. A pandemia nos mostrou a completa separação entre isolamento físico e isolamento social. O fato de não poder sair de casa e não poder encontrar fisicamente as pessoas não significou um isolamento relacional, ao contrário, pelas redes sociais e pela internet podemos continuar a nos relacionar, a ver nossos familiares, a trabalhar e desenvolver todas as nossas atividades sociais.

Na nossa época, vivemos um “genius loci tecnológico”: não habitamos mais apenas os espaços físicos, as ruas e as nossas cidades, mas também fluxos informativos, redes e plataformas de interações. A perspectiva de poder desenvolver uma identidade digital e um nosso gêmeo digital, além de suas inúmeras vantagens e aplicações em diversos âmbitos, como o contexto médico e da saúde, poderá, também, possibilitar a experimentação de práticas didáticas inovadoras. É necessário reconhecer que, em termos de didática, somos muito conservadores. Praticamente continuamos a dar aula com a mesma tecnologia (a voz) e o mesmo formato que utilizava Sócrates no século V a.C. Que seja bem-vindo qualquer tipo de inovação que nos dê a possibilidade de repensar o que significa aprender no terceiro milênio, e o que significa escola num contexto não mais apenas fisicamente presencial. Estamos tendo uma oportunidade única, e perante as oportunidades e as inovações há duas possibilidades apenas de comportamento: aceitá-las e ser parte delas ou se virar para o outro lado e fazer de conta que nada está acontecendo.

 

 

IHU – Muitos importantes intelectuais ofereceram um julgamento muito negativo sobre a evolução das tecnologias digitais e seu impacto na vida social. O senhor mesmo recorda, em primeiro lugar, de Umberto Eco e a sua famosa expressão “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis” e destaca, também, o advento de um novo tipo de sociedade incivil, na qual se perderiam todas as conquistas alcançadas na modernidade. Qual a origem e como compreender esses julgamentos?

 

Massimo Di Felice – Acabou um tipo de mundo. Mais do que o “fim do mundo”, devemos pensar hoje o fim de um particular tipo de mundo, aquele produzido pelo conhecimento moderno e pela tradição epistêmica ocidental que separou o humano da técnica e da natureza e que pensou a sociedade como um sistema complexo composto exclusivamente por atores humanos e pelas instituições por estes criadas. O significado atual do fim do mundo, portanto, neste sentido, não coincidiria, como nos alerta a bibliografia científica, com o fim do planeta, mas com o fim da nossa ideia dele.

É possível, portanto, afirmar que na nossa época perdemos o mundo e assistimos impotentes ao seu fim. Trata-se de uma mudança de paradigma, da crise de uma civilização inteira, uma crise epistêmica, não apenas ética, econômica ou política. Por isso os mais afetados por este processo de mudanças paradigmáticas são os intelectuais e os pensadores. Sobretudo os que se formaram e desenvolveram seus pensamentos no contexto pré-digital. Não é apenas um problema geracional, sempre houve superações e críticas entre gerações diversas de intelectuais; aqui, o dado relativo à data de nascimento conta, mas não é o centro da questão.

Quando se apresenta a ruptura epistêmica de um paradigma, é necessária uma mudança de linguagem, de categorias e de conceitos, pois os que estávamos acostumados a utilizar não são mais eficazes e úteis para ler o novo tipo de complexidade. Trata-se da passagem, indicada por T. Khun, da ciência normal para a ciência extraordinária. Neste contexto de passagem, o conjunto de análise elaborada a partir da episteme, da linguagem e dos paradigmas desenvolvidos no contexto da ciência normal deixam de fazer sentido e não conseguem mais explicar e narrar o novo tipo de complexidade emergente.

Neste período os intelectuais devem optar livremente em que tipo de episteme construir suas pesquisas, que categorias e conceitos utilizarem, ou seja, eleger em que contexto científico atuar, se o da ciência normal ou da ciência extraordinária. Se a opção foi esta segunda, o pesquisar, a linguagem e o próprio ofício do intelectual tornam-se atividades experimentais e passam a assumir o significado não apenas de compreensão e de análise de fenômeno externos, mas também aquele de uma autoindagação conceitual, isto é, aquele de uma reflexão crítica sobre as próprias categorias e a própria episteme.

 

 

O intelectual chamado a sair do conforto

 

Óbvio que é mais confortável criticar o mundo e a realidade, isto muitas vezes oferece ao pesquisador um retorno imediato, geralmente positivo, perante o público e os seus colegas; ao contrário, torna-se incerta e complicada a opção de trocar de paradigma. Me vêm à memória as diversas opções escolhidas por T. Adorno e W. Benjamin. Na pesquisa, não há caminho que não mereça atenção e respeito, pois todos, se bem construídos, contribuem de alguma maneira. Mas eu penso que na nossa época, neste momento de ciência extraordinária, o intelectual seja chamado a sair da velha e confortável posição da crítica social e se empenhe para pensar um novo tipo de civilização.

Na nossa época, somos chamados a grandes desafios, precisamos nos tornar gigantes dos pensamentos e deixar de ser os bons alunos dos velhos professores europeus. Somos chamados a repensar a nossa episteme, e no Brasil, em particular, temos uma grande vantagem, pois existem em nossos territórios outras epistemes, ainda vivas e resistentes, com as quais podemos nos confrontar. É suficiente perguntar a um Kraho quem são os moradores da sua aldeia para ter acesso a uma concepção de sociedade diversa daquelas elaboradas por E. Durkheim e M. Weber. Ou analisar a linguagem do povo Yanomami para ter acesso a um episteme sem natureza, sem sujeitos nem objetos.

Os intelectuais que produzem suas pesquisas no Brasil têm uma grande vantagem em relação a muitos de seus colegas de outros países, pois podem se beneficiar das leituras das complexidades produzidas por povos não ocidentais, portadores de uma episteme e de linguagens diversas daquelas elaboradas pelos gregos e que separou o homem da natureza e da técnica. Por isso que, em maneira especial no Brasil, mas também no mundo inteiro, os intelectuais contemporâneos devem, mais do que contemplar as ruínas da civilização ocidental, ouvir o chamado a criar os pressupostos epistêmicos, linguísticos e teóricos para o advento de uma nova civilização não mais baseada na centralidade do humano, medida de todas as coisas, nem nas separações deste com a natureza e a técnica.

A criação desta nova linguagem e desta nova episteme irá facilitar e acelerar a inovação e a solução de muitos problemas, beneficiando a coletividade inteira, humana e não-humana. Mas para fazer isso precisamos iniciar um tipo de navegação que atravessa não mais mares, estados, exércitos, mas que seja capaz de alcançar um outro tipo de complexidade que chega às profundidades dos oceanos, às biodiversidades das florestas, às diversas redes de inteligências conectando outros versos.

 

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