Sociedade de risco. O medo, hoje. Entrevista especial com Ulrich Beck

A sociedade do risco à qual se refere o sociólogo alemão Ulrich Beck diz respeito às incertezas fabricadas. “Essas ‘verdadeiras’ incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global”, disse

Foto: Matti | Pexels

12 Março 2022

  

Depois de a humanidade ser surpreendida por uma pandemia global que já dura dois anos e começar a recuperar sua esperança após uma parte da população ter sido vacinada, a possibilidade de uma guerra com efeitos mundiais por causa do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, coloca novamente em pauta a discussão sobre a "sociedade de risco", as "incertezas", o "futuro" e os desastres sociais e a miséria que continuará crescendo em toda parte.

 

Em sua reflexão acerca da "sociedade de risco", o sociólogo alemão Ulrich Beck, que faleceu em 2015, costumava dizer que "vivemos em um mundo fora de controle" e, portanto, "não há nada certo além da incerteza".

 

Em 2006, logo após a publicação da obra L'Europe cosmopolite (Paris: Aubier, 2006), Beck concedeu a entrevista que publicamos a seguir ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, por e-mail. Ele explicou que a noção de "risco é um conceito moderno. Pressupõe decisões que tentam fazer das consequências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e controláveis". A novidade em torno dessa noção, pontuou, "repousa no fato de que nossas decisões civilizacionais envolvem consequências e perigos globais, e isso contradiz radicalmente a linguagem institucionalizada do controle – e mesmo a promessa de controle – que é irradiada ao público global na eventualidade de catástrofe (como em Chernobyl e também nos ataques terroristas - terror attacks - sobre Nova Iorque e Washington)".

 

Entre as consequências nefastas dessa era, ele chama a atenção para a "irresponsabilidade organizada". "Políticos dizem que não estão no comando, que eles no máximo regulam a estrutura para o mercado. Especialistas científicos dizem que meramente criam oportunidades tecnológicas: eles não decidem como elas serão implementadas. Gente de negócios diz que está simplesmente respondendo a uma demanda dos consumidores. A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento".

 

Mas justamente no risco e na crise, acentua, "há lugar para esperança". Ao contrário de temermos a cultura da incerteza, advoga, é justamente dela que precisamos. "O que precisamos, eu sugiro, é uma 'cultura de incerteza', o que deve ser claramente distinguido de 'cultura do risco residual', por um lado, e uma cultura de 'não-risco' ou 'segura', por outro".

 

E acrescenta: "A chave para uma cultura de incertezas repousa na prontidão para uma conversa aberta para abordar o risco; a voluntariedade de reconhecer a diferença entre riscos quantificados e incerteza não quantificada; a disposição de negociar entre diferentes racionalidades maior que para engajar-se em denuncismo mútuo; a voluntariedade de erigir tabus modernos sobre bases racionais; e, por fim, mas não menos importante, um reconhecimento da importância central de demonstrar a vontade coletiva de agir de forma responsável no que diz respeito às penas que sempre irão ocorrer apesar de qualquer precaução. (...) O ponto chave de uma comunidade democrática é que assumimos a responsabilidade juntos. A cultura da incerteza é também diferente da 'cultura da segurança'. Com isso, eu quero dizer uma cultura na qual segurança absoluta é considerada um benefício pelo qual a sociedade deve lutar. Tal cultura deve sufocar toda inovação na sua origem".

 


Ulrich Beck (Foto: Reprodução)

 

Ulrich Beck lecionou em Münster de 1989 a 1981 e em Bamberg de 1981-1992. Foi professor de Sociologia e diretor do Instituto de Sociologia da Universidade de Munique. Lecionou na London School of Economics, na Inglaterra. Recebeu dezenas de prêmios internacionais por suas atividades acadêmicas. Escreveu o importante livro Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne (Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986), traduzido para diversas línguas, entre as quais para o italiano sob o título La società del rischio. Verso uma seconda modernità (Roma: Carocci, 2000). Trata-se de uma tradução da edição do original alemão de 1999, com um pósfácio de Ulrich Beck, intitulado Retorno à sociedade do risco. Teoria, política, críticas e programas de pesquisa. Escreveu, também, Macht und Gegenmacht im globalen Zeitalter (Frankfurt a. M.: Suhrkamp Verlag, 2002), traduzido para o francês como Pouvoir e contre-pouvoir à l’ère de la mondialisation (Paris: Aubier, 2003). 

Ukrich Beck faleceu em 2015, em Munique.

 

A entrevista foi publicada originalmente em 22 de maio de 2006 na edição 181 da Revista IHU On-Line, intitulada Sociedade do risco. O medo na contemporaneidade, disponível aqui.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - O que é “sociedade de risco” e como surgiu?

 

Ulrich Beck - “Sociedade de risco” significa que vivemos em um mundo fora de controle. Não há nada certo além da incerteza. Mas vamos aos detalhes. O termo “risco” tem dois sentidos radicalmente diferentes. Aplica-se, em primeiro lugar, a um mundo governado inteiramente pelas leis da probabilidade, onde tudo é mensurável e calculável. Esta palavra também é comumente usada para referir-se a incertezas não quantificáveis, a “riscos que não podem ser mensurados”. Quando falo de “sociedade de risco”, é nesse último sentido de incertezas fabricadas. Essas “verdadeiras” incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global. Em todas essas novas tecnologias incertas de risco, estamos separados da possibilidade e dos resultados por um oceano de ignorância (not knowing).

 

IHU – O senhor pode dar um exemplo?

 

Ulrich Beck - Há alguns anos, o Congresso dos EUA deu a uma comissão científica a tarefa de desenvolver uma linguagem simbólica que tornaria claro o perigo que um local de dejetos atômicos nos EUA implicaria. O problema a ser resolvido era o seguinte: Como os conceitos e símbolos poderiam ser constituídos de forma a comunicar (algo) àqueles que vivessem daqui a dez mil anos. A comissão era formada por físicos, antropólogos, linguistas, pesquisadores do cérebro, psicólogos, biólogos moleculares, gerontólogos, artistas etc.

 

Primeiro de tudo, eles deveriam esclarecer uma questão simples: os EUA existiriam daqui a dez mil anos? A resposta foi, claro, simples: “EUA para sempre!”. No entanto, a chave do problema – como é possível hoje começar uma conversa para dez mil anos no futuro – eventualmente provou ser insolúvel. A comissão buscou por exemplos dos mais antigos símbolos da humanidade, estudou as ruínas de Stonehenge (1500 a. C.) e as pirâmides, pesquisou a recepção de Homero e da bíblia e ouviu explicações sobre o ciclo de vida dos documentos. Isso, no entanto, alcançou apenas algumas centenas de anos passados, não dez mil.

 

Na velocidade de seu desenvolvimento tecnológico, o mundo moderno aumenta a diferença global entre a linguagem de riscos quantificáveis no qual pensamos e agimos, e o mundo de insegurança quantificável que igualmente criamos. Com nossas decisões passadas sobre energia atômica e nossas decisões presentes sobre o uso de tecnologia genética, genética humana, nanotecnologia e ciência informática, desencadeamos consequências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até incomunicáveis que ameaçam a vida na Terra.

 

 

IHU - O que, portanto, é realmente novo a respeito da sociedade de risco?

 

Ulrich Beck - Risco é um conceito moderno. Pressupõe decisões que tentam fazer das consequências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e controláveis. Se alguém, por exemplo, diz que o risco de câncer em fumantes está em um certo nível, e o risco de catástrofe em uma usina nuclear está em certo nível, isso implica que riscos são consequências negativas permitidas por decisões que parecem calculáveis, assim como a probabilidade de doença ou acidente, e ainda assim não são catástrofes naturais.

 

A novidade da sociedade de risco repousa no fato de que nossas decisões civilizacionais envolvem consequências e perigos globais, e isso contradiz radicalmente a linguagem institucionalizada do controle – e mesmo a promessa de controle – que é irradiada ao público global na eventualidade de catástrofe (como em Chernobyl e também nos ataques terroristas - terror attacks - sobre Nova Iorque e Washington). Isso constitui precisamente a “explosividade” política da sociedade de risco. Esta “explosividade” tem seu centro na esfera pública da sociedade de massas midiatizada, na política, na burocracia, na economia, embora não seja necessariamente contíguo a um evento específico ao qual esteja conectada.

 

A “explosividade” política não pode ser descrita e mensurada nem na linguagem do risco, nem em fórmulas científicas. Nela “explode” – se me permite a metáfora – a responsabilidade, reivindica racionalidade e legitimidade pelo contato com a realidade. O outro lado da presença admitida do perigo é a falência das instituições cuja autoridade provém da maestria assumida de tal perigo. Desse modo, o “nascimento social” de um perigo global é tanto um improvável quanto um dramático, mesmo traumático, fim do mundo. Na experiência de choque irradiado pela mídia massificada, torna-se reconhecível que – para citar Goya – a dormência da razão cria monstros.

 

 

IHU - Em seu livro Sociedade de Risco, o senhor argumenta que “a força motriz na sociedade de classes pode ser resumida em uma frase: Tenho fome! O movimento posto em marcha pela sociedade de risco também é expresso pelo indicativo: Tenho medo! A comunalidade da ansiedade toma o lugar da comunalidade da necessidade”. Poderia explicar melhor essa afirmação?

 

Ulrich Beck - Não sabemos se vivemos em um mundo algo mais arriscado que aquele das gerações passadas. Não é a quantidade de risco, mas a qualidade do controle ou – para ser mais preciso – a sabida impossibilidade de controle das consequências das decisões civilizacionais que faz a diferença histórica. Por isso, eu uso o termo “incertezas fabricadas”. A expectativa institucionalizada de controle, mesmo as ideias-chave de “certeza” e “racionalidade” estão em colapso. Não são as mudanças climáticas, os desastres ecológicos, ameaças de terrorismo internacional, o mal da vaca louca etc. que criam a originalidade da sociedade de risco, mas a crescente percepção de que vivemos em um mundo interconectado que está se descontrolando.

 

 

Os desafios dos riscos globais conceituais e prescritivos oriundos da primeira modernidade do século XIX e início do século XX, são discutidos no início do século XXI. Os riscos com os quais nos confrontamos não podem ser delimitados espacialmente, temporalmente, ou socialmente; eles abrangem estados-nação, alianças militares, e todas as classes sociais, e, por sua natureza, apresentam novos tipos de desafios às instituições designadas para seu controle. As regras estabelecidas de atribuição e responsabilidade – causalidade, culpa e justiça – quebraram-se. Isso significa que sua cuidadosa aplicação à pesquisa e jurisdição tem o efeito contrário: os perigos aumentaram e sua “anonimatização” (anonymization) é legitimada. Então, a principal diferença entre a cultura pré-moderna do medo e a cultura do medo da segunda modernidade é: na pré-modernidade, os perigos e medos podem ser atribuídos a deuses ou Deus ou à natureza, e a promessa de modernidade deve superar essas ameaças com mais modernização e mais progresso – mais ciência, mais economia de mercado, melhores e novas tecnologias, padrões de segurança etc. Na era do risco, as ameaças com as quais nos confrontamos não podem ser atribuídas a Deus ou à natureza, mas à própria “modernização” e ao próprio progresso. Assim, a cultura do medo vem do fato paradoxal de que as instituições feitas para controlar produzem incontrolabilidade.

 

IHU - O que acontece à nossa capacidade de buscar justiça na sociedade de risco?

 

Ulrich Beck - Não há uma resposta fácil a esta pergunta. Dê uma olhada, por exemplo, em uma das mais famosas filosofias e teorias morais da justiça de nosso tempo, criada por John Rawls. Ele conceitualiza a justiça em um marco referencial construído sobre duas premissas obsoletas: a primeira é o “nacionalismo metodológico”, que significa que a questão da justiça é percebida em categorias do estado-nação; e a segunda é que ele concentra sua teoria na distribuição de “bens” e negligencia a distribuição dos “males” e “riscos”, do que deriva, como eu argumento em meu livro, uma lógica bem diferente.

 

Portanto, a “gramática” social e política em que vivemos, pensamos e sobre a qual agimos está se tornando historicamente obsoleta, não obstante, continua a governar nosso pensamento e nossas ações. Pegue a ameaça terrorista, por exemplo. A violência de 11 de setembro de 2001 se mostra como a falência de conceitos tradicionais baseados em estados de “guerra” e “paz”, “amigo” e “inimigo”, “guerra” e “crime” para então se apreender, analisar e propor abordagens às novas realidades morais, sociais e políticas. Sua questão, como redefinir a justiça numa sociedade de risco, nem sequer foi levantada.

 

IHU - O que significa “poder” em uma sociedade de risco?

 

Ulrich Beck - Em conflitos de risco, a questão central do poder é de definição. É a questão de quem, com que recursos legais e intelectuais, passa a decidir o que conta como “risco”, o que conta como “causa”, e o que conta como “preço”. A questão de determinar quem é responsável, e quem tem que carregar o fardo de pagar pelos danos, foi transformada em uma batalha sobre as regras de evidência e as leis de responsabilidade. E a razão para isso é que, no fundo, o verdadeiro duelo se dá entre a ideia de que alguém é responsável e a ideia de que ninguém é responsável.

 

 

IHU - É esta razão pela qual o senhor fala sobre “irresponsabilidade organizada” como uma característica da sociedade de risco?

 

Ulrich Beck - Sim. Políticos dizem que não estão no comando, que eles no máximo regulam a estrutura para o mercado. Especialistas científicos dizem que meramente criam oportunidades tecnológicas: eles não decidem como elas serão implementadas. Gente de negócios diz que está simplesmente respondendo a uma demanda dos consumidores. A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento.

 

IHU - Como nós, individualmente e coletivamente, podemos viver sem certezas, sem garantias de segurança?

 

Ulrich Beck - Risco é um conceito muito ambíguo. Não é somente percebido e valorizado negativamente, mas também positivamente. Na verdade, a palavra “risco” (risk) parece ter vindo para o inglês do português ou do espanhol, a qual era usada para se referir à navegação em águas não mapeadas. A noção de risco é inseparável da condição de modernidade, de emoção e aventura.

 

Uma abordagem positiva de risco é a da origem da energia que cria liberdade e riqueza no mundo moderno. A principal questão é sobre a aceitação do risco e as suas condições. A aceitabilidade do risco depende se aqueles que perdem também recebem os benefícios. Não sendo esse o caso, o risco será inaceitável para aqueles afetados. E se mesmo o benefício estando na disputa - como no caso de alimentos geneticamente modificados - ele não será suficiente para demonstrar que o "risco residual" seja, estatisticamente falando, muito improvável. Um risco não pode ser considerado por si só. Ele está sempre emoldurado pelo critério usado na sua avaliação e influenciado pelas suposições culturais que o cercam. Ou colocando de outro modo, os riscos são tão grandes quanto aparentam. Isso é uma certeza, mas é uma certeza ainda maior no caso de incertezas fabricadas.

 

 

É contra este fundo que especialistas técnicos percebem as populações que os cercam como irracionais ou histéricas, ou porque parecem fazer maus cálculos de risco pessoal - como quando fumantes protestam contra energia nuclear - ou porque expressam a si mesmos com imagens sensacionalistas - como quando a Grã-Bretanha, visivelmente invadida pela opressão alemã, demonizou as suas maravilhas geneticamente modificadas como "comida Frankenstein". É uma frase de efeito e serviu como uma arma definitiva na guerra de palavras contra alimentos geneticamente modificados. Ela contém, contudo, a importante ideia de que mesmo riscos "objetivos" contêm julgamentos implícitos sobre o que é certo. Especialistas técnicos perderam seu monopólio sobre a racionalidade no sentido original: eles não ditam mais as proporções pelas quais julgamentos são medidos. Indicações de risco são baseadas em padrões culturais, expressadas tecnicamente, sobre o que ainda é e o que não é mais aceitável.

 

Quando cientistas dizem que um evento tem uma baixa probabilidade de acontecer, e por esta razão tem um risco negligenciável, eles estão necessariamente codificando seus julgamentos sobre compensações relativas. Então é errado considerar julgamentos sociais e culturais como coisas que apenas podem distorcer a percepção de risco. Sem julgamentos sociais e culturais, não existem riscos. Estes julgamentos constituem o risco mesmo se, frequentemente, de maneiras ocultas.

 

IHU - Que tipos de responsabilidades isso impõe sobre indivíduos, famílias e sociedades inteiras?

 

Ulrich Beck - É evidente que indivíduos e famílias estão sobrecarregados com a responsabilidade de decidir sobre a realidade dos riscos. Existe definitivamente uma necessidade por novas instituições. Deixe-me mostrar as consequências para a economia e para toda a sociedade. Riscos virtuais não precisam mais existir para serem percebidos como fato. Podemos criticá-los como riscos fantasmas, mas isso não importa economicamente. Percebidos como riscos, eles causam enormes perdas e desastres. Com isso, a distinção entre a percepção de riscos “reais” e “histéricos” não se sustenta.

 

 

Economicamente não faz diferença. A perda da disputa científica pelo estabelecimento de mecanismos e o domínio de percepções culturais têm duas implicações principais. Eles aumentam e reforçam a diversidade transnacional de padrões regulatórios. Essa diversidade pode causar uma enorme tensão não apenas domesticamente, mas também em sistemas de negócios globais, regionais e bilaterais. Mesmo instituições democráticas supranacionais existentes têm dificuldades em chegar a decisões.

 

Por exemplo, na União Europeia, que provavelmente fez o maior progresso em estabelecer juntas de decisão transnacionais, estados membros ainda aceitaram ou rejeitaram certificados de liberação da carne britânica de acordo com as suas próprias ideias. Assim, a inabilidade de gerenciar incertezas fabricadas nacionalmente e globalmente pode se tornar uma das principais forças contrárias ao neoliberalismo. Isso pode decepcionar amargamente aqueles que colocaram suas esperanças em soluções de mercado para problemas de segurança de consumidores. A recente legislação de proteção ao consumidor e de garantias de produtos mostrou uma clara tendência em direção à antecipação de perdas potenciais ao contrário de ser engrenado para perdas realmente sustentadas. Além disso, o ônus da prova parece estar se deslocando do consumidor para o produtor em alguns campos.

 

IHU - Como o senhor caracteriza a relação entre globalização e risco?

 

Ulrich Beck - Nós tocamos neste assunto antes. Muitos dos riscos com os quais nos confrontamos são globais pela sua própria natureza. Três dimensões de perigo podem ser diferenciadas na sociedade global de risco, cada uma seguindo uma diferente lógica de conflito. Essa reviravolta ou reprime outros temas, destrói ou valoriza prioridades:

 

  1. primeira, crise ecológica;
  2. segunda, crise financeira global;
  3. e terceira – a partir de 11 de setembro de 2001 – o perigo terrorista causado pela rede transnacional terrorista.

 

 

Nessas três dimensões de perigo, e além de todas as diferenças, um modelo comum de possibilidades e contradições políticas podem ser vistas na sociedade global em risco.

 

IHU - Como a sociedade mundial de risco está embasada? Alguns povos/sociedades correm mais risco de colapso do que outros?

 

Ulrich Beck - O termo “sociedade global de risco” não deve ser confundido com uma homogeneização do mundo, porque todas as regiões e culturas não são igualmente afetadas por um conjunto uniforme de riscos não quantificados e incontroláveis nas áreas de ecologia, economia e de redes terroristas. Ao contrário, riscos globais são por si só desigualmente distribuídos.

 

Eles se desdobram de diferentes maneiras em cada contexto concreto, mediados por históricos diferentes e padrões culturais e políticos. Na assim chamada periferia, os riscos globais surgem não como um processo interno, o qual pode ser combatido por meio de decisões nacionais autônomas, mas como um processo externo que é propelido por decisões feitas em outros países, especialmente no centro. As pessoas se sentem como reféns indefesas desses processos assim como correções são virtual e nacionalmente impossíveis.

 

IHU - Isso não é verdade também no assim chamado “centro”?

 

Ulrich Beck - Sim, mas há uma diferença. Uma área na qual a diferença é especialmente marcante é a experiência da crise financeira global, de modo que regiões inteiras na periferia podem ser mergulhadas em depressões que cidadãos do centro nem registram como crise. Além disso, ameaças ecológicas e terroristas também florescem com particular virulência em estados fracos que definem a periferia.

 

Existe uma razão dialética entre a experiência desigual de ser vitimado por riscos globais e a natureza transfronteira dos problemas. Este é exatamente o aspecto transnacional que faz a cooperação indispensável para a sua solução e que realmente dá um aspecto cosmopolita. O colapso do mercado financeiro global ou as mudanças climáticas afetam de maneira bem diferente as regiões. Entretanto, isso não muda o princípio de que todos são afetados, e todos podem ser potencialmente afetados de maneiras piores. Assim, de certo modo, estes
problemas dotam cada país com um interesse cosmopolita comum, o que significa que a reflexão do público globalizado sobre conflitos de risco global produz a base de uma “comunidade do destino”.

 

IHU - As pessoas estão conscientes dessa “comunidade do destino”? Por exemplo, os chineses sentem que são parte de uma comunidade do destino com os europeus mesmo no que diz respeito ao aquecimento global?

 

Ulrich Beck - Eles não sentem isso em relação ao aquecimento global ou aos direitos humanos, mas, ao menos para o momento histórico, o sentem em relação à ameaça terrorista. Mesmo o Le Monde usou a seguinte manchete: “Somos todos americanos”. Os chineses fizeram uma ponte sobre o golfo e se uniu à coalizão dos EUA contra o terrorismo. Além disso, é intelectualmente óbvio também que os problemas globais têm apenas solução global e demandam cooperação global. Entretanto, entre o potencial da cooperação global e sua realização há um bocado de conflitos de risco. Exemplos disso são evidentes e infindáveis: Pense nas discussões a respeito do “risco do bife”, a crise da vaca louca na Europa e agora chegando aos EUA, o corrente conflito de risco a respeito da alimentação modificada geneticamente (transgênica), do aquecimento global, da AIDS, da proliferação de armas de destruição em massa e por último, mas não menos importante, como definir e combater o terrorismo internacional. E, no entanto, esses conflitos servem ainda a uma função integrativa e iluminadora, pois elas deixam claro que soluções globais devem ser encontradas e que isso não se dará com guerra, mas apenas com negociações e contratos.

 

 

IHU – O senhor quer dizer que a guerra no Iraque – que significa combater o risco global do terrorismo – tem uma função integrativa e iluminadora?

 

Ulrich Beck - Sim, de alguma forma ela tem tal função! O que eu realmente nunca esperava está acontecendo agora: O superpoder dos EUA finalmente se dá conta de que não dá para “jogar boliche sozinho”. E nós, europeus, também, começamos a aprender a não mais nos concentrarmos naquilo de que gostamos para nos concentrarmos na maioria: Europa. Se a democracia no Iraque falhou, isso irá ferir a Europa também.

 

No mundo interdependente no qual vivemos, não há lado de fora, não há opção de isolar-se. Então as pessoas estão percebendo: a ameaça terrorista conecta pessoas que não querem se conectar e forçando-as a falarem e ouvirem umas às outras. Então nós, europeus, também, devemos perguntar e responder às questões: Qual é nossa visão do mundo do século XXI? Qual é nossa contribuição para resolver, por exemplo, o conflito entre Israel e a Palestina? Para reduzir a ameaça terrorista, não deveríamos abrir nossas fronteiras e investir mais no desenvolvimento de países pobres?

 

IHU - Há “oportunidades”, “benefícios” possíveis da sociedade de risco?

 

Ulrich Beck -lugar para esperança. Em uma época em que a crença nos governantes, na nação, na classe desaparece, a sabida e reconhecida globalidade do perigo transforma-se em uma fonte de associações, abrindo novas perspectivas globais políticas para a ação. Os ataques terroristas (ou os terríveis ataques) aproximaram os estados e moldaram o entendimento do que a globalização realmente é: um comunidade global do destino, confrontada com uma obsessão violenta e destrutiva. Como é possível, então, a política na era da globalização? Minha resposta é: por meio da percepção da globalidade do perigo, que rende o aparentemente resistente sistema fluido e maleável de políticas internacionais e nacionais.

 

 

O medo cultiva uma situação pseudo-revolucionária, o que sabidamente pode ser usado de muitas maneiras diferentes. De novo e de novo perguntam e discutem: o que pode unificar o mundo? A resposta experimental é um ataque de Marte.

 

Esse terrorismo é um ataque do “interior de Marte”. Por um instante histórico, os campos e nações dispersos do mundo estão unificados contra o inimigo comum chamado terrorismo global. É precisamente a universalização da ameaça terrorista contra os estados do mundo que muda a guerra contra o terror global para um desafio para as grandes políticas, em que novas alianças serão forjadas entre campos antagonistas, conflitos regionais são suspensos, e o mapa das políticas globais é renovado.

 

 

IHU - Essa não é uma esperança muito ambivalente?

 

Ulrich Beck - O que precisamos, eu sugiro, é uma "cultura de incerteza", o que deve ser claramente distinguido de "cultura do risco residual", por um lado, e uma cultura de "não-risco" ou "segura", por outro. A chave para uma cultura de incertezas repousa na prontidão para uma conversa aberta para abordar o risco; a voluntariedade de reconhecer a diferença entre riscos quantificados e incerteza não quantificada; a disposição de negociar entre diferentes racionalidades maior que para engajar-se em denuncismo mútuo; a voluntariedade de erigir tabus modernos sobre bases racionais; e, por fim, mas não menos importante, um reconhecimento da importância central de demonstrar a vontade coletiva de agir de forma responsável no que diz respeito às penas que sempre irão ocorrer apesar de qualquer precaução.

 

Uma cultura de incertezas não mais irá falar despreocupadamente de "riscos residuais", pois cada um irá reconhecer que os riscos são residuais apenas se acontecem a outras pessoas, e o ponto chave de uma comunidade democrática é que assumimos a responsabilidade juntos. A cultura da incerteza é também diferente da "cultura da segurança". Com isso, eu quero dizer uma cultura na qual segurança absoluta é considerada um benefício pelo qual a sociedade deve lutar. Tal cultura deve sufocar toda inovação na sua origem.

 

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