Um olhar micro e uma cegueira macro. A hiperespecialização da ciência leva à atrofia de um ser humano integral. Entrevista especial com Peter Schulz

Para o professor, esse é um processo de “cisão cultural que se aprofundou nas últimas décadas”. Mas, em contrapartida, já há percepção da necessidade de uma formação interdisciplinar

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 08 Março 2022

 
A hiperespecialização, que levou o campo científico a outro patamar, poderia ser lida como um dos efeitos colaterais da Modernidade? O professor Peter Schulz acredita que sim. Se por um lado mergulhamos fundo em questões e conseguimos centrar o olhar no que antes era imperceptível, por outro, parece termos perdido a capacidade de enxergar além de nossos livros ou microscópios. “A perda de uma perspectiva de formação cultural mais ampla foi produto da profissionalização da ciência. Aqui é bom lembrar a introdução do ensino de ciências no ensino fundamental e médio a partir de meados do século XIX”, observa. E acrescenta: “essa cisão cultural se aprofundou nas últimas décadas, com a hiperespecialização na formação universitária”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Schulz reflete como nós, enquanto seres humanos, fomos perdendo a capacidade de complexificar nossos saberes. Além disso, como consequência, parecemos nos fechar cada vez mais em nós mesmos, nos nossos problemas de pesquisa e modos de vida. Um exemplo disso é o que o próprio professor tem visto na formação universitária. “Em muitos programas de pós-graduação, um estudante, para obter o mestrado em dois anos, precisa ter um artigo científico pelo menos aceito para publicação, por exemplo. Assim, em dois anos, ele ou ela precisa se familiarizar com a literatura relacionada ao tema da dissertação, amadurecer as hipóteses e metodologia, coletar e analisar os dados, colocá-los em perspectiva, refletir sobre suas limitações e incompletudes, pensar nas potencialidades”, detalha.

 

Todo esse ritmo descrito por Schulz ainda antes da escrita do trabalho final. Ou seja, um verdadeiro “vire-se e salve-se quem puder”, sem nem olhar ao lado. “Assim, vemos profissionais em humanidades presos a poucos autores dentro de recortes teóricos restritos, médicos hiperespecializados e suas consultas de, às vezes, três minutos; engenheiros que simplesmente resolvem problemas colocados por outros, sem participar de sua discussão e elaboração”, lamenta.

 

Porém, apesar de tudo, há saídas possíveis. Uma delas, segundo o professor, está na busca por cursos com currículos que valorizam mais do que uma hiperespecialização. “Temos o surgimento, nesse século, de bacharelados interdisciplinares, que, no entanto, ainda não se espalharam pelo país como poderiam”, aponta. Outra é superar o viés tecnicista que parece ter inundado também a escola básica. E, mais uma vez, para ele, a universidade tem parte nisso. “São as universidades que formam, precisando formar mais, os professores do ensino fundamental, médio e profissionalizante”, defende.

 

Provocado, depois de uma ampla reflexão crítica, Schulz encerra a entrevista com esperança. Perguntado sobre o que diria a alunos que o questionassem sobre o futuro, responde: “lembrem-se que o aprendizado não se divide em semestres, é a oportunidade para promover o nosso autoconhecimento e a potencialidade da nossa autoformação, para os quais a universidade precisa dar o espaço e condições necessários. Contem comigo”.

 

Peter Alexander Bleinroth Schulz (Foto: Arquivo pessoal)

 

Peter Alexander Bleinroth Schulz possui graduação em Física, mestrado em Física e doutorado em Física, todos títulos obtidos pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp. Realizou, ainda, estágio sanduíche na Universidad Autonoma de Madrid, na Espanha. Também realizou pós-doutorado no Instituto Max Planck de Física do Estado Sólido, em Stuttgart, na Alemanha. Nos últimos anos, tem se dedicado a atividades de divulgação científica, estudos quantitativos de ciência e estudos críticos de universidades. Atua como docente do Núcleo Básico Comum da Faculdade Ciências Aplicadas e do curso de Mestrado Interdisciplinar de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da Unicamp.

 

Entre os artigos recentemente publicados, destacamos: Reducionismo versus complexidade: O pensamento de Phil Anderson e sua influência em outras áreas (Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 43, 2021) e a resenha do livro Os avanços da ciência poderiam acabar com a filosofia?, de Ronaldo Marin e Gustavo Rick Amara (TECCOGS: Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, v. 21, p. 214-217, 2020)

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Em um dos seus textos recentes, o senhor reflete sobre a história de três padres que tiveram protagonismo no campo científico. Ou seja, mais do que uma formação teológica e filosófica, traziam também uma bagagem de outras áreas. Hoje, perdemos essa perspectiva de uma formação cultural muito mais ampla? Por que isso ocorre?

 

Peter Schulz – A história dos três padres [Roberto Landell de Moura (1861-1928); Gregor Mendel (1822-1884) e George Lemaitre (1894-1966)] têm em comum essa bagagem mais ampla mencionada, mas eles apresentam diferenças importantes, que ajudam na resposta.

Primeiro, o padre Landell de Moura; ao que tudo indica (existem muitas lacunas sobre sua trajetória), sua formação científica foi autodidata. No entanto, foi reconhecido como cientista a partir do momento em que suas patentes foram concedidas. Era, portanto, um “cientista amador”, figura de grande importância no desenvolvimento da ciência em seu início, mas que foi sendo alijada à medida que a ciência se profissionalizou, processo que se deu ao longo do século XIX.

 


padre Roberto Landell de Moura | Foto: Wikipédia

 

Mendel, que viveu antes de Landell de Moura, teve uma educação científica formal, mas não realizou suas pesquisas em um “ambiente profissional de pesquisa”, ou seja, como cientista em uma universidade ou outra instituição de pesquisa. A delimitação do espaço profissional da ciência também fez parte do processo mencionado.

 


padre Gregor Mendel | Foto Wikipédia

 

Por fim, Lemaitre, padre e cientista da primeira metade do século XX, teve uma educação formal em ciência e atuou nos espaços formais de pesquisa, foi professor universitário. Lemaitre foi contemporâneo do ensaio de Charles Percy Snow, “As duas culturas”, de 1959. Esse influente ensaio denuncia exatamente essa separação entre a cultura científica e humanística, separação prejudicial a ambas.

 


Georges Lemaitre | Foto: Wikipédia

 

Entre o “científico” e o “clássico”

 

Ou seja, a perda de uma perspectiva de formação cultural mais ampla foi produto da profissionalização da ciência. Aqui é bom lembrar a introdução do ensino de ciências no ensino fundamental e médio a partir de meados do século XIX (A ciência moderna começou lá no século XVII, mas foi parar nas escolas apenas duzentos depois). Nessa introdução de um currículo científico nas escolas, seguiu-se a separação entre “científico” e “clássico”, como ainda eram chamadas, já avançada a segunda metade do século passado, as opções que eu tinha para fazer o ensino médio aqui no Brasil.

Essa cisão cultural se aprofundou nas últimas décadas, com a hiperespecialização na formação universitária. Por outro lado, cresce a percepção de que precisamos de uma formação interdisciplinar, ou seja, uma formação cultural mais abrangente, para dar conta dos problemas cada vez mais complexos que enfrentamos.

 

 

IHU – Nesse seu mesmo texto, o senhor chama à atenção que os três sacerdotes foram advertidos pela Igreja, que os levou a voltarem mais para atividades clericais. Como o senhor lê esse movimento?

 

Peter Schulz – Essas advertências não foram sobre os três, Lemaitre sempre foi bem-visto pela igreja. Os outros dois trabalhavam para a igreja sem nenhum vínculo formal com uma instituição científica, por isso acabaram cobrados para executar suas tarefas dentro da instituição em que se encontravam.

Vejo esse aspecto como um movimento natural. Talvez a igreja pudesse ter algum “departamento científico” para o qual Mendel e Landell de Moura poderiam se transferir, mas isso seria muito improvável no Brasil no começo do século XX ou no Império Austro-Húngaro no século XIX.

 

 

IHU – No ano passado, um documento em tom de apelo, escrito por um grupo de 10 teólogas e teólogos, o Salvar a Fraternidade, chamava a Teologia e a Igreja como um todo a saírem de si. O objetivo era se abrir e se conectar com a concretude da vida e a conjuntura global. Podemos afirmar que era esse espírito que animava figuras como os três padres que o senhor cita?

 

Peter Schulz – Eu li o documento “Salvar a Fraternidade” e percebo-o muito alinhado, dentro de suas características, aos movimentos na ciência em favor da interdisciplinaridade e atenção às questões de desenvolvimento sustentável, bem como às tecnologias mais críticas socialmente. Quanto aos padres em questão, acho que tinham, sim, uma percepção desse espírito de uma maneira talvez inconsciente, explorando as potencialidades das conexões com a concretude da vida e a conjuntura global.

Mas é bom lembrar que as conjunturas globais são diferentes em distintas épocas. No entanto, creio que podemos considerá-los precursores isolados de um movimento, que hoje, dada a necessidade tão urgente quanto importante, busca coletivizar-se e institucionalizar-se.

 

 

IHU – A sua reflexão recorda a história de três padres, mas hoje, levando em conta os valores da Modernidade, poderíamos empreender a mesma lógica a qualquer outro profissional, um jornalista, sociólogo, filósofo, médico, químico, engenheiro, historiador, por exemplo?

 

Peter Schulz – Sem dúvida, em todas as áreas mencionadas e, provavelmente, em todas as outras, percebemos os efeitos da hiperespecialização e, também, de uma precarização, no sentido da velocidade em gerar informação em detrimento de um rigor e reflexão maiores, como observamos em muitos produtos jornalísticos.

Assim, vemos profissionais em humanidades presos a poucos autores dentro de recortes teóricos restritos, médicos hiperespecializados e suas consultas de, às vezes, três minutos; engenheiros que simplesmente resolvem problemas colocados por outros, sem participar da sua discussão e elaboração.

 

 

IHU – Esse “achatamento” e compartimentação dos saberes, tão típicos da Modernidade, pode ser um dos ingredientes que levam as pessoas a se fecharem em si mesmas, comprometendo-se somente com seus interesses e de suas áreas muito específicas?

 

Peter Schulz – Acredito que sim, não tinha pensado antes nessa perspectiva quanto ao achatamento e compartimentação e encasulamento das pessoas. Vou me ater ao que observo nas universidades quanto à pesquisa.

A cobrança que se instaurou é por número de artigos publicados. Em muitos programas de pós-graduação, um estudante, para obter o mestrado em dois anos, precisa ter um artigo científico pelo menos aceito para publicação, por exemplo. Assim, em dois anos, ele ou ela precisa se familiarizar com a literatura relacionada ao tema da dissertação, amadurecer as hipóteses e metodologia, coletar e analisar os dados, colocá-los em perspectiva, refletir sobre suas limitações e incompletudes, pensar nas potencialidades. Antes de escrever sua dissertação.

Tudo isso leva tempo, tempo necessário para uma formação rigorosa e contextualizadora. Ora, além disso, ele ou ela precisa ainda escrever um artigo e tê-lo pelo menos aceito para publicação no mesmo prazo. Isso só é possível às custas da precarização dos outros processos anteriores. Com isso, formamos técnicos e não pesquisadores ou profissionais críticos.

 

IHU – Em que medida o senhor considera que o documento Salvar a Fraternidade deve ser lido e assimilado por outros campos, outras áreas do saber?

 

Peter Schulz – Como eu disse, gostei do documento e acredito, sim. Sua leitura seria muito útil em outros campos, provocando uma discussão de como ele poderia e deveria ser adaptado. Para quem não leu o documento, destaco o trecho abaixo que deve ser uma preocupação em todas as áreas e saberes.

“Não é mais possível, diante das urgências dos novos desafios que enfrentamos, permanecer inertes e continuar repetindo cansativamente o pensamento de sempre. Em vez disso, há uma urgência de que a teologia e a ciência empreendam com criatividade o confronto com os novos cenários que o desenvolvimento tecnológico e as mudanças antropológicas colocam diante dos nossos olhos”. 

 

IHU – Na Europa, há discussões para formação de profissionais com uma bagagem cultural mais ampla. Mas, aqui mesmo no Brasil, houve um tempo em que isso já ocorria. Quando e como perdemos isso de vista?

 

Peter Schulz – Tanto a Europa quanto o Brasil foram palcos dessa hiperespecialização, basta ver o processo de Bolonha, que em linhas gerais promoveria uma bagagem cultural mais ampla, mas que na prática, com a diminuição do tempo de permanência de estudantes nas universidades, pode levar ao contrário em nome da eficiência. No Brasil, como em outros lugares, a perspectiva de uma bagagem cultural mais ampla se dá no chamado “currículo informal”: o conjunto de atividades extracurriculares particulares de cada universidade. São os eventos, palestras, grupos de atividades culturais e de organizações estudantis.

No aspecto formal, temos o surgimento, nesse século, de bacharelados interdisciplinares, que, no entanto, ainda não se espalharam pelo país como poderiam. No caso da faculdade onde estou lotado (faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp), temos seis cursos de graduação não separados em departamentos em diferentes áreas – engenharia, saúde e ciências sociais aplicadas – com um núcleo de disciplinas de humanidades e conteúdos interdisciplinares que totalizam cerca de 15% dos créditos em cada curso.

 

IHU – Na prática, como essas disciplinas se organizam?

 

Peter Schulz – As disciplinas, três obrigatórias para todos os seis cursos, outras obrigatórias para alguns e um conjunto de eletivas constituem o Núcleo Geral Comum, que “tem como objetivo buscar uma formação humanística para criar um profissional capaz de lidar com as múltiplas e rápidas transformações da realidade, consciente do seu papel social e apto a intervir na sociedade para transformá-la de acordo com as necessidades do nosso tempo”.

Não é um conjunto de disciplinas tradicionais, mas sim com ementas interdisciplinares. A disciplina introdutória, por exemplo, é “Natureza e tecnologia na Sociedade Contemporânea”. Uma outra disciplina obrigatória é “Introdução à Ciência dos dados e à Informação”, introduzida recentemente dada a absoluta necessidade de abordar dados e informações de maneira crítica.

As turmas são misturadas, assim estudantes de engenharia convivem com estudantes de nutrição e ciências dos esportes, ou administração e administração pública. Em várias turmas de disciplinas eletivas, temos estudantes dos seis cursos matriculados. Esse núcleo de disciplinas é parte intrínseca dos currículos plenos dos seis bacharelados, espalham-se ao longo de vários semestres e não constituem um certificado à parte.

 

IHU – Como os alunos encaram essa proposta?

 

Peter Schulz – Os alunos estranharam bastante. Quando a faculdade começou as atividades em 2009, a expectativa era de se defrontar apenas com a formação técnica imaginada para o curso escolhido. Hoje, já não estranham mais, já é uma marca da faculdade e, devemos lembrar, naquele começo não havia veteranos com quem os calouros pudessem conversar.

Hoje, a percepção positiva é crescente à medida que os estudantes vão avançando nos semestres. Muitos deles, no entanto, começaram a se queixar de que as disciplinas são muito tradicionais, que caberia mais interdisciplinaridade e debate. Estudantes são a alma da universidade. Por outro lado, existe sempre alguma resistência por parte de alguns docentes das áreas técnicas, que acham que esse núcleo rouba espaço da formação específica especializada.

Por sua vez, o tal mercado de trabalho recebe bem os nossos egressos, mas ainda precisamos pesquisar mais a fundo essa recepção e a percepção dos egressos. No momento, estou orientando uma dissertação de mestrado sobre o tema.

 

 

IHU – Enquanto se discute a emergência de uma formação integral, mais ampla e com largo lastro cultural, no Brasil, vemos movimentos que parecem incentivar uma formação mais tecnicista. Como analisas esse cenário?

 

Peter Schulz – A formação tecnicista é a mais confortável, ou menos incômoda; é simplesmente continuar com o mais do mesmo. Isso é difícil de ser mudado no Ensino Médio, a começar pela carga de trabalho e o desestímulo. Como pensar em mudanças, que dão trabalho, se grande parte dos professores tem uma carga horária de 40 aulas semanais?

Além disso, uma boa parte dos professores não tem a formação adequada, pois formamos poucos deles. Trata-se de uma carreira desprestigiada, para dizer o mínimo, e, assim, pouco atrativa para jovens que ingressam no ensino superior. Por isso, eu tenho minhas dúvidas quanto ao “novo ensino médio”, que no papel é bom, mas sua implementação parece muito difícil na realidade brasileira. Temo que amplie ainda mais a lacuna entre a maior parte do ensino público e as escolas privadas de elite.

 

 

Ensino superior

 

No ensino superior, o tecnicismo na formação é produto da hiperespecialização, por um lado, e, por outro, a sobrevalorização da pesquisa como critério de contratação e progressão na carreira nas universidades públicas. O produtivismo acadêmico leva o ensino a ser visto como obstáculo na carreira para boa parte do corpo docente.

Complementando o quadro, a maioria das instituições privadas de ensino superior são voltadas ao ensino, sem a pesquisa em suas missões. Mas aqui o cenário também não me parece promissor, pois perde-se muito a dimensão da pesquisa, que é, na ênfase adequada, levar a uma mudança desse cenário. Acredito que as universidades confessionais têm aí uma grande oportunidade. E as públicas precisam rever seus chamados “critérios de excelência” e pensar mais em suas missões em vez dos rankings.

 

 

IHU – Qual o papel de instituições como as universidades e a própria escola básica numa formação integral dos sujeitos?

 

Peter Schulz – Absolutamente imprescindíveis, mas o ensino precisa de mudanças. Em algumas universidades os problemas não são tão graves, talvez. O currículo informal compensa o tecnicismo de muitas das aulas. Mas, tanto na educação básica quanto na superior, a defesa do conteúdo técnico, que é, claro, necessário, é realizada em oposição à formação humanística, que não pode mais ser vista como periférica.

 

O caso do terraplanismo

 

Como exemplo, temos a onda (espero que seja mesmo uma onda) do terraplanismo. Acompanho comentários de muitos terraplanistas, que me parecem legítimos: elencam experiências do cotidiano que para eles são consistentes com uma terra plana e não esférica. Mas o que fazemos na escola? Dizemos que a terra é esférica, sem comentar toda a ciência que demonstra porque ela é assim e que não há outro formato alternativo possível. Nessa história, quando muito, Eratóstenes é lembrado como o grego que determinou a circunferência da Terra. Mas muitos outros gregos fizeram isso com métodos diferentes, como Aristarco de Samos e Hiparco de Niceia. Mas isso fica de lado.

Em muitos lugares cultiva-se ainda o mito de que na Idade Média pensava-se que a terra era plana. Nada mais longe dos fatos históricos. O “tratado da esfera" de João de Sacrobosco era o mais conhecido livro-texto de astronomia e matemática nas universidades medievais, com inúmeras provas de que a Terra é redonda. O tema junta história, geografia, matemática e física. Nessa última, o ensino adequado da gravidade eliminaria as aparentes contradições entre a experiência cotidiana e o fato de a Terra ser esférica.

E nas universidades? Ciências também são ensinadas apartadas de suas histórias, processos, contextos. Precisa mudar, pois são esses os elementos que fazem a ponte para uma formação cultural abrangente.

 

 

IHU – Dezenas de especialistas, de diferentes áreas, defendem que o desenvolvimento de uma nação depende da educação. Mas de que educação estão falando? E que educação deveria ser?

 

Peter Schulz – Não sou especialista, mas concordo que o desenvolvimento de uma nação depende da educação. Mas antes de se perguntar de que educação estamos falando, precisamos nos perguntar de que desenvolvimento estamos falando. O espírito neoliberal se apossou da educação sem que muitos o percebessem. Precisamos de uma educação para um desenvolvimento econômico e, principalmente social, sustentável. Isso exige uma educação crítica para o exercício da cidadania e voltada ao bem público. De outra forma, não seremos capazes de lidar com as mudanças cada vez mais rápidas e complexas, iremos sempre a reboque.

 

IHU – Qual é o papel do Estado na formação desses sujeitos e profissionais do século XXI?

 

Peter Schulz – O papel do Estado é promover os bens públicos e comuns, mas esse papel muitas vezes é apenas uma maquiagem de ações que obedecem a uma agenda neoliberal.

 

 

IHU – Em governos passados, autointitulados progressistas, houve grandes investimentos nas universidades brasileiras. Isso foi motivo de críticas e tem levado os governos mais recentes a investirem no ensino médio e educação profissionalizante. Como o senhor vê esse cenário? Erramos no passado? Estamos, novamente, errando no presente?

 

Peter Schulz – Não erramos no passado e a oposição entre universidades e ensinos médio e profissionalizante é um falso dilema, alimentado desde os anos 1980 através de relatórios do Banco Mundial. As universidades públicas são vistas, nesse viés, apenas como universidades de ensino em uma perspectiva estreita como se fosse um grande ensino médio superior. O papel das universidades, ancorado na indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, não pode ser reduzido.

O exemplo colocado na pergunta é ilustrativo. São as universidades que formam, precisando formar mais, os professores do ensino fundamental, médio e profissionalizante. Certamente, com os terríveis cortes no ensino superior, estamos errando no presente, comprometendo o futuro, aprofundando as desigualdades.

 

IHU – No Brasil, o público e o privado tendem a se misturar com certa benevolência das elites financeiras e políticas. Como esse embaralhamento entre o público e o privado pode impactar a educação, desde a escola básica à universidade?

 

Peter Schulz – Existem conflitos de interesse importantes com o trânsito de influências entre grandes grupos privados e autoridades governamentais, cujas consequências tendem a ser o privilégio dos grupos privados em detrimento dos interesses coletivos e sociais. Um grande problema ainda é o embaralhamento na percepção pública das universidades públicas.

A população em geral não conhece as universidades públicas e seu papel, sempre me perguntam quanto é a mensalidade de tal curso na Unicamp. Não há a percepção de que não são cobradas taxas escolares em universidades públicas, não se faz a conexão entre as universidades e o papel delas na saúde. Nos pontos de ônibus de Campinas, para a população usuária da linha Unicamp, esses ônibus levam a um hospital e não a uma universidade. Nesse sentido, as universidades públicas precisam fazer um esforço bem maior de comunicação com a sociedade.

 

 

IHU – Atualmente, as universidades públicas têm denunciado cortes em recursos para ensino e pesquisa. Por outro lado, vemos a multiplicação de instituições privadas ofertando cursos de graduação, especialmente em modalidade a distância. Como podemos compreender esse contexto? O que isso revela sobre os projetos do governo relacionados ao ensino superior?

 

Peter Schulz – Os cortes em recursos para o ensino e a pesquisa estrangulam as universidades, comprometendo seriamente o seu papel e, com isso, abala-se o papel transformador que a educação precisa ter. O ensino a distância precisa ser cuidadosamente pensado, pois, nos seus formatos atuais, não proporciona essa experiência transformadora.

A transição para o ensino remoto nesses dois anos de pandemia exacerbou ainda mais a ideia de que o ensino pode ser a distância. Não pode, o presencial é a essência da universidade, da ideia de pertencimento. Sem isso, a universidade vira um logo, uma chancela e não a experiência transformadora mencionada.

A forte migração para o ensino a distância precariza a educação e diminui muito os custos e, portanto, aumenta os lucros de instituições com fins lucrativos. A mistura dos dois levou, propositalmente, na minha opinião, à sugestão de que o sistema público é ineficiente e caro no relatório “Um Ajuste justo”, de 2017, do Banco Mundial. Computava-se o total de estudantes (a maioria no ensino a distância) nas instituições com fins lucrativos no cálculo dos custos por estudante, enviesando o resultado em relação às instituições públicas e privadas sem fins lucrativos. Esquecia-se, também propositadamente, os custos de pesquisa e de serviço à população na área da saúde. Reduz-se assim o papel da universidade pública para construir uma percepção negativa dela.

 

 

IHU – Falamos da necessidade de uma formação ampla, da escola básica à universidade, mas estamos ainda passando por uma pandemia que transformou e tem transformado a educação no país. Muitos alunos da escola básica têm avançado sem conhecimento de conteúdos mínimos de sua etapa. Quais as consequências disso para uma nação?

 

Peter Schulz – As consequências são terríveis, rumo a uma geração acrítica, treinada para o uso operacional de ferramentas sem o empoderamento de perceber criticamente o seu entorno. O acolhimento nessa volta ao presencial precisa de uma atenção especial a isso, mas vem sendo uma volta como se nada tivesse acontecido, apenas uma pausa no filme que estávamos assistindo e fomos fazer outra coisa enquanto isso.

 

IHU – Como podemos construir caminhos para superar os déficits e desigualdades agudizadas na pandemia?

 

Peter Schulz – Discutir os aprendizados durante a pandemia, as experiências de cada um, o que cada um sentiu falta, quais foram as alternativas pensadas e realizadas e como essa experiência toda se reconecta com a realidade pós-pandemia. Se pensarmos apenas no “conteúdo perdido”, estaremos apenas maquiando os déficits e desigualdades. O que precisamos é conscientizar sobre eles para tentar superá-los.

 

 

IHU – Que mensagem o senhor diria para um aluno que hoje chega em sala de aula e pergunta para o senhor: “professor, o que será de nós no futuro? Como podemos resistir?”.

 

Peter Schulz – Estamos de volta e juntos vamos discutir o nosso futuro, vamos juntos pensar os efeitos diferentes da pandemia sobre cada um de nós e compartilharemos o que cada um aprendeu, porque todos aprendemos alguma coisa. É com isso que aprenderemos a resistir, junto com nossa solidariedade.

E lenta e paulatinamente, no ritmo possível, vamos revisar o que ficou para trás. Lembrem-se que o aprendizado não se divide em semestres, é a oportunidade para promover o nosso autoconhecimento e a potencialidade da nossa autoformação, para os quais a universidade precisa dar o espaço e condições necessários. Contem comigo.

 

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