“Muita cultura e pouco mundo os males da ciência são”. Entrevista especial com Stelio Marras

Ao abordar a questão da transdisciplinaridade no pensamento de Bruno Latour, o entrevistado sustenta que o conhecimento transdisciplinar não deveria ser pensado como antônimo do disciplinar

Foto: PxHere

Por: Edição: Ricardo Machado e Patricia Fachin | 13 Dezembro 2021

 

Quando Michel Serres disse, há 30 anos, que “A nossa cultura tem horror ao mundo”, fazia, ao mesmo tempo, uma figuração e uma provocação que continua atual. Esse é o mote e a inspiração da paráfrase do professor e pesquisador Stelio Marras, durante sua fala no Instituto Humanitas Unisinos - IHU intitulada A transdisciplinaridade do pensamento de Latour. “De modo brincalhão, como o Macunaíma, do Mário de Andrade, eu faria uma paráfrase assim: muita cultura e pouco mundo os males da ciência são. É claro que, do outro lado da cerca, as ciências naturais não sabem bem o que fazer com a cultura. De um e de outro lado, nós notamos, no mais das vezes, uma solução pelo reducionismo”, aponta Marras na conferência que agora é publicada em formato de entrevista.

 

É evidente, por inúmeras razões, que há continuidades entre o que chamamos cultura e natureza e que a ruptura tipicamente moderna dessas duas dimensões artificializa e tenta purificar a forma como compreendemos o mundo. Contudo, tão importante quanto estas continuidades, como, por exemplo, o efeito antropogênico das condições de degradação ambiental e a globalização na disseminação do novo coronavírus, são as descontinuidades. Isso significa que talvez não seja inteligente abandonar o conhecimento disciplinar em detrimento do transdisciplinar, mas conjugar um e outro conforme o caso.

 

A hipótese que o professor Marras apresenta é a seguinte: “Nós, modernos, povo da ciência, dependemos, nas nossas experimentações da arte, de reestabelecer fronteiras entre humanos e não humanos como condição para desenvolver terapêuticas e imunizações artificiais – no caso da covid-19 –, ou para oferecer respostas ao antropoceno”, propõe, em na conferência proferida no 2º Ciclo de Estudos: A (in)existência de um mundo comum. Pensamento vivo e mudanças possíveis à luz de Bruno Latour

 

“É fácil abordagens transdisciplinares se tornarem presas de novos abstracionismos, flutuar em superficialidades e, de repente, [o pesquisador] se vê fazendo pontes muito mal-ajambradas. Por isso é preciso ser sempre vigilante e resistir a tentações de totalizar o real ou resistir ficar repetindo teorias gerais e inférteis”, acrescenta.

 

Stelio Marras (Foto: Reprodução | Youtube)

 

Stelio Marras é professor e pesquisador em antropologia do Instituto de Estudos Brasileiros - IEB da Universidade de São Paulo - USP. Bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutor em antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orienta pesquisas pelo Programa de Pós-Graduação "Culturas e Identidades Brasileiras" do IEB/USP, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH/USP e, como Professor Colaborador, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do IFCH/Unicamp.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como a transdisciplinaridade é abordada na obra de Bruno Latour?

 

Stelio Marras – O tema da transdisciplinaridade nesse autor tão importante no pensamento contemporâneo não é algo que participa de suas reflexões centrais. Como tema, é algo lateral. Se fosse para sugerir um livro que eu julgo o mais trans ou interdisciplinar, eu sugeriria o trabalho de uma importante e antiga interlocutora do Latour, que é a filósofa da ciência Isabelle Stengers. Ela com seu ex-orientador, Ilya Prigogine, que é o ganhador do Prêmio Nobel de Química, em 1977, com seu trabalho sobre termodinâmica. Eles publicaram, originalmente em 1978, A nova aliança: Metamorfose da ciência (Brasília: Universidade de Brasília, 1991), e, por ser um trabalho tão radical, é o mais inter ou transdisciplinar com o qual eu já topei, e por isso fizemos, um tempo atrás, um curso de pós-graduação para ler capítulo a capítulo desse difícil livro. Na época, contamos com vários colaboradores, gente da filosofia, cosmologia física, etnologia etc. para entender alguns dos luminosos achados e não menos luminosas passagens que o trabalho oferece.

Quanto ao Latour, se ele não se demorou em específico ao tema da transdisciplinaridade – o que até pode ser que sim, não fiz uma busca tão minuciosa, além do fato de que ele produz muito e eu sou leitor vagaroso –, isso não significa que não podemos derivar abordagens deste tipo na obra dele. É claro que podemos. Há por onde pensar o autor e sua obra face a esse tema.

Eu pensei em começar com o trecho de uma outra entrevista do filósofo francês Michel Serres, outra importante influência no pensamento do Latour. Numa das entrevistas que ele deu ao Latour, no livro chamado Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo. Conversas com Bruno Latour (Editora Instituto Piaget, 1996), Serres pergunta o seguinte: “Como é possível que as ciências humanas ou sociais nunca falem do mundo, como se os grupos permanecessem no vazio? Como é possível que as ciências ditas pesadas, duras, não tomem os homens em consideração? As suas falhas respectivas (das ciências humanas e naturais) evidenciam frontalmente o problema. Como podem os nossos principais saberes continuar a ser hemiplégicos? Ensiná-los a andar com os dois pés, utilizar as duas mãos, parece-me um dos deveres da filosofia”.

 

 

Nesse mesmo sentido, e no mesmo autor, o Serres, agora me referindo a outro livro chamado O contrato natural (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991) – em provocação clara ao Contrato social – ele diz uma frase que dá vontade de tatuar no corpo ou em um corpo diante de gaia, das mudanças climáticas, do antropoceno, diante da degradação ambiental e ecológica que vivemos e que as próximas gerações inevitavelmente viverão cada vez mais. A frase é: “A nossa cultura tem horror ao mundo”.

De modo brincalhão, como o Macunaíma, do Mário de Andrade, eu faria uma paráfrase assim: muita cultura e pouco mundo os males da ciência são. É claro que, do outro lado da cerca, as ciências naturais não sabem bem o que fazer com a cultura. De um e de outro lado, nós notamos, no mais das vezes, uma solução pelo reducionismo que é a naturalização do social, a biologização, por exemplo; mas de outro a sociologização do natural, o construtivismo, o relativismo e por aí vai. E, também, no mais das vezes, uma guerra se dá aí, uma guerra das ciências entre naturalismo e relativismo cultural, entre racionalismo e construtivismo social na disputa pelo real.

O Latour, assim como a Stengers, propõe, ao descrever esse reducionismo de lado a lado, descobrir o princípio da redução. O princípio com o qual começavam nossas pesquisas e especulações. Eu não acharia nada arbitrário, ao contrário, bem defensável aproximar o princípio de redução ao esforço de atravessamento de disciplinas para tentar conhecer com mais realismo.

 

 

IHU – Qual papel a etnografia ocupa na abordagem de Latour e que relação ela tem com a transdisciplinaridade?

 

Stelio Marras – Eu gostaria de sublinhar o efeito transdisciplinar da etnografia, que é central para o Bruno Latour e para o grupo dele, dos chamados science studies. Eu vou me concentrar, sobretudo, nisso, nessa escolha metodológica. Isso já está no livro Jamais fomos modernos (São Paulo: Editora 34, 2019) e logo no início e com a força teórica que ele foi dando, algo que ele já trabalhava em Vida de laboratório (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997). No Jamais fomos modernos ele recorre a um amigo, um etnólogo americanista chamado Philippe Descola, que fez uma longa etnografia junto aos Achuar, os Jívaros.

A etnografia, aquela tradicionalmente feita junto aos não ocidentais, tende fortemente a descrições – e a isso o Latour logo se ligou – que não respeitam às mesmas divisões e repartições que nós, os modernos como um povo, respeitamos, compartimentando o físico, o psíquico, a identidade cultural, religiosa etc. Essa virtude da etnografia é algo que o Latour logo reconhece e disso se serve. Aliás, a grande virtude das etnografias é que elas não funcionam por divisões dadas, formalizadas inicialmente.

 

 

Essa característica e virtude, porém, se perde um tanto, torna-se hemiplégica para falar com Serres, quando feita em “casa”, e aí respeitamos as repartições, dando à César o que é de César. Ou seja, a antropologia das ciências, dos modernos e dos Science studies critica a antropologia que volta dos trópicos, mas que, ao se aplicar nas sociedades dos modernos, se intimida e adere à regra do cada macaco no seu galho.

No mais das vezes topamos com os estudos etnográficos entre nós, modernos, que vão aceitar se aplicarem ao domínio do cultural, do simbólico, das representações sociais, das qualidades segundas do real. A questão é que o preço é muito alto da etnografia que já aceita de antemão a repartição entre o natural e o social, da natureza e da cultura. O preço é muito alto porque perdemos de vista, partindo dessa grande divisão entre natureza e sociedade, o próprio tecido inteiriço que constitui nossa vida social, que não é, nem nunca foi, “apenas social” no sentido de apenas os humanos entre eles, ou seja, aqueles que estão previstos no contrato social. O que o Latour faz é explodir a noção de social para além e aquém do ser humano.

 

 

Gabriel Tarde, uma outra filosofia social

 

Uma outra filosofia social é do também francês Gabriel Tarde, que, assim como Latour, pensa o social como associação. É a esta sociologia, esta outra fundação do social, como Tarde sugere, que Latour vai se filiar.

Ora, nós, como qualquer outro povo, eu diria mesmo como qualquer outro organismo ou outra entidade, inclusive inorgânico, não fazemos vida social somente com aquilo que a epistemologia e a sociologia, digamos assim, imperiais e dominantes, de Kant a Durkheim, compreendem como social e associativo. Fazemos isso com a natureza, as coisas, os objetos, as técnicas, os espíritos e não humanos de toda ordem. Então, social com associação, e não o social tautológico do Durkheim – e por que tautológico? Porque explica o social pelo social. Então já se começa o social e a sociedade com as ideias já prontas e, com isso já pronto, é óbvio que teremos respostas que esse tipo de pergunta induz, ou que esse tipo de pesquisa com os conceitos de cultura e natureza agregados permitem.

 

 

IHU – O que significa falar em social com associação?

 

Stelio Marras – Social com associação, inclusive com não humanos, dá pertinência à definição de social do Gabriel Tarde, a saber: sociedade é a possessão recíproca de todos por cada um e das mais diversas maneiras. Todos, aí, são todos mesmo; inclusive os não humanos.

É como associação que a noção de social é chamada para o verbal e não opera por substantivo, por essência, por identidade imutável, sempre a mesma de atores humanos e não humanos, como se por essência nós já pudéssemos definir se são ou não são sociais. Por isso estou insistindo numa nova teoria do social em Latour a partir da ação e não de essências, não de substâncias.

Faz todo o sentido o que o Tarde diz, referindo-me, sobretudo, ao ensaio Monadologia e sociologia (São Paulo: Unesp, 2018), publicado em português – com uma ótima tradução e um ótimo estudo introdutório do professor Eduardo Vargas, da UFMG, especialista no tema. Tarde foi esquecido, abandonado e Durkheim, ao longo do século XX, foi preponderando, de tal modo que, quando eu entrei nas ciências sociais, se referiam a ele como o “pai da sociologia”, ao passo que Gabriel Tarde nunca foi e até hoje não é um autor central na formação dos jovens cientistas sociais. Mas o Latour se serve dele, como Eduardo Viveiros de Castro, como, antes, Deleuze e Guattari etc.

 

 

IHU – O que Latour traz de novo à ideia de etnografia das ciências e como isso está ligado à noção de transdisciplinaridade?

 

Stelio Marras – A própria ideia de uma etnografia das ciências bagunça o coreto modernista, da divisão de tarefas entre as ciências, bagunça a diferença entre hard e soft Science porque põe em causa não exatamente as fronteiras estabelecidas entre as disciplinas, mas as supostas incomunicabilidade e incomensurabilidade entre as elas.

Enunciar uma etnografia das ciências já é expressão do trânsito entre cultura e sociedade, objeto tradicional das ciências sociais e da etnografia, esse método de pesquisa antropológica que tanto cativou o Bruno Latour. Portanto, uma etnografia das ciências é um trânsito entre cultura, sociedade e natureza, objeto das ciências ditas duras, naturais e, inclusive, das exatas. Para não ser uma contradição em termos, podemos colocar aqui uma ciência que tem os humanos como objeto e uma ciência que não tem os humanos como objeto; é preciso, como fez o Latour e o seu grupo, reconhecer que coisas, objetos, seres, entidades não humanas orgânicas ou inorgânicas também agem, também fazem mundo, também fazem sociedade conosco os atores humanos. Mais: nós nada fazemos, nunca fizemos, senão, também, em associação com não humanos.

É aí que desponta uma teoria da ação social não mais antropocêntrica, quando as disciplinas das humanidades, também elas, são assim chamadas a se reformarem e expandir seus objetos, rever suas imagens de análise. Reeducar sua sensibilidade e atenção para o que olha e pesquisa. É o que nós tentamos com uma antropologia da ciência e da tecnologia – que dá nome a cursos de pós-graduação que ministro na USP -, uma antropologia da modernidade ou até mesmo uma antropologia da natureza. Uma tal etnografia bagunça a locação da causalidade das ações, seja em humanos, seja em não humanos. Essa reviravolta é, ela mesma, exigência de abordagens mais complexas, que nos permitam uma maior aproximação dessas causalidades, porém não mais prematuramente purificadas no polo da natureza ou da sociedade. Essa é a grande matriz intelectual e prática do nosso pensamento e das ações modernas (as nossas).

Agora, nós podemos identificar as causalidades emergindo das relações entre seres e entidades heterogêneas entre si. Estou aqui falando nada mais, nada menos do que o primado da relação, do relacionalismo. Latour não quer saber de relativismo, mas de relacionalismo, composicionismo. Relação, obviamente, não mais de humanos ou de apenas não humanos. Por ora, cabe dizer que estamos em um momento em que estamos aprendendo a olhar, a descrever, a ver sem reduções prematuras; seja a pura causalidade natural, seja a pura causalidade social, estamos aprendendo a olhar as associações, as assemblages, os híbridos, os mitos, ou, para falar com Serres, os quase-sujeitos, quase-objetos.

 

 

IHU – Pode-se dizer que o transdisciplinar suplanta o disciplinar?

 

Stelio Marras – Penso que não é bem isso. Recentemente dei umas aulas em um curso realizado em parceria com docentes da USP, da Unicamp e da Unifesp que se chama Antropoceno: abordagens transcidiplinares. Lá eu dizia, e repito, que é verdade que o antropoceno é o nome da continuidade e mesmo da confusão entre a ação de humanos, não humanos e da nossa excessiva emissão de carbono agindo perigosamente na textura da atmosfera terrestre. Aliás, o antropoceno é essa expressão geológica das perturbações descoordenadas de ações humana na regulação do sistema terra. Definir o antropoceno com essa perturbação descoordenada tem origem nessa grande autora contemporânea, também interlocutora do Latour, embora mais ligada aos estudos multiespécies, que é a Anna Tsing.

A nossa tendência mais imediata, a minha também, seria concluir que dada essa continuidade entre nossas ações e as do mundo, por assim dizer, essa continuidade que parece nos levar a pensar na eliminação da diferença entre natural e social, colocar-nos-ia a necessidade de acabar com o conhecimento disciplinar, uma vez que nós não conseguiríamos explicar o ser humano sem o mundo, do mesmo modo que não conseguiríamos mais explicar o mundo sem o humano.

O meu ponto é que hoje já não penso bem assim. É preciso abrir ressalvas à tendência de pensar que o disciplinar já era. Temos que ouvir, claro, o chamado, seja do mundo respondente às nossas ações, seja por um realismo científico mais exigente, da antropologia da ciência que está revendo esse realismo científico e das descrições científicas preocupadas com as mudanças climáticas e todo problema ecológico e ambiental que nós vivemos. Sim, ouvir o chamado para pensar e sentir essa continuidade humano e mundo. Chamado para desautorizar, deslegitimar a oposição entre natural e social, não humanos e humanos.

 

 

O meu contra-argumento, por paradoxal que pareça à primeira vista, é que não se faz isso – o reconhecimento de continuidades – senão com descontinuidades, com esforços disciplinares agudos, aprofundados. Estou sugerindo que nós, modernos, não conseguimos traçar continuidades entre natureza e sociedade, e projetar respostas científicas e políticas, para ficar nesses dois modos de existência, senão nos valendo das diferenças entre os termos. Seria uma questão de lógica. É possível, eu pergunto, reconhecer continuidades, fusões, misturas, entre os elementos, seres e entes muito distintos uns dos outros sem nos servirmos do que antes foi discernido e tornado discreto? Estes seres que antes foram tomados estrategicamente e metodologicamente separados ou descontinuados entre si? Essa é uma pergunta, mas uma pergunta retórica.

Se, de bom grado, aceitamos que o antropoceno é marca antropogênica nas camadas estratigráficas que podemos flagrar em escavações arqueológicas, não é óbvio, sigo perguntando, que estamos trabalhando com diferenças entre humanos e ambiente, isso com uma estratégia metodológica para se apontar humano no ambiente e um ambiente no humano? Então eu diria assim: é fazer o disciplinar trabalhar pelo inter ou transdisciplinar. Estou tentando aprender a perguntar, a cada vez, quando que o disciplinar é metodologicamente estratégico e quando o transdisciplinar é metodologicamente estratégico. Vocês podem ver que isso é bem diferente do que fazer, em abstrato, um elogio do transdisciplinar e a detração do disciplinar. Felizmente ou infelizmente as coisas me parecem bem mais complicadas que essas saídas ou soluções prêt-à-porter.

 

 

A questão é selecionar o problema

 

Como podemos identificar a época humana chamada antropoceno nas rochas sem contarmos com essa diferença entre humano e rocha? Ora, dada a importância disso eu vou repetir com outras palavras o que eu já disse, que ação antropogênica nas mudanças climáticas no aquecimento atmosférico indica, como parece mais que evidente, a clara fusão ou composição do social no natural, da participação humana na regulação ou composição desse cosmos sublunar onde estamos. Esse reconhecimento também indica - e é sua condição de possibilidade - a distinção do que é humano e do que é não humano. Nossas medições dependem dessa distinção; eis porque não se trata de determinar de uma vez por todas ou longe dos processos concretos, de cada concurso de circunstância, a verdadeira ontologia do humano e do mundo, se ela dá continuidade ou mistura ou se dá purificação. Ambas podem ser verdadeiras ou falsas, úteis ou inúteis, conforme a seleção do problema, conforme aquilo que se quer obter de factual.

 

 

IHU – Que outros exemplos nos ajudam a pensar esse discernimento?

 

Stelio Marras – Um outro exemplo é a etiologia, a origem e terapêutica da covid-19. Tem um epidemiologista chamado Rob Wallace, que formalizou de maneira bastante boa, interessante e rigorosa a consolidação do argumento sobre a emergências de zoonoses, das quais a covid-19 é apenas uma delas, nem a primeira, nem a última, a resultar desse fenômeno chamado spin-over, em que o vírus ganha um salto evolutivo e transborda os limites de uma dada espécie e passa a transitar de maneira modificada em outras espécies.

Pois bem, o Wallace mostra que a origem da pandemia do novo coronavírus – a etiologia, portanto – não se explica senão em continuidade com ações que dizemos humanas. Por exemplo, a ação do capital global em associação com o agronegócio internacionalizado, com a plantation orientada, levando a deflorestações mundo a fora e assim nos expondo a patógenos que podem nos levar ao salto evolutivo entre as espécies. No mesmo sentido, também poderíamos pensar que, no polo oposto do avanço perigoso junto a espécies selvagens, estamos sempre na iminência de ver surgir doenças a partir da autodomesticação de espécies, que resulta em uma erosão gênica, uma padronização genética e de criação levando a doenças como a da epidemia da vaca louca. O avanço desmedido e inconsequente junto a espécies selvagem ou super domesticadas designa a própria assinatura do humano, isto é, do moderno, na origem mesmo das doenças causadas pela exposição a esses patógenos.

Ora, sendo assim, como parece consensual hoje, fica irrealista negar, portanto, esse sentido de continuidade entre ações humanas e não humanas. E, quando é assim, é muito convincente apontar trânsitos tais entre natureza e sociedade, como entre disciplinas, que, ao fim e ao cabo, tornam inverossímil e impraticável traçar uma fronteira ontológica e epistemológica instransponível entre ações humanas e não humanas e entre ciências sociais e naturais.

Aí apontaríamos, como faz Rob Wallace, continuidades. Aliás, perigosíssimas continuidades. A origem e as variações do vírus, que seguem surgindo, têm a ver com os agravos de todo o sistema de exploração desregulada da natureza. Eu conversava com um amigo e comentávamos que não encontramos pesquisas, nem nos veículos de comunicação, se essa variante tem a ver não bem com aqueles africanos que não tiveram acesso à vacina, mas com aqueles europeus que tiveram acesso e se recusaram (e se recusam) a se vacinar. Então estamos, de novo, diante de continuidades entre ações humanas e o surgimento dessa perigosa variante que temos hoje diante de nós e apontando destinos com os quais temos que lidar agora.

 

 

Tem a ver com isso, com uma ação desregulada na natureza, com a vasta comunicação global de intensos fluxos de humanos com países, continentes, interesses econômicos e políticos que influenciam na escala, na velocidade e na natureza das variantes desse novo coronavírus. Isso tudo, portanto, nos desautoriza a pensar, como já comentei, desde o mundo já dividido do que é natural e social.

Isso, no entanto, não deve anular o fato de que as ciências precisam destacar, isolar as diversas variantes dos vírus como condição para se conhecer seus perfis genômicos, de comportamento, mutações, proteínas, sua ação. Isso tudo para se reunir chances de se combater as doenças que elas causam, reposicionar as vacinas, medicamentos, terapêuticas etc. O que estou querendo contar é que em laboratório é preciso, sim, saber estrategicamente, metodologicamente, de modo operatório, descontinuar o vírus de suas causas e injunções que chamamos sociais, políticas, econômicas, culturais, humanas... Uma variante na bancada do laboratório precisa ser tratada, ontologizada, como não humano, como algo em si, autônomo e independente tanto quanto possível. Para se projetar tratamentos e vacinas que façam frente ao vírus, ele precisa ser “descontextualizado”, descontinuado em relação às suas variações, figurações fora do laboratório para que, no laboratório, seja recontextualizado o ser em si e assim caracterizado.

Eis o meu argumento em teste: nós, modernos, povo da ciência, dependemos, nas nossas experimentações da arte, de reestabelecer fronteiras entre humanos e não humanos como condição para desenvolver terapêuticas e imunizações artificiais – no caso da covid-19 –, ou para oferecer respostas ao antropoceno. Na produção de vacinas e medicamentos, como no exemplo, é preciso que os pares cientistas façam uma triagem das relações significativas entre agentes. Para isso, não é importante, no operacional no laboratório, considerar a origem humana da emergência nas zoonoses dos fluxos de pessoas responsáveis pelo espalhamento do vírus e por sua irradiação global, que dá realidade pandêmica à doença.

É preciso selecionar soluções estratégicas para a produção de imunizantes e medicamentos contra a virose. É preciso sequenciar variantes do vírus, simular relações entre moléculas, isolar proteínas em um meio controlado. É preciso “saber enganar” o sistema imunológico com trechos inativados do vírus para que esse sistema crie, ele mesmo, antídotos e assim por diante. Mas o ponto principal é que podemos deflagrar o trabalho humano dos cientistas destinados a purificar e isolar ações não humanas, trabalho este de externalização ou produção de uma relativa autonomia dos agentes/material de interesse – que é um jargão de laboratório que aprendi na etnografia que fiz durante o doutorado. Do mesmo modo, se os relatórios científicos sempre encaminhados às Conferências das Partes - COPs não puderem comprovar claramente a perturbação humana na deterioração de ecossistemas, nos danos ao tecido atmosférico, por exemplo, oferecendo a devida triagem que separa a ação antropogênica da ação natural, as nações não vão conseguir, por sua vez, encaminhar políticas públicas contra a emissão volumosa de gases de efeito estufa, contra o consumo irrestrito de carne animal etc.

 

 

Abrir o conhecimento disciplinar a novas provações

 

Com isso, não se trata apenas de abandonarmos os ganhos do [conhecimento] disciplinar, mas abrir o [conhecimento] disciplinar a novas provações. É o caso, sim, quando nos colocamos diante de Gaia, quando procuramos aterrar na terra correspondente às nossas ações. Estou me referindo a dois livros recentes de Latour: Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (São Paulo: Ubu Editora, 2020) e Onde aterrar? Como se orientar politicamente no antropoceno (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020), ambos publicados em português.

O que quero dizer é o seguinte: o conhecimento disciplinar se vê sob nova provação, novo estresse, novos testes, quando tem que encarar as consequências do modo moderno e tecnocientífico de fazer mundo e encarar as respostas do mundo a esse modo moderno de fazê-lo. Não encarar e não estender as redes de agentes, relações e causalidades que emergem dessas relações é não se colocar diante de Gaia ou à altura dela, à altura do sistema terrestre, é fugir da própria terra.

 

 

Encarar consequências – e aí Isabelle Stengers e Donna Haraway falam em arte das consequências – implica lateralidade das disciplinas, umas olhando para as outras – e de modo inédito. Implica, portanto, desaceleração. Gostaria de mencionar o exemplo de uma aluna que tive anos atrás em uma das versões do curso de antropologia da ciência e da técnica que ministrei. Ela estava concluindo o curso de graduação em química e trabalhava em um grande laboratório privado de produção de cosméticos. Eu comentava, no curso, sobre as esperanças de Bruno Latour com o “parlamento das coisas”, que é como ele termina o livro Jamais fomos modernos. Ele imagina um caminho democrático alargado, uma democracia estendida às coisas e, portanto, toma como unidade de análise os emaranhados, os híbridos. Eu explicava que se tratava de uma ambição de inaugurar novos fóruns de compreensão, encaminhando a dissolução de problemas que não se deixam mais apanhar por expertises purificadas, disciplinares e permeáveis, fóruns que apenas funcionariam se as fronteiras da política e da tecnociência deliberada e oficialmente se abrissem umas às outras, desestabilizando os pressupostos modernistas oficiais de ação de cada qual.

Considerando essa abertura incontornável, evidente demais para se manter no invisível, se torna inevitável que toda a produção técnica e científica passe a experimentar uma desaceleração – Stengers se preocupa em refletir sobre esse tema em seu livro Une autre science est possible! Manifeste pour um ralentissement des sciences (Paris: La découverte, 2013) [Uma outra ciência é possível! Manifesto por uma desaceleração das ciências, em tradução livre], que ainda não está traduzido para o português.

 

 

Minha aluna compreendeu perfeitamente o que eu estava explicando e me deu este exemplo que quero repassar para vocês. Ela disse que, no laboratório de cosmético onde trabalhava, extraía o óleo de palma para a produção de um determinado cosmético. Por força de vários agentes, regulação do Estado, pressão de ONGs e associações de defesa das florestas e animais, a extração de óleo de palmeiras da Malásia já não podia mais acontecer na mesma escala e velocidade de 20 anos atrás. A origem desse cosmético se amarrava direta e inescapavelmente ao destino das florestas de palmeiras e à sobrevivência de orangotangos que dependem do bioma. Ou seja, subitamente, a produção dos cosméticos se via atrelada à ameaça de extinção daqueles grandes primatas naquela parte da Ásia. Essa amarração, povoada de tantos elos e mediações, era justamente o que punha em polvorosa o chefe da minha aluna, conforme ela noticiava. Ele não podia se conformar com toda a “burocracia”. Não podia suportar que cada passo das suas pesquisas laboratoriais deveria ser medido e regulado por tantos outros passos, disciplinas, atores, conhecimentos, por regulação de selos verdes e uma infinidade de novos procedimentos que incluíam rastreamento em rede de matérias-primas, mensuração de impactos ambientais e ecológicos, preenchimento de intermináveis formulários para serem submetidos a instâncias que antes eram estranhas ao trabalho e à vida disciplinar de laboratório. O desaceleramento dessa produção surgiu como algo inevitável para aquele chefe formado em um regime tipicamente modernista de produção tecnocientífica.

 

 

Conhecimento transdisciplinar versus disciplinar

 

No entanto, o crescente interesse pelo [conhecimento] transdisciplinar comporta um enorme perigo de perder rigor na produção do conhecimento. É fácil abordagens transdisciplinares se tornarem presas de novos abstracionismos, flutuarem em superficialidades e, de repente, [o pesquisador] se vê fazendo pontes muito mal-ajambradas, diferentemente da nova aliança da qual eu comecei falando – as pontes ali são muito bem-ajambradas. Por isso é preciso ser sempre vigilante e resistir a tentações de totalizar o real ou resistir a ficar repetindo teorias gerais e inférteis. O crescente interesse transdisciplinar, hoje renovado e com muitas urgências, se ergue contrariando o próprio quadro historicamente dado das chamadas duas culturas: as ciências humanas e a filosofia, de um lado, e as ciências naturais, de outro – como assim se referiu o físico molecular e romancista britânico Charles Percy Snow, em seu livro de 1959, As duas culturas (São Paulo: Edusp, 2015).

Gostaria de concluir deslocando o problema, dizendo o seguinte: se não é pertinente, como tentei defender, decidir de uma vez por todas ir longe de cada problema eleito e decidir pelo [conhecimento] disciplinar ou pelo [conhecimento] transdisciplinar, é, sim, contudo, pertinente o trabalho de pôr atenção e sensibilizar as nossas pesquisas, seja nas ciências naturais ou sociais, a começarem não com natureza e sociedade – essas duas casas ontológicas – já compostas, já agregadas – para usar o termo de Latour. Por assim dizer, natureza ou sociedade é onde se terminam as pesquisas – e sempre provisoriamente. Isso é como eu entendo o que Latour denomina ao longo de sua obra de “colocação e natureza”, “colocação e sociedade”. Essa colocação que podemos acompanhar no pari passu etnográfico, que podemos rastrear, como é o trabalho de abrir as caixas pretas dos fatos científicos. Trata-se de acompanhar o próprio caminho que vai das instáveis controvérsias sociotécnicas aos consensos científicos, do Estado magmático – para lembrar essa imagem de um artigo de Tommaso Venturini, ex-aluno de Latour – ainda a montante na produção dos fatos, já para o Estado consolidado a jusante na produção dos fatos, que é como se encerra controversas e futuras caixas pretas que podem e são reabertas com novas pesquisas.

Então, tornar visível, público e mais politicamente representativo esse caminho das mediações na emergência dos fatos é mesmo um projeto latouriano. Esse projeto deve se valer do conhecimento disciplinar, embora aberto a desestabilizações trazidas e achadas por problemas de outras disciplinas. Como se valer do trânsito entre disciplinas, fazendo com que o trânsito não acarrete falta de rigor na apuração de fatos? Ou não se perder em panoramas e sobrevoos diletantes? Se eu pudesse resumir tudo que disse, diria que defendo abordagens transdisciplinares, mas não em detrimento do [conhecimento] disciplinar ou simplesmente apostando que o [conhecimento] transdisciplinar não é ou não precisa ser o antônimo do [conhecimento] disciplinar – isso é “ficar com o problema” e não bem resolvê-lo, como diz Donna Haraway.

 

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