A humanidade de Jesus como divindade e amor. Entrevista especial com José Ignacio González Faus

Ao analisar o caráter humano do Cristo, teólogo aponta que, depois dessa experiência do Deus que se fez homem, é muito claro que toda a moral se condensa no amor desinteressado ao próximo

Imagem: reprodução Secretaria Nacional da Pastoral da Cultura

Por: Graziela Wolfart | Edição: João Vitor Santos | 11 Dezembro 2021

 

É chegado o tempo de Advento, em que toda a preparação se volta para fazer memória a Jesus menino, que nasce num estábulo. Essa imagem da natividade é, na verdade, cheia de significados e revela sua radicalidade quando nos damos conta que essa é a cena em que Deus se torna humano e vive como tal. Com o objetivo de aprofundar as reflexões sobre essa radicalidade da natividade, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU republica a entrevista com o teólogo José Ignacio González Faus, veiculada originalmente na revista IHU On-Line número 336, de 06-07-2010.

 

Nessa entrevista, concedida por e-mail, González Faus reflete justamente sobre o caráter humano de Jesus. Para ele, “se apagarmos essa humanidade de Cristo, o vendo apenas como uma divindade, ficamos com um Deus falso, porque a humanidade de Jesus é a única imagem, ou o único rosto que temos de Deus”. E ainda critica: “por ter desatendido a humanidade de Jesus, boa parte da teologia tradicional eliminou por completo o caráter ‘revelador de Deus’ em Jesus, e ficou só com seu caráter ‘redentor’. Isso foi fatal”.

 

É para fugir dessa fatalidade que o teólogo não hesita ao definir o filho de Deus como “judeu até a medula”. Isso significa que, mais do que um crente fervoroso, Jesus faz críticas a sua religião e entra em confrontos com o povo de seu tempo. A maioria desses conflitos residia, como aponta González Faus, na revolta de Jesus com aqueles e aquelas que “usavam Deus em proveito próprio”. “Jesus costumava chamar isso de hipocrisia, palavra que vem do teatro grego. Essa hipocrisia volta aos homens enormemente ‘cegos’”, detalha. “Não obstante, entrou em conflitos muito sérios com o setor mais poderoso do judaísmo de seu tempo. Era um homem até o tutano, o que resulta conflituoso (e sedutor também) para todo o gênero humano”, acrescenta.

 

Assim, o teólogo vê o Jesus humano como um ser que coloca o coração à frente. “Depois de Jesus, fica muito claro e normativo que toda a moral se condensa no amor desinteressado ao próximo e que toda moralidade à margem desse amor (não digamos contra ele) deixa de ser moralidade e se converte em fariseísmo. Isto pode não ser de todo novo, mas agora se explicita e se reafirma muito mais”, conclui. E por isso observa que a “humanidade de Jesus nos leva a compreender a divindade não como poder, mas como amor”. “O balanço de todo o Novo Testamento foi a frase da primeira carta de João ‘Deus é Amor’, e não: Deus é poder. E a chamada onipotência de Deus deve ser entendida como o poder débil do amor”, sintetiza.

 

José Ignacio González Faus (Foto: Religión Digital)

 

José Ignacio González Faus é um jesuíta nascido há 87 anos, em Valência, na Espanha. Hoje, mora a 12 quilômetros de Barcelona, em uma cidadezinha chamada Sant Cugat del Vallés. “Sant Cugat, traduzido para o espanhol, é San Cucufato, um santo pouco conhecido, não se sabe muito sobre quem foi, mas dizem que é um mártir, que morreu aí, que veio da África para cristianizar a Espanha e que, ao desembarcar, foi morto”, explica ele próprio. Licenciado em Filosofia (Barcelona, 1960), foi ordenado padre em 28 de julho de 1963 e doutorou-se em Teologia na Universidade Austríaca de Innsbruck, em 1968. Antes, estudou no Pontifício Instituto Bíblico, em Roma (1965-66), e desde 1968 é professor de Teologia Sistemática, na Faculdade de Teologia da Catalunha (Barcelona). Desde 1980, oferece regularmente aulas na Universidade Centro-Americana (UCA), em San Salvador.

 

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 06-07-2010.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como o senhor descreve o rosto humano de Jesus?

 

José Ignacio González Faus – Podemos nos valer das duas expressões que mais são ditas sobre ele nos Evangelhos: “lhe comoveram as entranhas”; “se admiravam de sua eksousía” (palavra que traduzirei em seguida); e de outras duas que aparecem exclusivamente em sua boca: se autodenominava “O Filho do Homem”, e acusava a muitos homens religiosos de seu tempo de “hipócritas”.

a) Jesus viveu pela terra com as entranhas comovidas pela dor dos homens. Essas entranhas comovidas são a fonte da liberdade e da autoridade com que atua.

 

 

b) A palavra eksousía não traduzi porque em grego significa liberdade e autoridade. O Novo Testamento a usa com ambos os significados, às vezes, mudando em um mesmo texto: Jesus chama a atenção por uma liberdade que é fonte de sua autoridade, não fala nem atua segundo os clichês oficiais, mas segundo sua experiência da vontade de Deus. E, certamente, creio que não há maior fonte de liberdade que uma experiência profunda de Deus, de Jesus e que essa liberdade engendra sempre uma autoridade que não é exterior (como a de nossas autoridades que Santa Teresa chamava “postiças”), mas que brota de dentro.

 

c) Além disso, Jesus se qualificava a si mesmo como “O Homem” (com uma expressão aramaica ambígua – “Filho do Homem” – que pode significar simplesmente “ser humano”, mas pode ser também um título de dignidade: se autodefine desde essa ambiguidade de homem que inclui a pequenez e a grandeza máximas). E, sendo judeu até a medula, entra às vezes em conflito porque também seu povo havia caído no que é a máxima tentação de toda religiosidade: usar a Deus em proveito próprio.

 

d) Jesus costumava chamar isso de hipocrisia, palavra que vem do teatro grego (e que, segundo alguns críticos, Jesus pode ter aprendendido em Séforis, cujo teatro parece haver estado em construção ou remodelação na época de Jesus e onde alguns suspeitam que pode ter ido vender suas pequenas manufaturas). Essa hipocrisia volta aos homens enormemente “cegos” (outra palavra que também aparece muito nos lábios de Jesus).

 

 

 

IHU – Quem foi Jesus do ponto de vista histórico?

 

José Ignacio González Faus – Se tem escrito milhares de páginas para responder a essa pergunta. O que direi deverá ser muito simples. Jesus era um judeu até a medula que, não obstante, entrou em conflitos muito sérios com o setor mais poderoso do judaísmo de seu tempo. Era um homem até o tutano, o que resulta conflituoso (e sedutor também) para todo o gênero humano. Deduzia como iminente a chegada de uma nova situação humana que ele qualificava, com o léxico de seu tempo, como “reinado de Deus” e que significa duas coisas:

a) uma situação na qual nenhum poder terreno reina sobre o homem (o que mais tarde chegará a conflitos com o Imperador) e

b) uma situação na qual se torna claro que Deus “faz justiça aos oprimidos, dá pão aos famintos, liberta os cativos, dá vista aos cegos, sustenta aos que sucumbem, ama aos justos, acolhe aos peregrinos, recebe o órfão e a viúva, e transforma o caminho dos malvados”. Em uma situação assim, diz o salmo 145 que então “Deus reina”. E isso era o que Jesus anunciava.

 

 

IHU – Em que sentido a realidade do Jesus histórico pode interferir nas origens da fé cristã?

 

José Ignacio González Faus – Na fé cristã interferem decisivamente não só a realidade do Jesus histórico antes esboçada, mas seu destino. Jesus fracassou historicamente; e triunfou meta-historicamente: sua morte na cruz foi a “desautorização de sua pretensão” (Moltmann), feita em nome de Deus. E sua ressurreição é a confirmação desta pretensão da parte de Deus, com alguns alcances insuspeitos: porque sua ressurreição inclui a todos nós em um duplo sentido:

a) inclui a todo o gênero humano, além do judaísmo, com o que a chegada do Messias (o do Reino) significa para a universalização da promessa, mais que seu cumprimento absoluto. E

b) afeta não só a vítima (e n’Ele a todas as vítimas da história), como também aos carrascos e cúmplices daquele destino.

Eu costumo dizer que a Páscoa ilumina a cruz, mas não a elimina. Não a elimina porque a cruz é histórica e a Páscoa meta-histórica. Mas a ilumina porque a meta-história é o fundamento de uma história com sentido e concebida como progresso. O céu do além não elimina esta terra, mas a ilumina: porque não pode haver fé cristã sem uma tentativa de antecipar o céu na terra. E digo apenas antecipar, não traduzir ou substituir o céu pela terra, porque isso só leva a criar infernos.

 

 

IHU On-Line – Quais os principais impactos que Jesus provocou na sociedade de sua época?

 

José Ignacio González Faus – É preciso expressá-los de maneira dialética: a esperança e o desconcerto (que terminam na pergunta: quem pode ser este?); a sedução e a subversão (que põem em marcha o seguimento com seus riscos); e a irradiação e as dificuldades (que convertem o “ir com Ele” em “tomar a cruz de cada dia”).

 

IHU – Como a postura humana do nazareno influi na base moral do cristianismo?

 

José Ignacio González Faus – Depois de Jesus fica muito claro e normativo que toda a moral se condensa no amor desinteressado ao próximo e que toda moralidade à margem desse amor (não digamos contra ele) deixa de ser moralidade e se converte em fariseísmo. Isto pode não ser de todo novo, mas agora se explicita e se reafirma muito mais.

Pois bem: o amor chega muito mais além que a “lei”: obriga menos, mas pode pedir mais. Isso abrirá a porta para que, devendo haver uma moral “racional” comum a todos e útil para viver na comunidade humana, pode haver demandas e responsabilidades maiores precisamente para os cristãos. (Devo acrescentar com dor que às vezes a Igreja oficial parece proceder ao contrário).

 

IHU – Quais os riscos de se deixar de lado a humanidade real de Jesus?

 

José Ignacio González Faus – O risco é que daí ficamos com um Deus falso, porque a humanidade de Jesus é a única imagem, ou o único rosto que temos de Deus. Por ter desatendido a humanidade de Jesus, boa parte da teologia tradicional eliminou por completo o caráter “revelador de Deus” em Jesus, e ficou só com seu caráter “redentor”.

Isso foi fatal, ainda que possa compreender-se como o pedágio pago pela inculturação do cristianismo no mundo grego. E hoje é imprescindível superar isso porque senão estaremos anunciando a um deus falso: ao deus de Platão ou de Aristóteles, mas não ao Deus de Jesus.

 

 

Com muita razão escreveu Bonhoeffer, em suas cartas da prisão, que “o Deus que se revela em Jesus põe do avesso tudo o que o homem religioso espera de Deus”. E daí que a fé em Jesus Cristo implique hoje uma conversão não só de nossa dimensão “pagã” ou incrédula, como também de nossa dimensão religiosa.

 

A cena da natividade pode ser ainda mais potente se contemplada sem perder a humanidade real de Jesus (Foto: Pixabay)

 

IHU – Em que medida conhecer melhor “Jesus homem” pode contribuir para a construção da sociedade e da cultura pós-moderna e para o diálogo inter-religioso?

 

José Ignacio González Faus – a) Primeiro: creio que a fé em Jesus poderia libertar toda a Modernidade da qual viemos, da converção em “maldição da lei” que – como já dizia Pedro no “concílio de Jerusalém” – acaba impondo cargas insuportáveis, e que gerou a reação pós-moderna, tão desenganada dos ideais de nossa Modernidade como podia estar o “fariseu irrepreensível” (Paulo) de sua antiga militância farisaica.

No entanto, a fé em Jesus é uma dura crítica a esse niilismo descafeinado de nossa pós-modernidade que utiliza o desengano como desculpa para a própria preguiça, e que ficou só com o progresso tecnológico da Modernidade, e com a redução dos direitos humanos a só “meus próprios direitos” (que acabam sendo meus próprios egoísmos). Neste sentido poderia se dar, desde Jesus, algo que se tem reclamado tanto desde o cristianismo como desde fora dele: uma crítica séria da Modernidade, feita de dentro dela mesma.

  

 

b) Segundo: entendo o diálogo como diálogo da vida: convivência e colaboração; não como diálogo no sentido intelectual que (a meu modo de ver) é algo que só pode acontecer quando já existe deveras o outro diálogo da vida, sob pena de converter-se em um exercício pouco útil de esgrima intelectual. A partir daqui, contestaria: todas as religiões podem ser chamadas, sem perder sua identidade, a seguir a Jesus, ainda que não sejam chamadas a crer n’Ele. A interpelação do homem Jesus sobre a identidade entre amor, misericórdia e liberdade e sobre a sacralidade de “pobres e enfermos”, vale para todos os homens, em minha opinião.

O cristão não poderá pedir aos homens de outras religiões que olhem a cruz de Jesus como “morte de Deus”, mas sim que a erijam às vítimas da terra e da história no “controle de qualidade” que deve atravessar toda fé em Deus venha de onde vier e sem negar nenhuma das verdades que possa aportar. Neste sentido, gostaria de dizer que, mais que teocentrismo, cristocentrismo ou eclesiocentrismo, o ponto comum a todas as religiões deve ser um antropocentrismo pneumatológico.

 

IHU – Qual a importância da humanidade de Jesus para a compreensão de sua divindade?

 

José Ignacio González Faus – A humanidade de Jesus nos leva a compreender a divindade não como poder, mas como amor. O balanço de todo o Novo Testamento foi a frase da primeira carta de JoãoDeus é Amor”, e não: Deus é poder. E a chamada onipotência de Deus deve ser entendida como o poder débil do amor.

Sintomático deste esquecimento me parece a constante presença, nas orações da Igreja, do adjetivo “Deus Todo Poderoso”. Esse adjetivo está ausente na Bíblia: só se acalenta no Apocalipse, para apoiar os cristãos perseguidos recordando que, apesar de tudo, Deus é mais forte que seus perseguidores e continua tendo a última palavra sobre a história. Logo passa para a linguagem eclesiástica desde a visão neoplatônica de Deus que difunde o chamado Pseudodionísico.

E quero acrescentar que isto tem consequências importantes: já no século II, Santo Ignacio de Antioquia, em uma de suas cartas, critica os que negavam que o messias veio “na carne” (onde a palavra carne não tem só o sentido neutro de matéria, mas um sentido mais negativo de pouquidade humana). E a crítica que lhes faz é: precisamente por isso não se preocupam dos pobres, nem do órfão, nem da viúva, nem do amor aos irmãos... A humanidade de Jesus nos força a buscar a Deus não em uma suposta “verticalidade” abstrata, mas em uma horizontalidade transformada e agraciada pela presença de Deus nela. Com uma frase dita muitas vezes: Deus se encarnou para que não lhe buscássemos nas igrejas, mas nos irmãos. Se vamos, se devemos ir, à Igreja não é para encontrar a Ele, mas para buscar a luz, o calor e a força que nos permitam encontrá-lo nos irmãos.

 

 

 

IHU – O senhor leu o livro de José Antonio Pagola, Jesus: Aproximação histórica (Petrópolis, RJ: Vozes, 2014)? Qual o segredo singular de Jesus que transparece nessa obra?

 

José Ignacio González Faus – O que aconteceu com seu livro (deixando de lado dolorosas iniciativas de autopromoção e de carreira eclesiástica em algum perseguidor) é que a humanidade de Jesus é hoje também uma ameaça para a instituição eclesial, igual a que foi para a “igreja” judia de seu tempo. E isto assustou muitas autoridades. Ao contrário, muita gente afastada ou sem fé (porque só viam na igreja oficial um Cristo luminoso, mas sem rosto, que servia para justificar muitas pretensões pouco evangélicas de poder), descobriram no livro de Pagola o aspecto sedutor da humanidade de Jesus. Isso foi tudo. E desgraçadamente tem sido causa de muitos sofrimentos que a autoridade eclesiástica nunca deveria infringir.

 

Livro de José Antonio Pagola, Jesus: Aproximação histórica (Petrópolis, RJ: Vozes, 2014) (Foto: divulgação)

 

Confira a edição 336 da revista IHU On-Line que trata do carácter humano de Jesus

 

 

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