“Uma espiritualidade jesuânico-cristã é impossível ‘sem carne’”. Entrevista com Jesús Martínez Gordo

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11 Outubro 2021

 

O teólogo basco Jesus Martínez Gordo está apresentando seu novo livro, “Entre el Tabor y el Calvário. Una Espiritualidade con carne”, pela Espanha. Nesta entrevista ele detalha algumas chaves da sua nova obra.

 

“Como ‘jesuânico-cristão’, não me parece aceitável erigir a distinção conceitual entre ‘carne’ e Espírito, Jesus e Cristo, imanência e transcendência, ou eu e o outro, como se refletissem uma separação real. A vida é uma”, assegura. “Uma espiritualidade ‘jesuânico-cristã’ é a que nos ajuda a viver e dar razão da unidade na qual vivemos, nos movemos e existimos; impossível ‘sem carne’”.

 

“Suspeito que Jesus prefere se encontrar com pessoas inteiras e animadas, porque repõem forças ao ciclo. Ainda que seja de vez em quando, pelos atuais Tabores e montes das Bem-Aventuranças; em particular quando não é possível se refrescar nos ‘calvários’”.

 

A entrevista é publicada por Religión Digital, 07-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

A espiritualidade tem a ver com como nos relacionamos com a transcendência. É uma relação, há uma alteridade. E em função de como for esse vínculo nos relacionamos com nossa realidade e com nós mesmos. Se pode falar de uma espiritualidade sem carne?

 

A espiritualidade tem a ver com o Espírito do que no credo niceno-constantinopolitano se diz que é “Senhor e criador da vida”. Por isso, a entendo como participação da Vida em plenitude da qual nossa existência é uma antecipação. Assim experimentada e formulada, tem a ver com a vida pessoal e social e, claro, com o mundo no qual existimos, isso é, com o que me atrevo a chamar de “carne”.

 

Ademais, como “jesuânico-cristão”, não me parece aceitável erigir a distinção conceitual entre “carne” e Espírito, Jesus e Cristo, imanência e transcendência, ou eu e o outro, como se refletissem uma separação real. A vida é uma. Por isso, entendo que é um erro tratar de experimentar e entender o que é fruto de distinções conceituais como realidade não inter-relacionadas, isso é, separadas.

 

A diferença destes dualismos, uma espiritualidade “jesuânico-cristã” é a que nos ajuda a viver e dar razão da unidade na qual vivemos, nos movemos e existimos; impossível “sem carne”.

 

As espiritualidades ateias, se é que existem, podem contribuir com algum ponto de encontro hoje para os cristãos no diálogo com nossa sociedade, com esta cultura?

 

Existem espiritualidades (também chamadas de “místicas”) ateístas ou “sem Deus”, profanas, agnósticas e niilistas. É mais. Estão se tornando moda nos últimos anos em alguns círculos; acima de tudo, europeus.

 

A verdade é que sempre existiram, por mais que haja descrentes – e também crentes – que as negam ou olham com desconfiança, desprezam e até lutam de forma beligerante. Suponho que seja porque eles parecem quebrar certas convicções – ou, talvez, preconceitos – forçando-os a reajustá-los. E uma delas é a impossibilidade de uma experiência de relação com o que se revela na realidade e se denomina, entre outras expressões, como “o todo”, “o absoluto”, “o sim eterno”, “o vazio”, “o nada”, a escuridão ou o silêncio.

 

Pois bem, apesar do que sustentam essas pessoas, há crentes que reconhecem a existência dessa relação e união com o dito “tudo”, “absoluto”, “eterno sim”, vazio ou “nada”, diferenciando algumas experiências de outras pelas suas explicações. É o caso, entre outros, de André Comte-Sponville, George Bataille, J. C. Bologne ou L. Wittgenstein. E muito antes deles, Plotino, o autor das “Enéadas”, no século III.

 

Quando crentes e descrentes dialogam, a partir desse terreno comum, o debate consiste em especificar o grau – maior ou menor – de consistência racional ou argumentativa das várias explicações fornecidas a partir das experiências comuns e, ao mesmo tempo, diferenciadas de relação com a realidade. E, claro, sobre a capacidade integrativa dessas experiências. Por exemplo, com a linguagem “jesuânico-cristã”, se forem experiências das que brotam ou nas que se fundam um programa de vida (o das Bem-aventuranças); se consolam e confortam, encorajando-os a viver com gratidão e esperança (que é simbolizado pelo monte Tabor) e se há lugar neles para uma vida de solidariedade e fraternidade com os últimos do nosso mundo (o que se dá significado com o Calvário e suas atualizações).

 

Mas, sobretudo, se forem experiências e discursos em que haja circulação, articulação, equilíbrio e enriquecimento mútuo (com suas legítimas diferenças) entre esses três montes simbólicos.

 

Certamente existem outras linguagens e explicações dessas experiências comuns, ademais do “jesuânico-cristão”, mas isto é o que proponho neste livro e desde onde leio, com empatia crítica, a experiência e explicação “sem Deus” de André Comte-Sponville e daquelas contribuições que tipifico como típicas do que chamo de “agnósticos trágicos” quando dizem que mantêm uma relação com o que está “além da finitude” em termos de maravilha, agonia ou luta e ética ou cuidado.

 

O que essa espiritualidade jesuânico-cristã tem a contribuir para a cultura de hoje e para outras espiritualidades? A carne? A alteridade?

 

Em primeiro lugar, a importância da unidade e da distinção sem separação entre a cabeça, o coração, os pés e as mãos: da cabeça, como sede simbólica do discurso racional e do programa; do coração, como “lugar” de experiência e dos pés e mãos, mediações do compromisso transformador. E as excelências que são, em decorrência dessa distinção sem separação, a grande quantidade de espiritualidades, teologias e explicações; incluindo agnósticos e niilistas, bem como ateus ou “sem Deus”.

 

Mas também a importância da comunhão. As diferentes espiritualidades e teologias de que falo se complementam e se enriquecem com seus respectivos e legítimos acentos. Daí a pertinência de uma inter-relação fecunda entre todos eles: que o Deus de Jesus de Nazaré seja “unitrinitário” significa que ele é, ao mesmo tempo, um e comunhão ou articulação de diferentes. A pluralidade espiritual e teológica é encontrada no código genético do catolicismo; mesmo que, às vezes, possa ser complicado de gerenciar; como acontece na vida cotidiana e em todas as culturas.

 

Pode haver, por exemplo, pessoas que privilegiam espiritualidades e teologias mais atentas ao programa do Monte das Bem-aventuranças ou ao reino de Deus, ou seja, ao discurso, ao anúncio e à profecia, mas, se forem “unitrinitários”, caminharão, ainda que ocasionalmente, pelos outros dois montes, a do Tabor e a do Calvário. E o mesmo deve ser dito daqueles que prevalecem, como residência preferencial, disse Tabor ou Calvário.

 

Em suma, o que nós, “católicos”, podemos “contribuir” – melhor, testemunhar – para a cultura e outras espiritualidades de hoje é, por mais clichê que pareça, unidade “jesuânico-cristã” e a comunhão ou articulação “unitrinitária”.

 

Às vezes, há cristãos que são muito comprometidos, que não param, que não se calam, mas talvez não transmitam alegria nem esperança. O que a ideologia da solidariedade tem a ver com isso?

 

A partir das chamadas “novas espiritualidades” se critica os cristãos que fizeram do Calvário ou do compromisso com a justiça e a libertação a residência preferida de sua espiritualidade e teologia, que não atendem adequadamente para repor as forças, algo que só seria possível no encontro com Deus, sobretudo, na intimidade de si (o que chamam de “mesmice”) ou no “silêncio”. E que, portanto, são legiões que acabam exaustos, desanimados e jogados na sarjeta da vida, sem forças e nem esperança alguma.

 

Isso é o que alguns promotores dessas “novas espiritualidades” chamam de “ideologia da solidariedade” ou “do altruísmo”.

 

Não acho que seja uma expressão muito feliz. E não é porque mostra uma absolutização ditas “mesmices” e “silêncios”, com desprezo pela fraternidade ou pelo encontro, gratuito e desinteressado, com os outros e na sua luta pela justiça como fontes de união com o que dizemos quando dizemos “Deus”. Mas, para além desta importante observação crítica, penso que há algo que vale a pena ter em consideração: suspeito que Jesus de Nazaré não gosta de se encontrar nos Calvários contemporâneos com mais cadáveres, mesmo que seja por excesso de generosidade, luta e empenho. Sinto que ele prefere encontrar pessoas espiritualmente inteiras e espirituosas porque elas recuperam as forças ao circular, mesmo de vez em quando, pelos atuais Tabores e monte das Bem-aventuranças; em particular, quando não é possível se refrescar nos “Calvários”.

 

Nós, “jesuânico-cristãos”, somos chamados à santidade, isto é, à vida em plenitude e bem-aventurança, partilhada com todos e, de modo particular, com os menores; não ao martírio. Isso só é “bem-vindo” quando ocorre por consistência evangélica, mas não acho que possa ser buscado por si só. O Cristianismo não é uma exaltação da Cruz, mas uma proclamação e experiência de que o Crucificado ressuscitou e que, por isso, podemos e devemos estar ao lado dos crucificados de nossos dias para ajudar a erradicar tais Calvários e evitar mais dor, morte e desolação.

 

Esta, normalmente, costuma ser uma corrida de longa distância em que, além de nos encontrarmos, sem o procurar, com o martírio, também nos encontramos com uma infinidade de “faíscas”, antecipações ou murmúrios – alegres, gratuitos e inesperados – que temos que valorizar ou que, pelo menos, temos que cuidar muito mais; em particular, aqueles que fazem do encontro com Deus nos Calvários contemporâneos a palavra de ordem da sua existência. Também nos atuais “Calvários” existem tais “faíscas” ou murmúrios de plenitude; não apenas na chamada “mesmice” ou no “silêncio”, como entendido por alguns promotores das novas espiritualidades. E se não houver ou se forem encontrados, não há escolha a não ser passar por outros “Tabores”; existir, existem.

 

Assim, aqueles que criticam os cristãos comprometidos em se engajar na “ideologia do altruísmo” – deixando de lado as extrapolações em que podem cair – creio que eles chamam a atenção para uma questão que, pelo menos, estou disposto a aceitar e levar em consideração: não posso correr a maratona da vida como se fosse uma corrida. E mais, se eu souber que tenho um risco muito alto de acabar queimado. Não creio que a entrega – e mais ainda se acabar sistematicamente abrasador ou autodestrutivo – seja característico de uma espiritualidade e teologia jesuânico-cristã com residência preferencial no Calvário. No mínimo, ele tentaria não fazer isso.

 

Por sua vez, aqueles que acentuam excessivamente a presença nos atuais Tabores ou montes das Bem-aventuranças também têm seus problemas, diferentes daqueles que fizeram do Calvário sua residência espiritual e teológica preferida. É o que estou revirando ao longo do livro.

 

A carta de Claude Corbon ao bispo Dupanloup em 1877 é significativa: você perdeu o mundo operário porque confundiu sua causa com a de um partido político. Quais são os fatores pelos quais uma espiritualidade compassiva e provocadora, como a cristã, permanece em mais uma causa entre tantas? É possível aspirar à caridade sem justiça? E à justiça sem caridade?

 

Quando entro no estudo histórico da espiritualidade e da teologia latinas dos últimos séculos, é difícil para mim encontrar socializada a identificação evangélica de Jesus com os pobres ou com os últimos. Por isso, não me estranha que apareça um duplo e preocupante processo presidido, em primeiro lugar, por uma hierarquia eclesiástica mais atenta a incrementar ou a conservar seu poder que a cuidar de sua identidade e espiritualidade como sucessores dos apóstolos e, por isso, defensores dos pobres. O resultado é – salvo alguma exceção honrosa – seu mundanismo progressivo e escandaloso até que acaba sendo uma hierarquia de corte que nada tem a ver com a vontade de Jesus explicitada no programa do Monte das Bem-aventuranças. Este é o contexto no qual Claude Corbon dirige-se ao bispo Dupanloup, em 1877, com uma clareza, contundência e radicalidade evangélicas admiráveis.

 

Infelizmente, é também neste contexto que se envolvem, apesar de si próprios, homens e mulheres cristãos, santos e teólogos que, apesar de terem aceitado como sua a causa dos trabalhadores e no mínimo, vão ser fuzilados, por exemplo, na Comuna de Paris (1871) porque os proscritos os percebem mais como correias de transmissão dessa casta eclesiástica, aliada da burguesia e dos exploradores, do que como companheiros em sua jornada libertadora. E a mesma coisa acontecerá novamente com muitos cristãos ortodoxos na revolução russa de 1917 e com não poucos católicos na guerra civil espanhola de 1936-1939, tanto de um lado quanto do outro.

 

Assim, há também, como acabei de indicar, homens e mulheres cristãos, santos e teólogos que, apesar de serem minoria, foram (e ainda são) uma luz, que, na sua modéstia, testemunham – até com o seu sangue – como a espiritualidade e a teologia jesuânico-cristãs só são possíveis “com a carne”. Graças a eles, por exemplo, ao longo da história, as diferentes faces do Crucificado foram reconhecidas não só nos pobres socioeconômicos, mas também em cativos, índios, trabalhadores, escravos, negros ou mulheres. E, também graças a eles, muitos programas de intervenção samaritana foram lançados: esmolas e impostos, saúde ou educação (antecipações do que hoje reconhecemos como os navios-almirantes do Estado de Bem-Estar Social), além das bases para a declaração universal dos direitos humanos.

 

Ao longo do livro, irei detalhar alguns desses programas de intervenção com referências aos problemas que a espiritualidade “jesuânico-cristã” apresenta em nossos dias com permanência ou abandono. E, claro, também alguns dos meandros espirituais e teológicos pelos quais a conquista do que, ao longo do tempo, será o reconhecimento dos direitos fundamentais para todos os seres humanos, independentemente de sua condição social ou status formativo e econômico.

 

São urgências que, obviamente, só posso formular, sem entrar em maiores detalhes: cada uma delas poderia ser tema de um novo livro e, se me atenho, até de uma enciclopédia.

 

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