Desequilíbrio energético e eventos extremos poderão ser o novo normal no final do século. Entrevista especial com Alexandre Costa

Se a temperatura global aumentar 2 ºC ou mais, eventos extremos serão o novo normal, com ondas de calor anuais, adverte o físico e doutor em Ciências Atmosféricas

Foto: Jorg Farys | Fridays for Future

Por: Edição: Patricia Fachin | 08 Novembro 2021

 

Entre os fenômenos observáveis que corroboram a existência de um novo regime climático, Alexandre Costa destaca aqueles que ocorriam uma vez a cada 50 anos, mas que estão se tornando mais frequente nas últimas décadas a cada décimo de grau que o planeta aquece. "Estou falando do dobro de furacões intensos, do dobro de incêndios florestais, do triplo de inundações, do quádruplo de perdas de safras, do quíntuplo de secas e um aumento de ondas de calor a serem vivenciadas pelas novas gerações", disse, em conferência virtual ministrada no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em 28-10-2021, ao comentar as projeções feitas pelos cientistas caso o aquecimento global não seja controlado.

 

Segundo ele, mesmo se a elevação da temperatura permanecer em 1,5ºC até o final do século, as ondas de calor que ocorriam a cada cinco décadas passarão a ocorrer em intervalos de seis anos. Com a atmosfera mais quente, explica, maiores quantidades de água são extraídas da superfície, o que gera "um estresse maior aos corpos d’água e aos reservatórios hídricos". Ao mesmo tempo, esclarece, "a atmosfera, quando retira mais água da superfície e dos corpos d’água, do solo, da vegetação, contém mais vapor d’água e produz tempestades mais severas, eventos de chuvas extremas do tipo que acontecia uma vez em cada dez anos. Esse tipo de evento está 30% mais recorrente e a tendência é de que essa frequência cresça a cada grau que o planeta aquecer".

 

Na conferência, que publicamos a seguir no formato de entrevista, o físico também comenta as metas nacionais que estão sendo apresentadas na COP26. "Os compromissos assumidos pelos países estão muito longe de oferecer qualquer horizonte de segurança climática para as gerações futuras", conclui.

 

Alexandre Araújo Costa (Foto: Reprodução Youtube)

 

Alexandre Araújo Costa é graduado em Física e doutor em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, EUA. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Militante ecossocialista e ativista climático, edita o blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei”, assim como o canal no YouTube de mesmo nome. É um dos coordenadores do fórum de articulação Ceará no Clima. Atualmente, leciona na Universidade Estadual do Ceará - Uece.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que é o balanço de energia planetária e como ele está sendo alterado?

Alexandre Costa - O clima do nosso planeta depende basicamente do equilíbrio de dois fluxos: o de entrada de energia, com radiação solar, radiação de onda curta, e um fluxo de saída de energia, que é o calor que a Terra emana para o espaço, o qual precisa se dissipar no espaço na forma de radiação infravermelha. Basicamente, o equilíbrio climático, especialmente o que caracterizou o clima dos últimos 1700 anos – época geológica conhecida como Holoceno –, depende do balanço entre esses dois fluxos, que precisam ser aproximadamente iguais. No entanto, esses fluxos podem ser alterados por várias razões físicas. Vou destacar apenas uma delas, a única que hoje está sendo modificada ao ponto de produzir alterações substanciais e, como veremos, extremamente aceleradas e perigosas no balanço energético terrestre.

 

Alteração física

 

Essa alteração é justamente a emissão em larga escala de gases de efeito estufa na atmosfera, com destaque para o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso, chamados de halocarbonetos. Um boletim publicado nos últimos dias atualizou os dados [sobre a concentração de gases de efeito estufa], mostrando que a porcentagem de CO2 na atmosfera é de 49% e não de 47%, conforme publicado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC, com base nos números de 2019. Isso significa que temos muito mais moléculas na atmosfera terrestre com capacidade de absorver calor, de interromper o fluxo de saída de energia que é necessário para equilibrar o balanço energético e, portanto, o clima em escala planetária.

 

 

Alternância de estados climáticos

 

Sabemos de onde vem essas emissões: da queima de combustíveis fósseis, do desmatamento, da agropecuária, da decomposição de resíduos. Mas é importante entendermos o grau de imediatismo desse processo. É muito comum que os negacionistas climáticos tragam à tona o seguinte pseudoargumento: o clima da Terra já mudou antes. Sim, isso é uma obviedade, uma tautologia. O clima é uma entidade dinâmica e, nos últimos 2,5 milhões de anos – com muita certeza nos últimos 800 mil anos –, a Terra experimentou uma alternância entre estados climáticos bastante diferentes. Entre as chamadas eras glaciais, havia períodos frios em que o oceano estava dezenas ou centenas de metros abaixo dos níveis atuais, as calotas polares eram bem mais expandidas, o planeta tinha alguns graus de temperatura a menos e concentração de gases de efeito estufa bem menores. Alternando esses estados glaciais, houve períodos mais curtos, mais quentes, chamados interglaciais.

Os estudos dos núcleos das colunas do manto de gelo da Antártica, que são retiradas pelos cientistas para investigação, nos revelam, olhando para as bolhas de ar presas dentro do gelo, com idades de até 800 mil anos, que a concentração de CO2 permaneceu oscilando entre 173 partes por milhão e 298 partes por milhão durante esses 800 milênios. Hoje, estamos “batendo” 410 partes por milhão. Isso significa que temos um cobertor cerca de 50% mais espesso do que tínhamos no período mais quente dos últimos 800 mil anos, dado que os gases de efeito estufa funcionam como um cobertor que armazena calor e impede o calor de se dissipar no espaço. Portanto, é algo inédito nessa escala de tempo. Nós só conseguimos, de fato, encontrar uma condição de composição química da atmosfera similar a atual se retrocedermos cerca de dois milhões de anos, cinco milhões de anos ou mais. Esse seria um planeta radicalmente diferente do dos dias atuais: um planeta de dois ou três graus mais quente, com calotas polares bastante contraídas, sem manto de gelo permanente no hemisfério Norte e, portanto, com menos gelo nas calotas, consequentemente 15 a 20 metros acima dos níveis atuais.

 

 

Composição química da atmosfera e desequilíbrio energético

 

É muito provável que, mesmo nos melhores cenários, as emissões sigam avançando e, a depender do cenário analisado, será possível chegar a um período da história geológica da Terra incompatível com a existência de calotas polares no hemisfério Sul. O problema salta aos olhos e é importante dizer que [o problema] não é só o CO2; existem outros gases de efeito estufa cujas concentrações estão aumentando. A composição química atual da atmosfera não tem só mais CO2; tem mais metano e óxido nitroso, e já se comporta como uma atmosfera com 500 partes por milhão de CO2, segundo o boletim de gases de efeito estufa da Organização Meteorológica Mundial. Essa presença aumentada dos gases de efeito estufa produz um desequilíbrio energético.

 

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IHU – Qual é a dimensão desse desequilíbrio?

 

Alexandre Costa - É possível quantificá-lo. Na física, expressamos isso através de uma variável chamada “forçamento radioativo”, expressa na fórmula de quantidade de energia armazenada no sistema climático por unidade de área e unidade de tempo. Isso não é muito didático e visível para quem não é da área, mas esse desequilíbrio total é da ordem de 2,72 W/m2.

Isso é muito ou pouco, vocês podem perguntar. A resposta é: se eu pegar 2,72 W/m2 e multiplicar pela área de Terra, esse calor guardado, preso no sistema Terra, equivale à energia liberada pela explosão de 21 bombas de Hiroshima a cada segundo ou 70 milhões dessas bombas por ano. Obviamente, não existe nem um forçante natural do clima que ofereça hoje uma perturbação sequer comparável em ordem de magnitude a essa perturbação antrópica. Para se ter uma ideia, a melhor estimativa que se tem de variações de longo prazo ao longo desses 2,5 séculos da atividade solar é que ela contribuiu com menos 0,02 W/m2. Na verdade, seria um resfriamento extremamente discreto. Não é à toa, portanto, que todo estudo sério converge para a atribuição do aquecimento global observado como sendo algo causado por fatores puramente antrópicos. A estimativa atual é de que pelo menos 1,07 graus dos 1,09 graus que o planeta aqueceu desde o período pré-industrial é de natureza antrópica. É possível inferir isso a partir de uma série de metodologias, mas destaco aqui a contribuição dada pelos estudos utilizando modelos climáticos, que foram objeto do recebimento do Prêmio Nobel de Física deste ano. As simulações do clima foram feitas por modelos alimentados pelas perturbações humanas e naturais e os modelos acompanham muito bem as observações. O que acontece nos modelos se retirarmos a contribuição humana, alimentando-os somente com fatores naturais? Basicamente, o clima não teria mudado. Teríamos assistido a flutuações, para cima e para baixo, em torno do mesmo valor das temperaturas dos tempos pré-industriais. Então, essa atribuição fica bastante evidenciada.

 

 

Mudança climática atual X mudança climática natural

 

Outra coisa importante a destacar é que a mudança climática que estamos assistindo é várias ordens de magnitude mais acelerada do que as mudanças climáticas naturais ocorridas ao longo de toda a era Cenozoica, ou seja, nos últimos 65 milhões de anos. Vou ilustrar isso para vocês a partir de uma comparação entre a mudança climática atual e a mais recente mudança climática natural, que ocorreu na saída da era glacial, processo iniciado há 23 mil anos e concluído há 11700 anos com o início do Holoceno. Durante esse período, o planeta aqueceu cerca de 4ºC. Pode-se dizer que isso é muito maior do que 1,09ºC que acabei de mencionar, mas lembremos que esse aquecimento de 4ºC demandou dez mil anos para ocorrer – foi última grande mudança climática natural, uma mudança profunda, substancial, que levou à extinção de espécies e a alterações da face do planeta. Hoje, estamos falando de mais de um grau em cem anos, ou seja, estamos falando de um aquecimento cerca de 30 vezes mais rápido do que aquele. É algo de fato inédito, grave e perigoso.

 

IHU – Quais as implicações dessa mudança para o futuro?

 

Alexandre Costa - Evidentemente, a questão levantada é por conta do futuro. Ao analisarmos os futuros possíveis, os vários cenários, percebemos o quanto o sistema climático terrestre é sensível às trajetórias de emissões de gases de efeito estufa que escolhermos.

Esses cenários são analisados na forma de uma matriz: em um eixo, temos a ênfase socioeconômica desses cenários, a ênfase em sustentabilidade, no caso do SSP1 – sigla em inglês para trajetórias socioeconômicas compartilhadas –, que é um modelo de desenvolvimento no qual podemos optar; em outro eixo, temos um modelo baseado no crescimento econômico em grande escala, mantido à base de combustíveis fósseis, no SSP5.

 

 

Há outras variantes entre esses eixos, inclusive uma proteção ambiental “meia boca”, como prefiro chamar o SSP2. No outro eixo da matriz, temos justamente a variável que mencionei, que é o desequilíbrio energético, a “forçante radioativa”, no final do século. SSP1-1.9, portanto, mostra uma trajetória centrada na sustentabilidade, em que chegaremos ao final do século com um desequilíbrio energético reduzido dos atuais 2,72 W/m2 para 1,9 W/m2. SSP5-8.5, pelo contrário, é um cenário em que a trajetória e o modelo econômico adotados são de ampla expansão econômica, com uso de todos os combustíveis fósseis disponíveis, o que nos conduz a uma situação de desequilíbrio energético três vezes maior do que o atual no final do século.

 

Destino – limite de 1,5 ºC

 

O nosso destino está entre esses cenários e, portanto, não é um destino genérico. O futuro da humanidade se dá através dos jovens, das crianças e das gerações futuras. O cenário SSP1-1.9 é o único que permite temperaturas estabilizadas abaixo de um 1,5ºC de aquecimento em relação ao período pré-industrial.

Quero frisar o seguinte: desde um relatório especial publicado em 2018, reforçado recentemente pela publicação da primeira parte do relatório de avaliação do IPCC, o IPCC aponta muito nitidamente que 1,5 ºC é o limite a partir do qual os impactos climáticos aumentam exponencialmente. 1,5ºC deveria ser o limite ao qual toda a humanidade e toda a governança disponível deveriam estar focadas em obedecer. Esse limite aparece no Acordo de Paris, em que as nações se comprometeram a manter o aquecimento global controlado em níveis muito abaixo de 2ºC.

 

IHU – Neste cenário, que quantidade de CO2 os países ainda podem emitir?

 

Alexandre Costa – Esse cenário nos permite emitir apenas 0,5 bilhão de toneladas de CO2. Para termos uma noção do que isso representa, desde 1850 até hoje foram emitidos 2,5 trilhões de toneladas de CO2. Significa, portanto, que teríamos algo em torno de 16% do saldo de carbono total. Ou seja, mais de 80% já foi queimado antes. Estamos muito próximos, portanto, de esgotar esse saldo.

Obviamente, o primeiro parâmetro em jogo é a temperatura global. Apenas os dois SSP1, o 1.9 e 2.6, mantêm a temperatura estabilizada no final do século. É muito grave o que acontece mesmo no cenário do meio termo, porque não se obterá a estabilização das temperaturas; elas vão seguir aquecendo após 2100. Todos os cenários, com exceção dos SSP1, têm aumento da temperatura depois de 2100.

 

Redução da cobertura de gelo

 

Além disso, todos os cenários, mesmo os SSP1, indicam perda significativa da cobertura de gelo, como o gelo do Ártico, que é fundamental para manter a capacidade de refrigeração do sistema Terra, uma vez que o gelo é um bom refletor de radiação solar. A cobertura de gelo girava em torno de seis a sete milhões de quilômetros quadrados na segunda metade do século XX, mas decresceu para algo em torno de quatro milhões de quilômetros quadrados. Nos melhores cenários, essa extensão tende a cair para dois milhões de quilômetros quadrados, com uma ligeira tendência de recuperação somente com o cenário SSP1-1.9. Nos demais cenários do meio termo, não haverá gelo no Ártico na segunda metade do século XXI. Isso é comprometedor em inúmeros aspectos desde o ecossistema global até o próprio balanço de energia global, por mudar a refletividade do planeta.

 

 

Acidificação dos oceanos

 

Outra questão importante para a qual precisamos estar atentos é a acidificação oceânica. Os oceanos têm uma rica biosfera e biota que são largamente dependentes da existência de seres vivos, com estruturas duras formadas a partir de um mineral chamado aragonita, que é uma das formas do bicarbonato de cálcio. Estou falando de moluscos, corais, de uma ampla gama de organismos marinhos. Alguns deles compõem o plâncton e estão na base da cadeia alimentar que sustenta toda a teia de vida dos oceanos.

 

 

IHU - O que acontece quando tem muito CO2 na atmosfera?

 

Alexandre Costa - Parte desse dióxido de carbono se dissolve dos oceanos e ocorre uma reação química com a molécula da água: H2O com CO2 dá HCO3, que é ácido carbônico. A presença do ácido carbônico acidifica os oceanos e reduz seu pH. Num meio cada vez mais ácido, a fixação de bicarbonato de cálcio em conchas e estruturas duras dos organismos marinhos vai se tornando cada vez mais difícil, podendo, num determinado momento, se tornar impossível. Uma água com o pH de 7,6 é capaz de dissolver estruturas como conchas. Os dois cenários piores condenam, portanto, a fauna marinha a uma situação de total catástrofe. Isso tem um impacto imprevisível na escala global.

É importante lembrarmos também que não são apenas as médias globais que afetam as nossas vidas, pelo contrário, às vezes é o que menos nos impacta diretamente. O nosso organismo biológico e vivo é sobretudo a nossa civilização organizada – somos grandes assentamentos humanos, grandes cidades, dependentes de uma estabilidade climática e muito sensíveis à ocorrência de eventos extremos. A distribuição estatística de eventos extremos é uma das coisas mais brutalmente alteradas quando o sistema Terra passa a funcionar com mais energia térmica dentro dele, porque, basicamente, os eventos extremos são momentos de redistribuição de energia e essa redistribuição passa a ocorrer de forma mais violenta.

 

 

Eventos extremos

 

Para termos uma noção de quão grave é o problema do aquecimento de 1,5º C do presente, ondas de calor que eram raras e costumavam ocorrer uma a cada 50 anos – ondas de calor letais, diga-se de passagem, perigosas, que provocam desidratação intensa e podem levar à morte –, hoje ocorrem em uma frequência quase cinco vezes maior. Eventos que costumavam ocorrer uma vez a cada 50 anos se tornaram eventos de uma vez a cada 10 anos. Essa frequência tende a aumentar a cada décimo de grau que o planeta aquecer. Mesmo com a elevação da temperatura em 1,5ºC, essas ondas de calor passariam a ocorrer, em média, uma a cada seis anos. Estou falando de eventos como o que matou mais de 12 mil pessoas na Europa em 2003, mais de quatro mil pessoas na Índia e no Paquistão em 2015. Num mundo em que a temperatura aumentar 2ºC ou mais, esses eventos se tornariam o novo normal. Ora, ocorreria uma onda de calor dessas a cada ano. Se essa realidade se transformar no novo normal, com eventos extremos anuais, o que seria o novo extremo?

 

IHU – Quais as implicações do aumento da temperatura para o ciclo hidrológico?

 

Alexandre Costa - Nesse caso, uma atmosfera mais quente é uma atmosfera que extrai maiores quantidades de água da superfície e, portanto, impõe um estresse maior aos corpos d’água e aos reservatórios hídricos. Também retira mais umidade do solo e da própria vegetação e impõe taxas de evapotranspiração potenciais maiores.

 

 

Secas

 

Hoje, já ocorrem eventos de secas ecológicas e agrícolas motivadas por esses processos em uma frequência muito maior do que no período pré-industrial. Esse é um fenômeno que só tende a aumentar caso não controlemos o aquecimento global. A atmosfera, quando retira mais água da superfície e dos corpos d’água, do solo, da vegetação, contém mais vapor d’água e produz tempestades mais severas, eventos de chuvas extremas do tipo que acontecia uma vez em cada dez anos. Esse tipo de evento está 30% mais recorrente e a tendência é de que essa frequência cresça a cada grau que o planeta aquecer.

É, portanto, esse tipo de legado que está em disputa. Um mundo 1,5ºC mais quente já é um mundo ligeiramente mais inóspito do que esse que está retratado aí, de mutações, de ondas de calor, de secas, de incêndios florestais. Mas é o melhor que podemos desejar e o melhor legado que podemos deixar para os filhos e filhas, netos e netas e para as gerações humanas e não humanas subsequentes.

 

 

Imposição moral

 

Esse debate é crucial. Diria que existe uma forte imposição moral em torno da questão climática hoje. O que acontece, no entanto, segundo análise feita pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, é que os compromissos assumidos pelos países estão muito longe de oferecer qualquer horizonte de segurança climáticas para as gerações futuras. Embora as partes tenham assinado o Acordo de Paris na Conferência das Partes em 2015, se comprometendo em manter o aquecimento global bem abaixo de 2ºC e, preferencialmente, bem abaixo de 1,5 ºC, não estão cumprindo com o combinado. Basicamente, precisaríamos ter, ao longo das próximas quatro décadas, uma trajetória de emissões que fosse marcada pela redução imediata e acelerada dos gases de efeito estufa, reduzindo metade das emissões por volta de 2030 e zerando as emissões em meados do século. Essa é a única receita possível para manter o aquecimento global controlado em níveis minimamente seguros, como falamos, de 1,5 ºC.

 

 

Metas nacionais, irresponsabilidade partilhada e responsabilidade diferenciada

 

Entretanto, as contribuições nacionalmente determinadas, na forma apresentada até 17 de setembro de 2021, não propõem reduzir as emissões globalmente até 2030, embora alguns países apresentem metas de cortes de emissões. Mas a soma geral nos leva, pelo contrário, a emissões 100% maiores em 2030 do que aquelas de 2019, ou seja, do mundo pré-pandêmico. Ou pior, quase 60% acima das emissões de 1990. Nesse ritmo, 89% do saldo de carbono remanescente seria consumido até 2030 e assim, portanto, praticamente esgotaríamos as chances de legar um mundo com aquecimento controlado em níveis administráveis para as gerações futuras.

Essa irresponsabilidade é partilhada por, virtualmente, todas as nações. Algumas delas não têm nenhum compromisso mínimo com a segurança climática. Estou me referindo especificamente à Rússia, Irã e Arábia Saudita, exportadores de petróleo. Mas mesmo países que têm apresentado metas de redução de efeito estufa têm ficado muito a dever. É o caso dos EUA e da União Europeia, cujos compromissos até parecem fortes. Fala-se, nesses lugares, de reduções das emissões em torno de 50% até 2030 e emissões líquidas até 2060. Mas tem duas coisas escondidas aí. Primeiro, nessas metas há uma grande aposta, por parte de alguns atores, de tecnologias que não estão disponíveis em escala para promover sequestro de carbono – é a armadilha por trás das emissões líquidas. Nesses casos, as metas dos EUA e da União Europeia são classificadas como insuficientes porque é na média global que temos que cortar as emissões pela metade até 2030 e zerá-las até 2050. Os países de industrialização mais antiga, que contribuíram muito mais para o aquecimento global, têm a obrigação de cumprir com responsabilidades diferenciadas e, portanto, propor metas que vão além da necessidade de uma média global.

Há um outro grupo com planos de emissão altamente insuficientes, como a China, que hoje é o principal emissor, a Austrália, o Canadá e o Brasil que, em geral, figurava com a proposta de metas insuficientes, mas hoje está no grupo dos altamente insuficientes. O governo, com uma contabilidade criativa, que pode ser classificada como pedalada climática, arranjou números que permitem ao Brasil emitir mais e, portanto, desmatar e queimar mais. Simplesmente pegaram os dados revisados de 2005, ano que serve de base para os dados das metas brasileiras, e, usando a reavaliação que puxou esse número para cima, mantiveram a meta percentual ao invés de manter a meta absoluta. Portanto, estão querendo aparecer na COP26 autorizando os criminosos do campo a queimar mais florestas, desmatar mais, a prosseguir com o ecocídio. Obviamente, um contexto como esse, de negação conjunta da possibilidade de controlar o aquecimento global dentro de níveis razoáveis por parte de diversos países e corporações, é um sequestro do futuro das novas gerações.

 

Gerações futuras

 

A estimativa é que, mesmo em mundo que só aqueça 1,5ºC, os eventos extremos serão quatro vezes mais frequentes na vida das pessoas nascidas no ano passado do que na vida daqueles que nasceram nos anos 1960. Num cenário pior, com aumento da temperatura em 2ºC, a expectativa é de que os eventos extremos sejam sete vezes mais recorrentes na vida da geração que nasceu em 2021 do que na que nasceu em 1960. Estou falando do dobro de furacões intensos, do dobro de incêndios florestais, do triplo de inundações, do quádruplo de perdas de safras, do quíntuplo de secas e um aumento de ondas de calor a serem vivenciadas pelas novas gerações.

É um completo sequestro do futuro. As gerações anteriores, em particular os muito ricos, utilizaram da poupança climática ou ecológica, que deveria estar assegurada para as gerações futuras. Quando falo especialmente dos mais ricos, é porque justamente há uma injustiça geracional e o rombo dessa poupança futura para benefício imediato se dá com o atravessamento de todas as outras injustiças e desigualdades.

 

 

Justiça climática

 

Justiça climática, portanto, é um conceito que precisa ser trazido a primeiro plano e que nos remete a todas as profundas fissuras que a humanidade vivencia. A fissura geracional é muito óbvia do ponto de vista do clima, como mostra o movimento inspirado pela grande figurinha chamada Greta Thunberg, que conta com muitos outros ativistas pelo mundo.

Existe uma profunda desigualdade nacional: um habitante médio nos EUA emite 16,5 toneladas de CO2 por ano, enquanto um habitante médio de Malawi, na África, emite 0,1. Se falarmos apenas dos 10% mais ricos dos EUA, esse número vai para 50 toneladas de CO2 por ano, ou seja, o equivalente a 500 vezes as emissões de um trabalhador de um país africano pobre. Tudo se torna mais imoral ainda quando pensamos que um passeio ao espaço por parte de Jeff Bezos emitiu 75 toneladas de CO2 em dez minutos. Evidentemente, quando esses números são colocados juntos, constatamos que os 10% mais abastados e privilegiados da sociedade humana respondem por nada menos do que 90% das emissões e que o 1% mais rico emitiu o dobro dos 50% mais pobres; e que, evidentemente, o sequestro do futuro não foi promovido por uma geração em seu conjunto. Essa situação é atravessada, portanto, pela desigualdade nacional e de classe. Trata-se de um processo intrinsicamente ligado à colonização e à escravidão, ao genocídio dos povos originários, ao processo de conquista por parte da Europa e, portanto, é um processo intrinsicamente ligado às desigualdades étnico raciais. É um processo, por fim, que engendra também diferentes impactos quanto ao gênero.

 

 

Fridays For Future

 

Vanessa Nakate, ativista do Fridays For Future, assim como Greta, mas que vem de Uganda, mostrou uma habilidade muito grande de fazer as cobranças devidas em seus discursos.

 

Vanessa Nakate, chi è il nuovo volto del movimento "Fridays for Future":

 

 

Em um evento recente em Milão, ela resumiu o que está colocado em jogo: que não é possível adaptar-se a culturas, tradições e histórias perdidas, que não é possível se adaptar à fome nem à extinção.

 

Vanessa Nakate at Youth4Climate Summit in Milan - full speech:

 

 

Nesse mesmo discurso, ela lembrou que a África é o continente onde há mais pessoas morrendo por conta da crise climática e da extrema vulnerabilidade, com eventos extremos de chuva, mas é o continente que menos emitiu gases de efeito estufa ou, como ela corrigiu, só não emitiu menos que a Antártica. Na voz dela, se resume a voz da mulher jovem, negra, de um país pobre da África, que luta pela descolonização. Precisamos puxar o freio de emergência da emergência climática, cumprindo o compromisso de redução das emissões com a radicalidade necessária para assegurar o futuro e garantir segurança climática para os mais jovens.

 

 

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