Por que a direita americana odeia o Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli

Encontro entre o papa Francisco e Joe Biden | Foto: Vatican News

03 Novembro 2021

 

Qual o significado da oposição católica a Joe Biden e ao Papa Francisco em relação ao futuro da Igreja nos Estados Unidos?

 

A reflexão é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 02-11-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.

 

Segundo ele, "essa não é uma crise teológica sobre os ensinamentos tradicionais sobre o aborto e a Eucaristia, que não estão em questão. É uma crise teológica do sensus Ecclesiae, uma crise eclesiológica do “senso da Igreja”, que corre o risco de ser curvada – até pelos próprios dirigentes episcopais da Igreja – às necessidades imediatas da política eclesial e partidária".

 

"A questão não é o Papa Francisco - constata o teólogo. Ela tem a ver com um problema muito maior. Da mesma forma que as preocupações sociais e políticas moldaram a teologia contemporânea a ponto de cada campo da teologia se tornar, de uma forma ou de outra, teologia política, agora, no contexto dos Estados Unidos, a eclesiologia católica tomou a forma de uma eclesiologia política que tem traços sectários e, portanto, não católicos".

 

Eis o texto.

 

O recente encontro no Vaticano entre o presidente Joe Biden e o Papa Francisco desmascarou ainda mais a animosidade que a direita católica e a direita alternativa nos Estados Unidos alimentam em relação ao atual bispo de Roma.

De fato, essa animosidade se tornou ainda mais virulenta e evidente. Um bispo estadunidense (um bispo católico!) chegou a chamar Francisco de “serpente”, uma calúnia que é uma reminiscência dos tropos anticatólicos do século XVI contra o papado e os jesuítas.

A assimilação aos animais como forma de depreciar o papa é uma recepção bizarra da encíclica Laudato si’ de Francisco. Mas é a única recepção que existe em alguns lugares (o bispo em questão depois apagou o tuíte ofensivo e pediu desculpas, mas continuou tuitando de forma polêmica sobre o encontro do papa com Biden).

Muitos se perguntam o que teria acontecido, sob os antecessores de Francisco, se os bispos católicos tivessem insultado e mostrado desprezo publicamente pelo papa – algo que o Código de Direito Canônico (cân. 1.373) inclui entre os “delitos contra as autoridades eclesiásticas e contra a liberdade da Igreja”.

Mas o fenômeno se tornou grande demais para ser tratado apenas de um ponto de vista canônico. Esse fenômeno é um escândalo, mas não se limita mais a casos isolados.

Agora se tornou um elemento fixo na relação entre os líderes mais influentes da direita católica estadunidense e o atual papa.

Essa animosidade da direita católica e da direita alternativa não começou com a eleição de Biden como presidente em 2020, mas mais de sete anos antes, com a eleição de Francisco como bispo de Roma.

 

Desrespeito pela tradição por parte de quem professa defendê-la

 

Trata-se da reação raivosa contra o fato de que a trajetória do catolicismo – tanto nos Estados Unidos quanto globalmente – não está seguindo os planos daqueles que idealizaram não apenas um catolicismo naturalmente conservador, mas conservador também nos moldes do catolicismo conservador dos Estados Unidos.

Voltando à corrida presidencial em 2004 de John Kerry, outro católico romano, a direita católica nos Estados Unidos tem exigido vigorosamente que a Eucaristia seja negada a políticos que defendam a legalidade do aborto.

Eles invocam o Código de Direito Canônico. Mas deixam de mencionar que o ensino sobre a Comunhão como “remédio para os pecadores” é doutrina da Igreja, e não uma inovação do papa atual.

O Concílio de Trento (Sessão XXII) afirmou claramente que, na Eucaristia, o Senhor “perdoa os malfeitos e os pecados, mesmo que graves” – crimina et peccata etiam ingentia dimittit (cf. Denzinger, 1743).

Esse desprezo pela tradição por parte dos católicos que gostariam de punir Biden por fomentar uma agenda pró-vida (e uma cultura pró-vida genuína é tragicamente urgente nos Estados Unidos) não se deve apenas à ignorância intencional ou ideológica. Frequentemente, é o resultado de uma verdadeira ignorância.

O que vimos nos debates entre os católicos dos Estados Unidos – tanto em ambientes intraeclesiais quanto em praça pública – é um colapso do sentido da tradição.

Ele foi substituído por uma noção ou ideia de tradição religiosa que é politicamente conveniente, mas não genuinamente católica.

Essa é uma das consequências da crise de recepção intelectual e teológica do Vaticano II e da sua doutrina sobre a Igreja.

 

Uma crise eclesial no “sensus Ecclesiae”

 

Obviamente, há pouco conhecimento sobre as instituições da Igreja.

No caso das relações entre a presidência dos Estados Unidos e o papado, temos visto uma total falta de compreensão, mesmo entre alguns bispos, das distinções que existem entre o bispo de Roma, o Vaticano, a Santa Sé, a Igreja universal, e as funções e papéis de cada um deles.

No pequeno mas vasto mundo que chamamos de “Roma” ou “Vaticano”, certas coisas se tornaram mais complexas desde os tempos de São Pedro, Júlio II e Pio IX.

Agora, trata-se de um governo estatal e de um governo da Igreja com um serviço diplomático. Dentro do seu pequeno território, há um aglomerado de igrejas, um mosteiro, uma burocracia, um banco, um ponto turístico, um museu, um correio, um corpo de bombeiros, até uma prisão e muito mais.

Isso é algo que Francisco e Biden conhecem bem. Alguns dos ideólogos da direita católica também sabem disso, mas optam por manter isso escondido dos seus seguidores e patrocinadores.

Essa não é uma crise teológica sobre os ensinamentos tradicionais sobre o aborto e a Eucaristia, que não estão em questão.

É uma crise teológica do sensus Ecclesiae, uma crise eclesiológica do “senso da Igreja”, que corre o risco de ser curvada – até pelos próprios dirigentes episcopais da Igreja – às necessidades imediatas da política eclesial e partidária.

 

Apenas “levemente católico”

 

Os perdedores da Guerra Civil na Irlanda assumiram o poder em 1932.

Um dos líderes era um homem chamado Sean Francis Lemass. Alguns anos antes, ele havia sido questionado se seu partido político, o Fianna Fáil, estava totalmente comprometido com os ideais democráticos. Ele respondeu que seu partido era “levemente constitucional”.

Podemos usar a analogia para os círculos influentes no catolicismo estadunidense.

Em termos da sua eclesiologia e da sua comunhão com uma Igreja universal, eles mostraram e continuam mostrando um nível de desprezo pelo bispo de Roma que nos levaria a dizer com razão que agora eles são apenas “levemente católicos”.

A questão não é o Papa Francisco. Ela tem a ver com um problema muito maior.

Da mesma forma que as preocupações sociais e políticas moldaram a teologia contemporânea a ponto de cada campo da teologia se tornar, de uma forma ou de outra, teologia política, agora, no contexto dos Estados Unidos, a eclesiologia católica tomou a forma de uma eclesiologia política que tem traços sectários e, portanto, não católicos.

Dentro dessa cultura católica particular, o ímpeto político passará em algum momento, mas o movimento religioso durará um pouco ou muito mais, até porque as “guerras culturais” estadunidenses se tornaram globais.

As reações contra o pontificado de Francisco demonstraram que passamos do momento em que o neoconservadorismo e o neotradicionalismo católicos estadunidenses poderiam ser liquidados como uma febre passageira, algo que teria uma vida tão curta quanto a temporada política que o gerou.

 

Critérios básicos para permanecer católico

 

Trata-se de algo diferente. É um movimento religioso dentro da Igreja Católica e que precisa ser tratado como tal, lembrando-o de alguns critérios básicos da eclesiologia católica para permanecer na Igreja Católica.

Aqui estão três, apenas para começar.

O primeiro é que deve haver uma coerência entre os objetivos, os métodos e os comportamentos para mostrar a unidade entre a própria vida e a fé que se professa. O catolicismo não é bem servido pela proteção de líderes políticos cuja vida privada é uma manifestação de desprezo total pelos valores cristãos e pela decência humana.

O segundo é que deve haver um reconhecimento e uma aceitação da legítima pluralidade de modos de viver o catolicismo.

O terceiro é que deve haver um senso de comunhão visível com os bispos e o bispo de Roma, o papa.

Como afirma a constituição sobre a Igreja do Vaticano II, Lumen gentium, o colégio dos bispos e os bispos individuais não têm nenhuma autoridade a menos que estejam em comunhão com o Romano Pontífice, o sucessor de Pedro.

A crise sistêmica da Igreja institucional enfraqueceu o nosso “senso da Igreja”.

Mas há o perigo de se criar uma falsa equivalência aqui.

A dissidência católica liberal-progressista nunca demonstrou tamanho desprezo pelos critérios básicos de comunhão na Igreja Católica.

A polêmica sobre Joe Biden e a Comunhão eucarística é importante. Mas não porque se trata do presidente dos Estados Unidos.

É importante porque é a história do bullying não conservador e não tradicional dos chamados conservadores e tradicionalistas que continuam chamando de conservador e de tradicional aquilo que, na verdade, não é.

 

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