A missa que divide

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04 Setembro 2021

 

Para entender por que o Papa Francisco achou que precisava agir para encerrar a experiência de permitir que a forma antiga do Rito Romano continuasse, seu biógrafo conversou com católicos em uma cidade mercantil inglesa, cuja vida paroquial e culto foram devastados por um grupo de tradicionalistas.

 

Capa do livro "Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor"

(Foto: Reprodução)

 

O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco.

 

O artigo foi publicado por The Tablet, 02-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

A liturgia de meia hora de duração no domingo de manhã às 9h30 na Igreja da Santíssima Trindade, na cidade de Ledbury, no sul do condado de Herefordshire, é toda falada e mecânica, e os cerca de 25 paroquianos vão embora rapidamente assim que os tradicionalistas começam a chegar. Sua Missa Cantata é só às 11h30, mas há ensaios e devoção eucarística antes do início da liturgia tridentina.

 

Há missas solenes com a Comunhão na língua nessa igreja de tijolos amarelos desde julho de 2020, apesar das restrições da Covid, com a presença de até 40 pessoas, que vêm de todos os três condados da região. As liturgias são seguidas pelo rosário e por almoços compartilhados no salão paroquial até a tarde de domingo.

 

Entre a igreja e o estacionamento, uma senhora de meia-idade se aproxima com um largo sorriso: sou eu quem está fazendo a reportagem sobre o que aconteceu aqui? Quando ela começa a me contar o que eu já ouvi muitas vezes, as lágrimas brotam de seus olhos. “É tão horrível”, é tudo o que ela consegue dizer. “Era uma paróquia tão adorável. Está tudo despedaçado agora”.

 

Para o pároco de Ledbury, Pe. Adrian Wiltshire, 71 anos, a pandemia foi uma oportunidade no ano passado para dar o lugar de honra para a liturgia pré-Vaticano II. Como resultado, muitos na comunidade paroquial se sentiram marginalizados.

 

O edito de julho do Papa Francisco, restringindo e regulamentando o uso da missa tradicional em latim, significa que o Pe. Wiltshire está agora celebrando liturgias usando o missal de 1962 sem a permissão de seu bispo, George Stack, de Cardiff. E os paroquianos têm uma nova esperança de que poderão recuperar a sua paróquia.

 

Embora ele seja seu pároco há quase uma década, foi apenas recentemente, dizem eles, que o Pe. Wiltshire foi “radicalizado” pelos tridentinistas. Ninguém se importava que durante anos ele celebrava uma missa na “Forma Extraordinária” às 9h, um domingo por mês, para os poucos paroquianos que gostavam dela.

 

Mas, no ano passado, ele fez duas mudanças. Primeiro, com as missas públicas oficialmente suspensas por motivos de saúde, ele começou a celebrar a missa diariamente no rito antigo, avisando que a porta dos fundos da igreja estava aberta para quem quisesse assistir (agora, após o lockdown, a missa dos dias de semana continua sendo celebrada no rito antigo).

 

Em segundo lugar, ele ofereceu a paróquia como sede para o Extraordinay Malvern, como é conhecido o ramo de Worcestershire da Latin Mass Society. Ele não havia conseguido chegar a um acordo com as duas paróquias anteriores, em Worcester e Malvern.

 

Como seu líder, Alistair Tocher, relata na revista Mass of Ages, da Latin Mass Society, o Pe. Wiltshire deu ao Extraordinary Malvern “o primeiro horário do fim da manhã” todos os domingos em Ledbury. Ele celebrava uma “Missa Cantata” completa com o seu coro, a Schola Gregoriana Malverniensis, todas as semanas desde o segundo domingo do Advento do ano passado.

 

As liturgias da Semana Santa do Extraordinary Malvern em Ledbury neste ano foram todas “totalmente cantadas”, relata Tocher com orgulho, e até tiveram “dois cantores” na Quinta-Feira Santa.

 

Os paroquianos de Ledbury dizem que a liturgia da Quinta-Feira Santa foi cortada o máximo possível – sem a procissão do Altar do Repouso, por exemplo – para dar espaço para a missa tradicional cantada em latim.

 

Os visitantes tridentinos doam generosamente, e o Pe. Wiltshire não esconde o seu prazer em recebê-los. Para os fiéis paroquianos da paróquia de Ledbury, por outro lado, a experiência foi de uma perda pela qual estão sofrendo.

 

Durante anos, a missa paroquial das 10h30 era uma liturgia comunitária de uma hora de duração, com a participação de dezenas de pessoas, com incenso, um coro completo, o envolvimento de leitores e ministros da Eucaristia, flores frescas e chá e café depois da celebração. Mas, quando as igrejas reabriram para a missa pública em agosto passado, os paroquianos descobriram que haviam sido “deslocados” (como disse um paroquiano, John Leahy) para um novo horário reduzido às 9h30, para liberar o resto da manhã para os visitantes tradicionalistas.

 

Eles até descobriram que o altar estava agora preparado para uma missa tridentina (velas enormes, genuflexórios), e o Pe. Wiltshire começou a celebrar a missa paroquial semanal de costas para eles.

 

Após a visita do arcebispo Stack, nas últimas semanas o padre pelo menos estava virado para eles novamente. Mas lhes deu as costas de outras formas. Ainda não há nenhum coro ou música: o Pe. Wiltshire – professor de música antes de entrar para o comércio de vinhos (ele só ordenado no fim dos seus 50 anos) – disse aos paroquianos que ele recebe a sua “injeção de música” na Schola das 11h30. Também não há nenhum encontro pós-missa, porque os visitantes tradicionalistas estão correndo para se preparar.

 

A mensagem que os paroquianos receberam não poderia ser mais clara. “A missa tridentina se tornou a paróquia”, como diz Kathryn. “A missa principal é a missa tridentina.”

 

“Kathryn” ainda vai à missa das 9h30 e, como alguns dos outros paroquianos com quem eu conversei, ela prefere que o seu nome não seja citado. Mas John Leahy e Bernadette Eakin não se importam: junto com muitos outros, eles agora vão para outras paróquias, depois de tentativas infrutíferas de dialogar com o padre.

 

O Pe. Wiltshire eliminou o conselho paroquial e rejeitou as suas queixas, dizendo-lhes: “Temos que seguir em frente.” Os paroquianos escreveram várias vezes ao arcebispo. Muitos cancelaram suas ordens permanentes em protesto.

 

Eu falei com seis desses paroquianos e conheci três deles. Eles são católicos impressionantemente comprometidos e apaixonados, do tipo que qualquer paróquia teria o prazer de ter, que amam a Igreja e servem em seus ministérios. Eles são pacientes e indulgentes com os modos autocráticos e excêntricos dos seus padres e enfatizam que não têm nada contra a “missa em latim” no rito tradicional.

 

Alguns tentaram se envolver e acolher o povo da missa tradicional em latim. Mas construir pontes não é fácil. Eles estão chocados com as invectivas contra o Papa Francisco e o desprezo deles pela missa “modernista” (Eakin estremeceu quando as pessoas da missa tradicional em latim riram desdenhosamente da ideia de haver acólitas, chamando-as de “serviettes”).

 

E os paroquianos continuam incomodados com a forma como as diretrizes dos bispos sobre a Covid, voltada a proteger a saúde da comunidade, foram postas de lado.

 

É a arrogância que irrita. “Eles se consideram acima da lei”, diz Leahy, que afirma que muitos paroquianos idosos pararam de ir à missa por causa da imprudência em relação à Covid na missa das 11h30 e nos encontros posteriores.

 

“Tina”, que eu encontrei para um café depois da missa no Hotel Feathers, diz que grande parte da mágoa está no sentimento de que o padre os considera incultos e pouco sofisticados em comparação com seus visitantes tradicionalistas. “A nossa missa é miserável agora”, diz ela. “Ele está apenas esperando que vamos embora para ficar com o povo dele.”

 

Você pode encontrar palavras para expressar isso?, pergunto eu. Ela diz que sim. É “destituída de direitos”.

 

“É como se ele tivesse sido elaborado para enfrentar a divisão na paróquia de Ledbury neste momento”, disse Eakin quando eu perguntei sobre o motu proprio Traditionis custodes. Uma frase em particular se destaca na carta do papa aos bispos que acompanha o motu proprio, na qual ele lhes pede que evitem o estabelecimento de “paróquias ligadas mais aos desejos e à vontade de sacerdotes individuais do que às necessidades reais do ‘santo Povo fiel de Deus’”.

 

Francisco agiu com base no testemunho de bispos de todo o mundo de que a tentativa de Bento XVI de permitir um uso mais amplo do missal revogado de 1962 havia levado a sérias divisões nas paróquias e à disseminação de ideologias tóxicas e fundamentalistas.

 

 

Isso era particularmente verdade nos Estados Unidos, que tem 6% dos católicos do mundo, mas 40% dos locais que celebram a missa pré-conciliar, quase todos os quais estão identificados com ideologias “rad-trad” e grupos antipapais.

 

Um bispo dos Estados Unidos me disse que ele, entre muitos outros, levantou a questão em suas visitas ad limina no fim de 2019 a Roma. Eles falaram ao papa, de forma educada e discreta, sobre os “ataques venenosos” contra ele. Muitos concordaram com a abordagem “viva e deixe viver” de Bento XVI, mas os crescentes ataques ao Vaticano II por parte de grupos da missa tradicional em latim fizeram muitos bispos chegar ao seu limite.

 

 

Mesmo sem os acréscimos tóxicos – as subculturas de racismo, antissemitismo, homofobia e as conspirações antivacina que se vinculam aos grupos da missa tradicional em latim – estava claro que a esperança de Bento XVI de um uso duplo do mesmo rito romano, um “ordinário” e outro “extraordinário”, que gradualmente se fundiria com o tempo, havia desmoronado.

 

Treze anos depois do motu proprio Summorum pontificum, de Bento XVI, “a coisa ficou totalmente fora de controle e se tornar um movimento, especialmente nos Estados Unidos, França e Inglaterra”, disse o arcebispo “Gus” Di Noia, secretário-adjunto estadunidense da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano.

 

No ano passado, Francisco pediu que a equipe de Di Noia na Congregação realizasse uma pesquisa com os bispos do mundo e, com a nova equipe da Congregação para o Culto Divino sob seu prefeito recém-nomeado, o arcebispo Arthur Roche, nascido em Yorkshire, processasse os resultados. A pesquisa mostrou que, nas palavras de Di Noia, o movimento da missa tradicional em latim “sequestrou as iniciativas de São João Paulo II e de Bento XVI para seus próprios fins”, de modo que “o que temos agora é um movimento dentro da própria Igreja, aparentemente endossado por suas lideranças, que semeia a divisão ao minar as reformas do Concílio Vaticano II mediante a rejeição da mais importante delas: a reforma do rito romano”.

 

Diante dessa evidência, Francisco não teve escolha a não ser agir. Como disse o Papa Emérito Bento XVI em seu livro “O último testamento”, “no momento em que se vê um cisma da Igreja se aproximando, o papa é obrigado a fazer o que for possível para evitar que isso ocorra”.

 

 

Apesar da sincera esperança de Bento XVI de que as duas formas da liturgia “enriquecessem uma à outra”, explicou Francisco em sua carta que acompanha o Traditionis custodes, a missa tradicional em latim havia sido usada “para aumentar as distâncias, endurecer as diferenças e construir oposições que ferem a Igreja e dificultam seu progresso, expondo-a ao risco da divisão”.

 

Daí a necessidade, agora, de retirar essas concessões e devolver aos bispos a autoridade para permitir ou proibir as celebrações tridentinas depois de terem avaliado “a realidade dos grupos que celebram com este Missale Romanum”.

 

O objetivo de Francisco é claro: que os tradicionalistas “voltar ao Rito Romano promulgado pelos santos Paulo VI e João Paulo II”, que buscava suscitar, em diversas línguas, uma única oração que expressasse a unidade da Igreja. “Essa unidade deve ser restabelecida em toda a Igreja de rito romano”, disse Francisco aos bispos do mundo.

 

No entanto, esse “retorno” exigirá uma conversão profunda. Pois o fato não é apenas que o movimento da missa tradicional em latim se associou a ideologias tóxicas; ele mesmo se tornou uma ideologia. Como alguém muito próximo a ele me disse recentemente, Francisco se sentiu compelido “a lidar com o crescimento dessa ideologia desencarnada, com caridade, compreensão e coragem, para colocar as coisas no seu devido lugar”.

 

Para Francisco, há um discernimento de espíritos em jogo. No uso pós-conciliar da missa tradicional em latim, ele vê o ressurgimento de uma antiga heresia gnóstica, que nega – não abertamente ou conscientemente, mas na prática – a própria encarnação. Foi o que Francisco disse a um encontro de religiosos latino-americanos no dia 13 de agosto, quando falou da indissociabilidade entre evangelização e inculturação.

 

Quando não entra na vida e na cultura do povo, disse Francisco, a vida cristã “acaba nas posturas gnósticas mais aberrantes e ridículas”, como ocorre com “o mau uso da liturgia”. Quando o que importa é a ideologia e não “a realidade dos povos”, disse ele, “isso não é Evangelho”.

 

 

Quando os cristãos abandonam a Encarnação pela ideologia, como Francisco sempre diz, o diabolos não fica muito atrás, e a divisão vem em seguida. O mau espírito será conhecido pelo distúrbio e pela divisão que semeia, e a arrogância e a vitimização indignada que a caracterizam. É o que os bispos relatam, e é por isso que Francisco teve que agir.

 

O teólogo Karl Rahner descreveu a ideologia como “um fechamento fundamental diante da ‘totalidade’ da realidade, que transforma um aspecto parcial em um absoluto”. Ela teme as mudanças; seu lema é “semper idem”. Ela está presente na ideia de um conhecimento especial em que as ideias e rubricas contingentes – a ideia gnóstica, por exemplo, de que receber a Comunhão na língua e não na mão é de alguma forma mais “sagrado” – são absolutizadas e recebem uma importância muito além da que elas possuem no plano geral de Deus.

 

Um sinal importante da ideologia gnóstica é quando as pessoas criam um “sistema” abstrato com suas próprias leis rígidas e divisões “preto e branco” do mundo entre “nós” (os bons) e “eles” (os maus). A mentalidade ideológica tem grande dificuldade em admitir erros e fraquezas.

 

As respostas tradicionalistas da Traditionis custodes têm variado de invectivas antipapais surpreendentemente cruéis do tipo “rad-trad” até o vitimismo, vendo-se como um fiel “remanescente” da verdadeira Igreja agora perseguido. O que eles têm em comum é a ausência total de arrependimento. Em nenhum lugar há uma sugestão de que o escárnio e o desprezo pelos quais eles são notórios possam indicar a necessidade de serem purificados. Em vão buscamos qualquer reconhecimento humilde de que isso poderia ter sido causado por eles mesmos; o edito é visto como um ato de agressão por parte de um papa autocrático contra vítimas inocentes (Tocher não respondeu à minha pergunta sobre se a Latin Mass Society aceitava alguma responsabilidade pelas divisões na paróquia de Ledbury. O Pe. Wiltshire recusou-se a ser entrevistado).

 

Também não há o menor indício de reconhecimento de que não é contra a missa de rito antigo em si mesma que Francisco está agindo, mas sim contra a ideologia de quem a usa para minar a Igreja.

 

Sob o título “De volta às catacumbas?”, o presidente da Latin Mass Society, Joseph Shaw, explica na nova edição da Mass of Ages que os “católicos tradicionais” devem responder à “nova atitude da Santa Sé” de “hostilidade oficial para com a missa tradicional”. Ele pede que seus seguidores se preparem para o deboche e a perseguição, sofram pelo “tesouro espiritual” que eles “têm o dever de preservar”. Ele sugere que leiam os livros deles e assistam a aulas de corte e costura litúrgicos (mulheres) e de acolitado (homens). “Deus está nos chamando a expiar os os nossos pecados e a reparar os da Igreja”, acrescenta ele ao fim. Mas em nenhum lugar Shaw solicita um exame de consciência ou admite falhas na própria Latin Mass Society.

 

Quanto a Ledbury, não está claro o que vai acontecer após da publicação do Traditionis custodes. O arcebispo Stack me disse que não fez “nenhum julgamento definitivo sobre a necessidade da celebração da missa na forma extraordinária na diocese” e está buscando alguns esclarecimentos por parte de Roma. Ele está em contato com três dos quatro padres da arquidiocese que celebram a missa tridentina, mas o Pe. Wiltshire “ainda não pediu a permissão prevista no motu proprio”.

 

As missas da Latin Mass Society em Ledbury, em outras palavras, não são apenas divisivas, mas também, neste momento, canonicamente ilícitas. E o Povo de Deus em Ledbury ainda não sabe se vai recuperar a paróquia que um dia amou.

 

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