Povo Munduruku retoma autodemarcação da TI Sawré Muybu

Depois de mais de um ano de paralisação, guerreiros indígenas abrem picadas e instalam placas na mata, mas encontram território que continuou sendo ameaçado por invasões de madeireiros e garimpeiros (Foto: cedida por Alessandra Korap Munduruku)

20 Agosto 2021

 

Depois de um ano parados por causa da pandemia da covid-19, os Munduruku do Médio Rio Tapajós, no Pará, retomaram a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, símbolo de resistência a hidrelétricas, garimpo e desmatamento. Entre os dias 12 e 16 deste mês, 30 guerreiros Munduruku percorreram 15 quilômetros de Sawré Muybu. Durante a abertura de picadas e instalações de placas de sinalizações do território, os indígenas encontraram uma pista de pouso clandestina e uma extensa área desmatada.

 

A reportagem é de Cicero Pedrosa Neto, publicada por Amazônia Real, 18-08-2021. 

 

“As invasões aumentaram e a pandemia acabou servindo de desculpa para que o nosso território ficasse ainda mais desprotegido. Essa ação é muito importante, porque a gente faz a fiscalização e a floresta aumenta”, disse a liderança Alessandra Munduruku, em entrevista exclusiva à Amazônia Real. Alessandra se juntou aos moradores de Sawré Muybu para participar da autodemarcação da TI. “Estamos protegendo aquilo que é nosso. Estamos lutando para garantir o futuro e para manter a floresta em pé, coisa que o governo não faz.”

 

A autodemarcação de Sawré Muybu é pioneira nesta ação de autonomia de regularização fundiária frente à recusa do Estado brasileiro em demarcar as terras indígenas, tornando-se referência para outras iniciativas semelhantes. Nos últimos anos, a invasão da TI por madeireiros, garimpeiros, palmiteiros e grileiros ficou ainda mais grave. E os Munduruku ainda precisam lidar com a ameaça de futuras hidrelétricas.

 

A expedição foi liderada pelo cacique da aldeia, Juarez Saw Munduruku, que está à frente da ação desde o princípio da autodemarcação, há seis anos. “A gente está lutando para afastar os invasores das nossas florestas. A gente faz autodemarcação para garantir que as futuras gerações possam ter o direito de viver no nosso território, as do futuro e as de agora também, já que a Funai até hoje não demarcou nossa área”, disse o cacique à Amazônia Real. Ele, a esposa, Juquita Munduruku, e outras lideranças fundaram o território na margem direita do Rio Tapajós, no início dos anos 2000 Sawré Maybu possui 178 mil hectares e sempre foi um território conhecido do povo Munduruku, que caçava e pescava nesta área. Localizado dentro dos limites do município de Itaituba, no sudoeste paraense, o território se estende até a foz do rio Jamanxim e da Floresta Nacional do Jamanxim (Flona Jamanxim).

 

A autodemarcação de Sawré Muybu começou em 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff (PT). Na época, o território, embora reconhecido, enfrentava resistência do governo federal e do Ministério de Minas e Energia devido ao projeto de um complexo de hidrelétricas previsto para o rio Tapajós e que alagaria grande parte de Sawré Muybu. Com base em um traçado da Fundação Nacional do Índio (Funai), os Munduruku decidiram eles próprios fazer a autodemarcação do território.

 

A ameaça da construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós, licitada em 2015, com capacidade de produção de energia prevista de 6,1 gigawatts, uma das maiores do mundo se tivesse sido construída, foi definitivo para que os Munduruku decidissem se organizar de forma autônoma. Em agosto de 2016, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, o Ibama suspendeu o licenciamento do projeto de hidrelétrica.

 

Meses antes, em abril de 2016, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Sawré Muybu foi publicado pela Funai, mas desde então, o processo de demarcação está paralisado. Com Jair Bolsonaro, as expectativas são praticamente inexistentes, já que o presidente disse que em seu governo não haverá nenhum centímetro de terra indígena demarcada.

 

Cacique Juarez Munduruku em frente ao Ministério da Justiça em Brasília no ATL de 2018 (Foto: Yanahin Matala Waurá/Amazônia Real)

 

Sem a continuidade do processo por parte da Funai, que seria finalizado com a homologação, Sawré Muybu virou alvo do garimpo ilegal, da extração de madeira e do desmatamento, além de grandes empreendimentos como as obras de portos graneleiros e a ferrovia Ferrogrão, com potencial para impactar mais de 10 terras indígenas, entre elas, Sawré Muybu.

 

Segundo o cacique Juarez Saw Munduruku, a autodemarcação é uma forma de garantir o direito ancestral do povo Munduruku sobre o território que margeia o rio Tapajós, hoje ameaçado por diversos empreendimentos, “alguns ainda não saíram do papel, outros que já estão instalados na região ou que já se encontram em fase de implantação.

 

A Amazônia Real procurou a Funai para saber quando o órgão pretende concluir o processo de demarcação da TI Sawré Muybu, mas até o fechamento da reportagem não obteve resposta.

 

Como é a autodemarcação

Autodemarcação da TI Sawré Muybu, do povo Mundukuku, feita na semana passada (Foto: cedida por Alessandra Korap Munduruku)

 

Os guerreiros Munduruku se reúnem em comitiva e entram na floresta para identificar os pontos de desmatamento, furto de madeira, queimadas, presença de garimpos ilegais e de maquinários – utilizados na derrubada das árvores ou nos garimpos –, construção de ramais, entre outras formas violações ao território. O trabalho da autodemarcação Munduruku é feito para garantir que as fronteiras da TI estejam protegidas contra invasores e, por isso, faz-se também a afixação de placas que identifiquem que o território pertence ao povo Munduruku.

 

“A gente tem feito a autodemarcação do território por conta dos projetos de empreendimentos que ameaçam as terras Munduruku, como Ferrogrão, hidrovias, as hidrelétricas, os portos. Por isso, desde 2014 a gente vem falando que ali é um território indígena. E a gente está buscando isso, que todos saibam e que demarquem o território, porque ele já é reconhecido desde 2016, mas até hoje ele não foi demarcado”, relata Alessandra.

 

Em setembro de 2020, a Amazônia Real em parceria com a Amazon Watch, sobrevoou os territórios Munduruku, incluindo a TI Sawré Muybu, e as imagens produzidas pela fotógrafa Marizilda Cruppe mostram o avanço da destruição das florestas pela ação de madeireiros e grileiros, e da poluição dos rios, causada pela presença maciça de garimpos que atuam ilegalmente na região.

 

Vítimas da covid-19

Cacique Vicente Saw Munduruku durante a assembleia geral do povo Munduruku na aldeia Katö, no rio Kabitutu, Alto Tapajós em 2016 (Foto: Anderson Barbosa/Fractures Collective)

 

A autodemarcação de Sawré Muybu também representa a retomada da mobilização dos Munduruku após mais de um ano de paralisação forçada por conta do avanço do coronavírus entre os povos indígenas da Amazônia que, particularmente, golpeou o povo Munduruku, levando à morte lideranças importantes do movimento de resistência das aldeias do alto e médio Tapajós, como Vicente Saw, Amancio Ikon Munduruku, Raimundo Dace, Angélico Yori, Jerônimo Manhuary, entre outros. Segundo dados da Coiab, o povo Munduruku foi o mais afetado pela Covid-19 no estado do Pará, totalizando 15 óbitos até agora.

 

Em meio aos ataques invisíveis da Covid-19, e da herança deixada pelos garimpos no sangue dos Munduruku – a contaminação por mercúrio, segundo estudos recentes da Fiocruz – eles tiveram ainda que enfrentar outras formas de violência durante a pandemia. No dia 25 de março do ano passado, a sede da Associação de Mulheres Indígenas Munduruku – Wakomborum, foi alvo de ataque de garimpeiros, na cidade paraense de Jacareacanga.

 

Em 26 de maio deste ano, no mesmo município, em um atentado também orquestrado por garimpeiros, e com participação de indígenas favoráveis ao garimpo, as casas da líder Leusa Kaba Munduruku e sua mãe, a cacica Isaura Muo Munduruku, foram incendiadas na aldeia Fazenda Tapajós, durante uma operação da Polícia Federal. Ambas precisaram se refugiar em local desconhecido com medo das ameaças.

 

No mês seguinte, dia 11 de junho, mais um ataque. Dessa vez contra um ônibus que iria levar uma comitiva de caciques e outras lideranças Munduruku até Brasília, para participar do Acampamento Terra Livre (ATL/2021) e das manifestações contra o PL 490, a tese do “marco temporal” e outras pautas anti-indígenas que seriam votadas no Congresso, em Brasília. Com apoio de garimpeiros, indígenas favoráveis ao garimpo furaram os pneus do ônibus da empresa J Quaresma e ameaçaram os dois motoristas do veículo. Os indígenas só conseguiram seguir viagem dois dias depois, escoltados pela Polícia Rodoviária Federal.

 

“A gente não vai parar aqui não, a gente vai continuar fazendo essa fiscalização porque se a gente desistir agora, quem é que vai cuidar dos territórios?”, indaga Alessandra, vítima constante de ameaças promovidas pela escalada da violência nas terras Munduruku.

 

Marco temporal

Alessandra Korap Munduruku durante ATL em Brasília (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2019)

 

“A gente sabe que com este governo é difícil a demarcação sair do papel, mas nós não podemos parar de fiscalizar, porque a Funai não faz, ICMBio não faz, Ibama não faz, a Justiça não faz e, agora, ainda querem criar leis para barrar a demarcação das Terras Indígenas? Isso é muito grave”, conta Alessandra Korap.

 

Ela faz alusão ao Projeto de Lei 490 – que muda as regras para a demarcação de terras indígenas no Brasil e abre brechas para a legalização de atividades garimpeiras em terras indígenas, cujo texto base já foi aprovado na Câmara dos Deputados em junho deste ano – e à tese do “marco temporal”, marcada para ser votada no próximo dia 25, pelo STF, em Brasília, após adiamento em junho.

 

O “marco temporal” é um dispositivo que orienta o não reconhecimento de territórios indígenas demarcados após 1988 – data da promulgação da Constituição – contrariando o direito ancestral de ocupação dos territórios pelos povos originários.

 

O resultado do julgamento no STF, que versa sobre um pedido de reintegração de posse de áreas localizadas no Sul do país, pertencentes ao povo Xokleng, irá impactar todos os territórios indígenas do Brasil, uma vez que o processo em questão ganhou status de “repercussão geral”.

 

“O marco temporal vai afetar não só os territórios Xokleng, mas todos os territórios indígenas, inclusive o território Sawre Muybu. Por isso que a gente precisa lutar contra essas pautas anti-indígenas em Brasília”, diz Alessandra, que já se prepara para embarcar rumo à capital federal e se juntar às mobilizações previstas para acontecerem nos próximos dias.

 

“Isso tem tirado o sono da gente; a gente vive preocupado com isso”, admite o cacique Juarez Saw.

 

Mudanças climáticas

Marunha Kirixi Munduruku - jovem liderança do cinema na aldeia (Foto: Ana Mendes/Amazônia Real/2017)

 


“Eu fico observando essas pessoas falarem em ‘mudanças climáticas’ e ‘aquecimento global’, mas continuam comprando soja, carne, madeira ilegal e ouro ilegal das terras indígenas, que vem do desmatamento. Será que elas não sabem que somos nós que mantemos a floresta em pé? Que somos nós que derramamos nosso sangue para proteger a biodiversidade?”, reivindica Alessandra Korap.

 

A Terra Indígena Sawré Muybu, dos Munduruku às margens do Rio Tapajós, no Pará (Foto: Ana Mendes/Amazônia Real/2017)

 

Em meio à emergência de uma série de ocorrências climáticas de repercussões desastrosas em todo o mundo nos últimos meses, Alessandra aponta para o papel dos povos indígenas na preservação da Amazônia, fundamental para garantir a estabilidade do planeta, segundo os cientistas.

A fala de Alessandra também evoca a responsabilidade dos atos desempenhados pelos pariwat (não-indígenas no idioma Munduruku) no processo de destruição e expropriação dos recursos naturais. “Existe um conjunto de infraestrutura vindo em direção aos nossos territórios, porque se vem uma hidrelétrica, um porto ou qualquer outro empreendimento, ele vem acompanhado de mais desmatamento, de mais invasões e mais sofrimento para o nosso povo. Eles nunca respeitaram a gente”, explica a líder. 

 

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