28 Julho 2021
"O agronegócio não interrompeu sua marcha e nem mesmo o desespero de quem aguarda numa fila por um “ossinho” mostrou-se capaz de sensibilizar seus operadores", escreve Lucas Gama Lima, professor do Curso de Geografia do Campus do Sertão da UFAL e membro do Comitê Central do PCB em artigo publicado por EcoDebate, 27-07-2021.
Eis o artigo.
Atualmente, um dos temas mais comentados é o crescimento avultado de vítimas da fome durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Certamente, uma das mais graves crises de insegurança alimentar das últimas duas décadas.
São vinte milhões de pessoas, aproximadamente, sem ter o que comer e mais da metade da população brasileira sofrendo diferentes níveis insegurança alimentar [ii].
Dois dos episódios mais recentes dessa grave crise vieram à tona na última semana. Imagens de prateleiras de um supermercado, em Cuiabá/MT, amplamente divulgadas nas redes sociais, mostravam a venda de fragmentos de arroz e de bandinha de feijão para consumo humano. São produtos que, anteriormente, eram destinados à ração animal e/ou descartados. Também provenientes da capital mato-grossense, circularam vídeos e imagens de pessoas numa enorme fila, à espera da doação de ossos bovinos por parte de um açougue. A frase do proprietário do estabelecimento, em uma determinada entrevista [iii], é bem ilustrativa do que ora descrevemos:
"Até o ano passado, vinham em busca da doação cerca de 30 a 40 pessoas. Atualmente, às vezes há mais de 200 pessoas na porta. O fato é que o número aumentou dessa forma devido à fome. Nós doamos alguns ossinhos, o que não é muita coisa, mas fazem muita diferença no dia-a-dia deles".
Não se pode afirmar que o aumento do número de famélicos no Brasil, durante a pandemia de COVID-19, é um evento inesperado ou acidental. Vários foram os estudos e as publicações que advertiram sobre essa possibilidade, a exemplo de artigo escrito por mim, em meados de abril de 2020, sob o título “Se esperarmos o agronegócio, morreremos de fome: população em quarentena quer alimentos e não commodities” [iv]. Lamentavelmente, o desenrolar dos acontecimentos confirmou o temível prognóstico.
As determinações essenciais do fenômeno da fome no Brasil permanecem incólumes. As políticas públicas de segurança alimentar e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foram desmontadas ou fragilizadas, especialmente, entre 2019 e 2020, na primeira metade do mandato presidencial de Bolsonaro. O agronegócio continua ocupando amplas faixas de terra, dotadas de boa disponibilidade hídrica e próximas às grandes concentrações populacionais e às principais rodovias. Além disso, canaliza generosos subsídios estatais para a produção de commodities que integram as cadeias globais de produção de valor, como a circulação de alimentos, energia e celulose.
A despeito das notícias do aumento da fome e do encarecimento de preços dos itens da cesta básica [v] – que têm escandalizado o país desde o segundo semestre de 2020 [vi] – a exportação de commodities pelos operadores do agronegócio não para de bater recordes na pandemia de COVID-19. De janeiro a abril de 2021 a exportação de soja alcançou algo próximo de 34 milhões de toneladas, quantidade superior à recordista marca de 31,9 milhões de toneladas, registradas no mesmo período de 2020. A exportação de milho, acreditem, registrou alta de 1.854% em abril de 2021, estimulada pela especulação do grão na Bolsa de Chicago [vii]. O arroz com casca e o arroz sem casca e parboilizado atingiram a segunda e a terceira maior marca de exportação, respectivamente, dos últimos onze anos [viii] (2010-2020).
Os lucros ostentados pelos operadores do agronegócio, no âmbito da pandemia de COVID-19, falam por si só. A JBS, uma das maiores processadoras de proteína animal do mundo e dona da marca Friboi, encerrou o último trimestre de 2020 com lucro líquido de R$ 4 bilhões, o que representa um crescimento de 65% em relação ao mesmo período de 2019 [ix]. A BRF, controladora das marcas Sadia e Perdigão, anunciou um lucro líquido anual de R$ 1,4 bilhão, elevação de 14,6% em relação ao ano de 2019 [x]. A norteamericana BUNGE, trading global, com várias operações no território brasileiro, anunciou um lucro líquido de 551 milhões de dólares, no quarto trimestre de 2020 [xi], e já celebra o fato de ter mais que triplicado seus ganhos no primeiro trimestre de 2021, quando comparados ao mesmo intervalo de tempo do ano anterior [xii].
Em resumo, o agronegócio não interrompeu sua marcha e nem mesmo o desespero de quem aguarda numa fila por um “ossinho” mostrou-se capaz de sensibilizar seus operadores. Por sinal, não nos parece coincidência que os casos de comercialização de fragmentos de arroz e bandinha de feijão, bem como a doação de ossos bovinos tenham ocorrido em Cuiabá. A capital mato-grossense está no coração do agronegócio brasileiro, onde circundam os hectares a perder de vista dos monocultivos agrícolas, as indústrias processadoras de grãos e proteína animal e os depósitos das tradings. É, portanto, território da riqueza e da miséria.
Se o agronegócio prosseguir ditando a dinâmica do uso da terra, o destino da produção agrícola e se apropriando de parcelas importantes do fundo público, não serão poucos os episódios de filas por “ossinhos”, venda de ração animal como alimento humano, etc, etc. E não adianta alavancar o encarceramento de pessoas por furto de comida [xiii] – como tem ocorrido durante a pandemia de COVID-19 no Brasil – em ações que nos fazem recordar a comovente história de Jean Valjean, personagem do genial Victor Hugo, igualmente condenado por crime famélico na França do século XVIII [xiv]. Que possamos, logo, encerrar essa barbárie!
Notas:
[ii] Disponível aqui.
[iii] Disponível aqui.
[iv] Disponível aqui. Também disponível aqui.
[v] Disponível aqui.
[vi] Disponível aqui.
[vii] Disponível aqui.
[viii] Disponível aqui.
[ix] Disponível aqui.
[x] Disponível aqui.
[xi] Disponível aqui.
[xii] Disponível aqui.
[xiii] Disponível aqui.
[xiv] HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2007.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
No dia 29/07, quinta-feira, o Prof. Dr. Sérgio Amadeu, da UFABC, ministrará a palestra Tecnologia e fome. A uberização do alimento e as big techs na digitalização do agronegócio. O evento será transmitido ao vivo pela página inicial do IHU, YouTube, Facebook e Twitter. Mais informações podem ser consultadas aqui.

Tecnologia e fome. A uberização do alimento e as big techs na digitalização do agronegócio
Leia mais
- Josué de Castro e Graciliano Ramos. A desnaturalização da fome. Revista IHU On-Line Nº 274
- Alimento e nutrição no contexto dos Objetivos do Milênio. Revista IHU On-Line Nº 442
- O Papa sacode a cúpula da FAO: "A fome é um escândalo"
- Mensagem do Papa Francisco por ocasião da Pré-Cúpula sobre Sistemas Alimentares
- Alimentar o mundo com direitos humanos. Artigo de Carlo Petrini
- Sem uma nova agricultura, a fome vencerá. Artigo de Dom Fernando Chica Arellano, representante do Vaticano na ONU
- Fome no Brasil é destaque em debate da Universidade de Coimbra
- Cardeal Turkson: para o futuro, buscar soluções nos sistemas alimentares indígenas
- Fome volta ao Brasil e quase dois terços da população urbana sofrem de insegurança alimentar. Entrevista especial com Renata Motta
- O retorno da fome ao Brasil está no centro de interesses econômicos e políticos. Entrevista especial com Maria Emília Lisboa Pacheco
- A pandemia e a fome: 19 milhões de pessoas no Brasil não têm o que comer. Entrevista especial com Juliano Ferreira de Sá
- Emergência da fome intensifica luta pelo Auxílio Emergencial e evidencia necessidade da renda mínima. Entrevista especial com José Antônio Moroni
- Pandemia da fome
- Entenda por que a fome se alastrou pelo país
- José Graziano, ex-diretor da FAO, aponta papel do agronegócio no agravamento da fome
- Auxílio emergencial não banca nem metade da cesta básica, que subiu mais de 20% em um ano
- Novo salário mínimo tem o menor poder de compra para cesta básica em 15 anos
- ‘A gente está comendo pior’. Aumento dos preços de alimentos traz de volta o fantasma da fome
- O aumento do preço dos alimentos no mundo e no Brasil. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
- Pandemia provocou queda de 20,1% na renda dos brasileiros, diz estudo
- Preço da comida: Brasil perdeu 30% de área de cultivo de alimentos para o agronegócio
- Governo extingue Consea no ano em que o Brasil deve voltar ao mapa da fome da ONU
- Preço da comida: Brasil perdeu 30% de área de cultivo de alimentos para o agronegócio
- Aposta em commodities é um erro, alerta Graziano, da FAO
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘Ossinhos’ da fome: famélicos e insegurança alimentar na pandemia de COVID-19 no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU