Há dez anos, um ensaio do pós-capitalismo

Foto: Pixabay

09 Junho 2021

 

"A expansão dos modos de fazer ou dizer dos movimentos das praças não teria sido possível sem uma esfera digital global e uma dinâmica de rede que ultrapassasse as formas anteriores de organização social", escreve Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro, em artigo publicado por Contexto Y Acción e reproduzido por Outras Palavras, 01-06-2021. A tradução é de Simone Paz.

 

Eis o artigo.

 

No dia em que o ditador egípcio Hosni Mubarak renunciou, os participantes do acampamento Tahrir, no Cairo, começaram a limpar a praça. Um estudante afirmou que após limpar Tahrir ele enxergou um futuro promissor. As imagens de limpeza dos acampamentos, do ciclo de protestos iniciado em 2011, foram recorrentes. Varrer, limpar o chão ou recolher o lixo eram atos coletivos: reforçavam o sentimento de pertencimento ao lugar e à comunidade que o habitava. “A praça, minha casa”, ostentava uma placa no Acampamento do Sol, em Madri, banhando aquele espaço de intimidade. A investigação “The aesthethic of protest” (A estética do protesto), focada no processo de ocupação do parque Gezi, em Istambul, em 2013, utiliza uma imagem viral que contrapõe o trabalho de limpeza dos campistas e o lixo deixado pelos participantes de uma reunião do presidente Erdogan.

 

Depois de analisar 250 mil tweets, “A estética do protesto” encontrou uma surpresa: as imagens do cotidiano do acampamento do Parque Gezi eram as que mais se repetiam. A mídia se concentrou nos confrontos com a polícia, mas as fotos capturadas pelos seus integrantes incluíam atividades como comer, dormir, limpar, ler, fazer exercícios ou cuidar do jardim. O cotidiano do acampamento evidenciou um senso ético compartilhado e novas formas de estar no espaço público. Eles exaltaram o prazer dos laços sociais. Apresentaram um protótipo de vida social baseado no horizontalismo, na cooperação e na inclusão. O dia-a-dia dessas ocupações tornou-se a política prefigurativa do futuro.

 

Revolução Egípcia em 2011 (Foto: Wikimedia Commons/Kodak Agfa)

 

Enquanto a mídia procurava pelos líderes e exigia as demandas políticas do movimento da praça, os campistas alimentavam, em seu próprio ritmo, um emaranhado de relacionamentos. Após o despejo dos acampamentos, seu tecido social e seu modus operandi reinventaram a vida nos bairros. Em Madri e Istambul, por exemplo, aconteceram centenas de assembleias de bairro durante muito tempo. Quando o establishment considerava o Occupy Wall Street acabado, a rede criada durante a ocupação do Zucotti Park em Nova York renasceu como Occupy Sandy e coordenou uma rede de solidariedade exuberante após o furacão Sandy. Passando do “ocupe a rua” para “ocupe os bairros”, o 15M exibiu seu mundo coletivo, com outro ritmo, em outros termos.

 

No final de 2012, em uma das assembleias do 15M de Madrid, uma participante renunciou à vanguarda do movimento. A vanguarda, disse ele, é “épica, barricada, horário nobre, tempo único, unilateralização”. Por isso, ele reivindicava a retaguarda, o cotidiano, e tornava assim visível o paradigma do cuidado: “A retaguarda é a nova Associação de Pais e Alunos que formamos na escolinha (…) A retaguarda é cada uma das práticas que contribuem alimentando, recriando, revivendo o clima da revolta”.

 

Praça Tahrir durante os protestos no Egito em 2011 (Foto: Wikimedia Commons/Mona)

 

Formas de vida, não discursos

 

Apesar de suas diferenças, as infraestruturas efêmeras construídas nas praças e parques sob ocupação no mundo todo tinham uma semelhança impressionante. As imagens aéreas das lonas da Praça Tahrir, os manuais de “Como acampar” do 15M espanhol, ou as pílulas visuais do Occupy Architecture do Parque Gezi eram códigos abertos e adaptáveis ​​para montar um acampamento. Na Puerta del Sol, em Madrid, havia uma biblioteca, um pomar e uma cozinha. Na Plaça Catalunya, em Barcelona, ​​foi montado um espaço para o descanso em sacos de dormir. No Zuccotti Park, em Nova York, surgiram barracas de atendimento médico ou lojas de roupas. O Gezi Park, em Istambul, tinha espaços para fazer refeições e até mesmo um ambiente para casamentos.

 

Durante a ocupação do Parque Augusta, em São Paulo, no início de 2015, podíamos encontrar áreas de reciclagem, construções em bambu e piscinas portáteis. Mundos próprios. Tempos alterados. Espaços reinventados. Novos papéis. A normalidade de cabeça para baixo. Os objetos assumiam funções diferentes. Em Istambul, capacetes de construção e óculos de natação serviam de proteção contra a polícia. No Brasil, os cartazes eram confeccionados com caixas de pizza. Nos acampamentos, as sementes eram plantadas em garrafas plásticas. Tudo — cabos, tendas, extintores de incêndio, lonas, sinais de trânsito — ganhou um novo uso. A realidade desordenada das praças, com espaços e tempos próprios, favoreceu a alteração das hierarquias dadas, como insiste Jacques Rancière. Uma nova distribuição do sensível: outra possibilidade de relações e imaginários que não se constroem com uma imaginação separada do mundo físico, mas com uma imaginação radical, preparada com práticas coletivas.

 

Movimento Occupy Wall Street (Foto: Occupy Wall Street)

 

Nicholas Mirzoeff argumenta que a onda de acampamentos no ciclo de 2011 causou uma desvisualização. As pessoas, ocupando o espaço urbano, desvisualizam as lógicas e estruturas do mundo anterior que as oprimia. Mirzoeff afirma que “desvisualizar significa desfazer os processos de classificação, separação e estetização formados sob um determinado tipo de colonialismo”. Ocupar um espaço público, desvisualizando, reforça a autorrepresentação e possibilita outras formas de fazer e de viver. Na Espanha, as ocupações do 15M desvisualizaram a realidade configurada pela Constituição de 1978. Ficou tudo escancarado: o bipartidarismo, a monarquia obsoleta, as políticas públicas de incentivo ao consumo. A desvisualização do “regime 78” causou, por sua vez, o retorno de tradições esquecidas, de línguas reprimidas, de práticas minoritárias. Tudo diluído e reinventado em um novo magma de ação e anunciação política. Com rituais radicalmente inclusivos. Sem líderes. Com um novo sistema de rede composto por muitas e diversas formas de organização social. “Não fique olhando, junte-se a nós”, era o grito presente nas praças espanholas.

 

As assembleias que oxigenaram as ocupações e muitos bairros ao longo de anos não se limitavam apenas a mecanismos de deliberação e escuta política. A coreografia da assembleia proporcionava um novo espaço de encontro e criação. As assembleias no espaço público constituíam um exercício de ocupação rítmica da rua que colocava os corpos em primeiro plano político. A performatividade da assembleia criou um novo sujeito coletivo composto por corpos precários. A técnica do microfone humano do Occupy Wall Street em Nova York, que consiste em pessoas repetindo a fala do locutor em voz alta, significou uma verdadeira performance de tecnologia simples, uma montagem estética de discursos e afetos.

 

Como não prestar atenção à palavra do outro se ela passa pelo nosso corpo? Coreografias, performances, aliança de corpos. Democracia encarnada. Mesmo se um acampamento for desmontado, seus rituais podem sobreviver de várias maneiras. Por muitos anos. Eles podem reaparecer inesperadamente. A cada levante, como aponta Marcelo Expósito, ocorrem acontecimentos em que o movimento como um todo relembra e sabe mais do que a soma dos sujeitos que o compõem. Quando os corpos se reagruparem, eles lembrarão. E eles vão imaginar novos caminhos, junto com novos corpos.

 

Movimento Occupy Wall Street (Foto: David Shankbone)

 

Na velocidade do riso

 

A linguagem de sinais das assembleias espanholas do 15M foi consolidada em poucos dias. E com pequenas mudanças, ele se espalhou pelo mundo. Os protestos em Israel no verão de 2011 adotaram o gesto de girar as mãos, que significa “passar a palavra”. Botswana abraçou o mesmo gesto durante a grande greve de 2011. Em setembro de 2011, nasceu em Nova York o “Occupy movements hand signals”. O conjunto de gestos verbais e corporais das praças deu lugar a uma linguagem compartilhada, atmosfera afetiva, simbologia cúmplice. A gestualidade dos movimentos configurou uma linguagem visual, corporal e adaptativa que Ariella Azoulay chama de sintaxe cívica. Com emoção e empatia, a sintaxe cívica das praças se espalhou pelo mundo “na velocidade do riso”, como afirma um participante do #YoSoy312, a versão mexicana da insurreição das praças.

 

A expansão dos modos de fazer ou dizer dos movimentos das praças não teria sido possível sem uma esfera digital global e uma dinâmica de rede que ultrapassasse as formas anteriores de organização social. A pesquisadora Giomar Rovira discute no “Ativismo em Rede” como as revoluções das praças consolidaram a multidão conectada, que ela define como um espaço de performance e de prenúncio: “Multidões não marcadas por categorias sociais, mas por um exercício de cidadania performática, encenação, tomada da cidade, cidadania não concedida pelo Estado, mas adequada e desprivatizada, situada e local”. A multidão conectada criou um universo de práticas e imaginários sem a necessidade de coletivos históricos.

 

Os acampamentos locais reverberaram na esfera de comunicação de outros países, sincronizando-se numa certa unidade de ação. O slogan de ocupar as ruas, da Espanha de 2011, renasceu nos protestos do Peru, em 2013. Quando ninguém esperava, o formato de acampamento se espalhou por toda a Colômbia para lutar pela paz, após o resultado do plebiscito de 2016. Tweets em escalada. Grafittis transnacionais. Slogans virais que dão nome a novos movimentos. Que renomeiam as massas. Nós somos o 99%. Nós somos os comuns. Queremos tudo (mesmo estando mais dispersos do que unidos). Foda-se a Troika. Nossa barricada é a rua global.

 

Protestos nas ruas de Madrid, em 2011 (Foto: Wikimedia Commons/Rastrojo)

 

Por uma vida desmercantilizada

 

Quando as revoltas do Movimento Passe Livre (MPL) estouraram no Brasil em junho de 2013, o norte global apoiou-se no formato de acampamento para interpretá-las. Algumas Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas foram ocupadas. Montou-se acampamento em frente à casa de alguns governadores. Mas os protestos tiveram personalidade própria. Rodovias eram paradas para jogar bola. Rios de pessoas faziam com que as ruas ficassem vazias de veículos. Tocava-se música em todos os cantos. Os protestos começaram contra o aumento da tarifa do transporte urbano, com o slogan por uma vida sem catracas. O formato do catracaço, o pulo coletivo para driblar a catraca, tornou-se o símbolo desses protestos. E a catraca foi ressignificada como uma metáfora para todas as opressões do capitalismo. Lema e ritual transbordaram o mundo do transporte. Os manifestantes espalharam catracas pelas cidades. Os festivais de rua sem catracas se espalharam, assim como os blocos de carnaval, num convite a voar e flutuar por cima dos bloqueios. Reverter a perversa guinada da catraca trazia um caleidoscópio de novas possibilidades de vida e libertava as cidades de suas amarras.

 

A insurreição chilena de 2019 também começou pulando as catracas do metrô de Santiago, as “evasões”, em protesto ao aumento da passagem em 30 pesos. Evasões massivas, organizadas via WhatsApp, libertaram a opressão de décadas de vida neoliberal. O lema “não são 30 pesos, são 30 anos”, nas palavras da pesquisadora Nelly Richard, começou como um jogo de pulos de desobediência, e terminou como uma vingança contra a extrema mercantilização da vida. E então, vieram os panelaços. Surgiram assembleias. Protestos em massa. A Praça Itália, em Santiago, foi renomeada como Praça Dignidade. E o terremoto continua. “Não voltaremos à normalidade porque a normalidade era o problema”, dizia uma projeção na cidade de Santiago, em plena pandemia.

 

Manifestações no Brasil, durante Junho de 2013 (Foto: Wikimedia Commons/Valter Campanato)

 

Em 2015 também houve surpresas: uma nova onda social, influenciada pelo legado de Gezi em Istambul, fez com que vários parques brasileiros fossem ocupados, apelando tanto para os espaços naturais a serem protegidos quanto para as comunidades que habitavam neles. Dos parques rebeldes do Brasil, nasceram alianças sociais novas e heterodoxas em torno dos bens comuns. E um caminho cosmopolítico para reativar a magia, retomar a terra e desfazer o feitiço do capitalismo. Não houve necessidade de espaço para dialogar com o ciclo global de 2011. O espírito da época também atravessou o Brasil. Linguagens e formas de auto-organização semelhantes. E o desejo de outra vida coletiva, com as pessoas ao centro dela.

 

O filósofo Peter Pál Pelbart descreveu a insurgência brasileira como algo “mais de movimento do que de partidos; de fluxo, mais do que disciplina; de impulso, mais do que de propósitos”. Os catracaços tornam visível o que Suely Rolnik chama de corpos vibrantes, cujos sentidos funcionam em relação aos outros. Territórios são construídos a partir dos sinais da presença viva do outro em nossos corpos vibrantes. “A vida sem catracas”, para ser um discurso político eficaz, deve primeiro ser ressonância sensorial e vibração das forças do mundo em nossa pele.

 

Muito tem sido escrito sobre o caráter de destituição do 15M. Sobre o caráter constituinte dos protestos chilenos. Fala-se muito sobre a construção discursiva e as hegemonias políticas dos movimentos pós-praça. Mas, com frequência, é negligenciado um ponto crucial: a revolta contra o estilo de vida capitalista. Não eram (apenas) praças. Não era (apenas) democracia. Era o capitalismo. A democracia é questionada quando não garante as condições materiais da maioria. Quando não nos permite ter uma vida coletiva plena.

 

Protestos no Chile, em 2019 (Foto: Wikimedia Commons/Carlos Figueroa)

 

Vamos reler os bordões iniciais dos protestos: “Não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros (Democracia Real Ya!). Não somos mercadoria. Mercadoria. “Queremos tudo. E queremos agora (Juventud Sin Futuro)”. “Por uma vida sem catracas” (Movimento Passe Livre). “Se não queimarmos juntos, quem iluminará esta escuridão?” (#YoSoy132). A revolta das praças supôs uma reinvenção da vida cotidiana a partir de estratégias de construção do mundo e da resistência cheia de esperança que a constituição de um lugar suscita. A revolta trouxe uma imaginação radical baseada não no pensamento, mas em práticas coletivas que desvendaram o tecido comercial da vida. Das praças ocupadas emanava uma nova forma de habitar a cidade: vislumbres de uma vida desmercantilizada, imagens-promessa de uma vida sem catracas monetárias.

 

A insurreição global das praças não exigia ordem, como proclamam alguns líderes da nova esquerda espanhola. Ele desejava interromper a vida individualista do neoliberalismo. Não, cientistas políticos: o enorme botellón (encontro de pessoas para beber na rua, típico da Espanha) que ocorreu após o confinamento da pandemia nas principais cidades da Espanha não foi o “anti 15M”. Foi uma coisa irresponsável, é verdade, mas aquela embriaguez coletiva não pretendia também recuperar o vínculo dos corpos e a magia do estar junto? Diante do pulso de vida e da emoção com que a extrema direita surfa no caos, a invocação de ordem pela esquerda é que é o verdadeiro anti 15M. Para espantar a tóxica nuvem pós-pandêmica, precisamos de insubordinação afetiva, do erotismo da pele contra a pele, das desobediências massivas, criar com outros para tecer valores novos. Novas coreografias sociais, como aquelas já distantes assembleias das praças que, segundo Judith Butler, foram a “representação performática da democracia radical que só pode articular uma vida boa no sentido de uma vida habitável”.

 

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