"O olhar de Bergoglio é o de Magalhães, e ele quer que continue assim". Artigo de Antonio Spadaro

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07 Julho 2016

Em 6 de maio de 2016, o Papa Francisco recebia o prestigioso Prêmio Carlos Magno. A cerimônia de entrega da premiação ocorreu na na Sala Régia do Vaticano, ao meio-dia. Após a concessão do prêmio a Marcel Philipp, Prefeito de Aachen, e a Jürgen Linden, presidente do comitê de direção da associação responsável por sua entrega, os presidentes do Parlamento Europeu, Martin Schultz, da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e do Conselho Europeu, Donald Tusk, também foram laureados. Estavam presentes também o rei da Espanha, Felipe VI, o Grão-Duque Henrique de Luxemburgo, a presidente da República da Lituânia, Dalia Grybauskaite, a Chanceler da República Federal da Alemanha, Angela Merkel, e o presidente do Conselho de Ministros da República Italiana, Matteo Renzi.

O artigo foi publicado por Religión Digital, 04-07-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.

Por que o Prêmio Carlos Magno foi concedido a Francisco?

O Karlspreis, ou seja, o Prêmio Internacional Carlos Magno, é um reconhecimento concedido anualmente pela cidade alemã de Aachen no Dia da Ascensão, na sala da coroação. A eleição do vencedor ou vencedora do prêmio pertence ao Conselho de Administração da Fundação e, por estatuto, o prêmio deve ser "concedido anualmente por unanimidade a uma personalidade cujo pensamento tem sido referência nos âmbitos político, econômico e espiritual" para a União Europeia.

O prêmio carrega o nome de Carlos Magno, o rei dos Francos, chamado de "Pai da Europa", ou seja, o imperador que historicamente é considerado como o criador da União Europeia, por ter sido capaz de reunir um verdadeiro império sob seu governo.

Em edições anteriores, o prêmio foi concedido a personalidades eminentes, como Konrad Adenauer, Alcide De Gasperi, Angela Merkel, Jean-Claude Juncker, Václav Havel, o irmão Roger Schutz de Taizé, Helmut Kohl, François Mitterrand, Andrea Riccardi ou Herman Van Rompuy .

Este ano, o prêmio foi concedido ao Papa Francisco, a terceira personalidade não-europeia a recebe-lo e, ao mesmo tempo, o terceiro premiado proveniente das Américas. Previamente, já haviam recebido o prêmio o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, em 2000, e George C. Marshall, o criador do Plano Marshall para a reconstrução no pós-guerra, em 1959. Em 2004, João Paulo II também o recebeu.

O Papa Francisco nunca aceita prêmios ou honrarias concedidas a sua pessoa. Esta exceção , por conseguinte, é muito significativa: Francisco queria associar ao evento uma mensagem clara. Em novembro de 2014, no seu célebre discurso em Estrasburgo sobre "A Europa cansada", que entrou para história, o Papa destacou a vocação europeia como um desafio para proporcionar uma contribuição rica em ideais para toda a humanidade, pela riqueza da sua história, cultura, civilização, solidariedade e diálogo inter-religioso. O Papa olha para a Europa na perspectiva do mundo global (1).

Assim está escrito o motivo do Prêmio: "Em 06 de maio de 2016, no Vaticano (Roma), foi concedido o Prêmio Internacional Carlos Magno de Aachen ao Papa Francisco, por seu extraordinário compromisso a favor da paz, da compreensão e da misericórdia em uma sociedade europeia de valores".

Os desafios de hoje

O primeiro a levantar questões sobre uma Europa em crise foi o Prefeito de Aachen. "Até que ponto estamos reforçando a unidade na diversidade? Não estamos nos movendo há algum tempo, na direção oposta? A Europa está lutando contra os egoísmos nacionais nos âmbitos das migrações, da segurança e dos valores?" Muros e barreiras "não são capazes de resolver qualquer problema de forma permanente. Servem apenas para combater os seus sintomas", afirmou, reclamando a necessidade de que o nosso continente corresponda "a sua responsabilidade global".

Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu, fez uma convocação "ao espírito humanista europeu", em um momento em que "os egoísmos, as particularizações nacionais e a renacionalização estão se espalhando". O desafio é enorme e, frente a ele, o medo é um "mau conselheiro". Quem quiser construir muros e barreiras na Europa põe em risco as conquistas comuns.

O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, pronunciou palavras de apreço ao Santo Padre, pedindo à Europa que demonstre estar à altura das dificuldades do momento, recordando que "será mais importante do que nunca que os europeus tirem forças da sua coletividade."

Por fim, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, falou de um objetivo que tanto a política quanto a religião têm em comum:"Colocar limites para o mal e para o sofrimento". "Para isto - disse - abracei com tanta alegria a visão da Igreja oferecida pelo Santo Padre. Uma Igreja que seja, retomando suas palavras, mais um hospital de campanha do que uma fortaleza".

Portanto, Francisco escutou os discursos de homens que representam, inclusive, diferentes almas da Europa - socialista, liberal e conservadora - e que levantaram vários pontos focais substancialmente claros e divididos.

O olhar de Magalhães: o sonho europeu de Francisco

Qual é a visão que um Papa não europeu tem sobre a Europa? O olhar de Bergoglio é um olhar europeu, porque suas raízes estão no Piemonte e sua formação é também radicalmente europeia. O próprio Papa, em seu discurso, se reconhece como um filho que "encontra na mãe Europa suas raízes de vida e de fé", apesar de ser argentino e ter uma experiência eclesiástica latino-americana.

O itinerário de suas viagens no continente europeu começou em Lampedusa - porta da Europa e, portanto, objetivo de uma viagem mais europeia do que italiana - e na Albânia, a terra Europeia que ainda não faz parte da União e que é de maioria muçulmana. A partir destas "periferias" o Papa brevemente atravessou o "centro", ou seja, passou por Estrasburgo para visitar as instituições europeias. Mas imediatamente depois prosseguiu com as periferias: Turquia, Bósnia-Herzegovina e Lesbos, outra das trágicas "portas da Europa". Em outubro, ele irá para Lund (Suécia). Para Francisco, a misericórdia se desenha politicamente na liberdade de movimento (1). Aproxima-se da Europa a partir de sua distante "periferia".

Para entender esta afirmação para além do slogan, vamos ler o que Francisco declarou em uma entrevista concedida ao La Cárcova News, uma revista popular, editada em uma vila pobre da Argentina. "Quando falo de periferia, eu falo de fronteiras. Normalmente nos movemos em espaços que, de uma forma ou outra, controlamos. Este é o centro. À medida que deixamos o centro e vamos para longe dele, descobrimos mais coisas, e quando olhamos para o centro a partir delas, de novos posicionamentos, a partir destas periferias, percebemos que a realidade é diferente. Uma coisa é observar a realidade tendo o centro como ponto de referência, e outra coisa é observá-la a partir do último lugar ao qual se tenha chegado. Um exemplo: a Europa no ponto de vista de Madrid, no século XVI, era uma coisa, mas quando Magalhães chega ao final do continente americano, ele enxerga a Europa a partir desse lugar e compreende muitas coisas" (1).

O olhar de Bergoglio é, portanto, o de Magalhães, e ele quer que continue assim. Francisco quer conhecer a Europa partindo de Roma e circundando o continente desde o sul, prosseguindo para o leste e, então - o que acontecerá em Outubro -, dirigindo-se para o norte profundo, para a Suécia. Não houve, até o momento, nenhuma menção ao oeste, no ocidente.

Ele acrescentou na entrevista citada: "A realidade é melhor vista a partir da periferia do que a partir do centro". Esta é a razão para sua trajetória externa, de sua peregrinação pelas bordas. Isto é o que Francisco busca entre as cidades de Lampedusa, Tirana, Lesbos e Lund: a "alma" europeia. E a alma não é apenas o "centro", mas o "coração" palpitante e vivo. Francisco é como se fosse um médico tentando descobrir se o coração funciona, observando se os fluxos de sangue correm por todos os lugares e perguntando inclusive sobre a sua circulação periférica.

Outro termo que explica esta ideia é a "Multipolaridade". Francisco proferiu o termo claramente no seu discurso ao Conselho da Europa, em 25 de Novembro de 2014: a Europa não pode ser entendida em termos de alguns "centros" polares, porque as "tensões" - tanto as que constroem quanto as que desintegram - são verificadas entre múltiplos pólos culturais, religiosos e políticos". A multipolaridade comporta "o desafio de uma harmonia construtiva e livre de hegemonias". Portanto, temos de pensar na Europa de uma forma multifacetada nas suas relações e tensões. A forma de Francisco pensar é uma geopolítica europeia não-determinista, consciente do fato de que a redistribuição de poder entre os principais atores não faz justiça às dinâmicas profundas do continente.

Europa: não um espaço para defender, mas um processo para se implementar

"A criatividade, engenhosidade, capacidade de levantar-se e deixar as suas próprias limitações pertencem à alma da Europa", explicou Francisco em seu discurso, imediatamente depois de abordar as referências aos centros e à superação dos limites e das fronteiras . A Europa é ela mesma, porque sabe ir além de si mesma. Sua "casa" é construída mais além das cinzas dos "conflitos trágicos, culminados pela mais terrível guerra que se recorda".

Este ponto de vista é, portanto, profundamente ligado ao processo, à superação dialética de muros e barreiras. A Europa não é uma "coisa", mas um "processo" ativo em andamento, no meio de "um mundo mais complexo e também em profundo movimento" (1). Seus pais "construíram" um "projeto iluminado", que é sempre um "trabalho em progresso". É necessário, portanto, verificar não se a casa é sólida, mas se ainda está de pé aquele sábio projeto. E esta é a opinião do Papa: "Esse clima de novidade e aquele desejo ardente de construir a unidade pare cem cada vez mais apagados; nós, os filhos daquele sonho, somos tentados a ceder aos nossos egoísmos, olhando para a utilidade própria e pensando em construir recintos especiais".

Por que aconteceu algo assim? Segundo afirma o Papa, coerente com a sua abordagem da realidade, isso aconteceu porque a Europa "está tentada a querer garantir e dominar espaços ao invés de gerar processos de inclusão e transformação; uma Europa que vai se "entrincheirando" em vez de privilegiar ações que promovam novas dinâmicas na sociedade; dinamismos capazes de envolver e implicar todos os atores sociais (grupos e indivíduos) na busca de novas soluções para os problemas atuais, que deem frutos em importantes acontecimentos históricos; uma Europa que, longe de proteger os espaços, converta-se em mãe geradora de processos".

Se a Europa considera-se como um "espaço", então, mais cedo ou mais tarde - e isso é algo que já começou - chegará o momento do medo e do receio de que o espaço seja invadido. Porque o espaço sempre pede para ser defendido. Em contrapartida, se a Europa se considerasse como um processo in fieri, colocaria em movimento as energias, aceitando os desafios da história. Então, mesmo as dificuldades e contradições "podem se converter em fortes promotores da unidade"

A alma e o sonho: Schuman, De Gasperi e Adenuaer.

O papa reconhece esta visão dinâmica dos pais fundadores da Europa, cuja memória não deve ser esquecida, e da qual ele está profundamente convencido. Essa visão ajudou "nossos povos a atravessar positivamente as encruzilhadas históricas que lhes apareciam pelo caminho." Este é o desafio: não "defender" um processo, mas encontrar "formas alternativas e inovadoras em um contexto repleto de feridas". Aqui reside, para Francisco, o gênio da Europa. Um gênio que é a expressão de uma "audácia", que reveste não apenas as características do sonho ideal, mas também os da força que sabe "transformar radicalmente os modelos que provocavam tão somente a violência e a destruição", o que conduziu as guerras mundiais.

Três são os padres mencionados por Francisco em seu discurso. Robert Schuman é recordado porque, na sua Declaração de 9 de Maio de 1950, no Salão do Relógio do Quai d'Orsay, em Paris, disse: "A Europa não será feita a partir de golpes e porrada, nem através de uma construção conjunta; será feita através de realizações concretas, que creiam em uma solidariedade de verdade, antes de qualquer outra coisa". Schuman falava, além disso, de "esforços criativos".

De Alcide De Gasperi, Francisco cita o Discurso para a Conferência Parlamentar Europeia, de 21 de abril de 1954, no qual, falando "de nossa pátria, a Europa", apostava em um "trabalho construtivo que exige todos os nossos esforços de paciência e de ampla cooperação".

De Konrad Adenuaer, Francisco cita o Discurso à Assembleia de artesãos alemães, em Dusseldorf, em 27 de Abril de 1952, no qual afirma que "o futuro do Ocidente não está ameaçado pelas tensões políticas ou pelo perigo da massificação, da uniformidade do pensamento e do sentimento; em suma, por todo o sistema de vida, de fuga da responsabilidade, com a única preocupação pelo eu próprio".

Esta tríade fundadora claramente coloca os pingos nos “is” sobre a Europa como um processo em andamento, não um "espaço" ou uma conquista para proteger, mas como uma construção criativa que é feita no "tempo" e que requer um esforço paciente e responsável. Poderíamos dizer que exige mais das "energias ao invés das obras". O apelo apaixonado de Francisco aponta para isso: "O que aconteceu com você, Europa humanista, defensora dos direitos humanos, da democracia e da liberdade? O que aconteceu, Europa, terra de poetas, filósofos, artistas, músicos e escritores? O que aconteceu com a Europa, mãe dos povos e nações, mãe de grandes homens e mulheres que souberam defender e dar suas vidas pela dignidade dos seus irmãos"?

Adaptar a ideia de Europa: a integrar, dialogar e gerar

A reflexão sobre o processo europeu leva o pontífice a lançar "o desafio de 'aggiornar' a ideia de Europa. Uma Europa capaz de dar à luz a um novo humanismo". Uma ideia que se baseia em três palavras-chave, três verbos e três processos: integrar, dialogar, gerar. Três verbos que demonstram a força que os europeus extraem do fato de estarem juntos, sobre a qual havia falado o presidente da Comissão Europeia, Juncker. Recordemos que João Paulo II recebeu o Prêmio Carlos Magno em 24 de março de 2004 e, desde então, havia apostado em "uma Europa sem nacionalismos egoístas" , afirmando a urgência de dar prioridade "para a reconciliação e para o crescimento de seus povos, em vez de insistir em seus próprios direitos e na exclusão". Hoje, essa mensagem se mostra ainda mais urgente.

Integrar, para Francisco, significa inserir as diferenças (de idades, nações, estilos, visões...) no processo de construção. A Europa nasceu para incluir, não para contrapor ou excluir. Mas não se trata simplesmente de um processo dialético quase necessário, mas uma "convivência". Esta é a palavra escolhida pelo Pontífice, que fala de "comunidade dos povos europeus". Este processo inclusivo estende "a amplitude da alma europeia, nascida do encontro de civilizações e povos, além das fronteiras atuais da União e chamada a tornar-se modelo de novas sínteses de diálogo".

Os mais de 500 milhões de europeus representados pelos 28 países membros da União não esgotam a Europa. Portanto, é absolutamente evidente o fato de que o Papa tenha escolhido a Albânia e a Bósnia como as primeiras etapas de suas viagens pelo Velho Continente: a alma europeia vai além dos limites da União e cresce através de "novas sínteses". As raízes da Europa se consolidaram ao longo da história, " aprendendo a integrar as mais diversas culturas em sínteses sempre novas, mesmo que não haja vínculo aparente entre elas. A identidade europeia é, e sempre foi, uma identidade dinâmica e multicultural".

Portanto, o rosto da Europa não se distingue por "contrapor-se a outros, mas por levar as impressões de várias culturas e a beleza de superar a tendência do gueto". Os medos e as exclusões produzem "vilania, egoísmo, brutalidade" e mesquinhez (1). A integração encontra "o caminho para construir a história" na solidariedade, o que não tem nada a ver com caridade, mas com a "geração de oportunidades".

Dialogar é o que nos permite reconstruir o tecido social, porque reconhecer o outro em si mesmo - o estrangeiro, o emigrante, o pertencente a outra cultura - como um interlocutor válido, um sujeito a escutar, que seja considerado e apreciado. O Papa pede a ajuda das instituições de ensino, de modo que esta cultura do diálogo permeie transversalmente até mesmo o currículo escolar. A cultura do ódio, do conflito e dos muros, ativa o poder dos grupos econômicos e utiliza o povo para seus fins falsificados.

Gerar, para Francisco, é uma maneira de estar no mundo que não contempla a esterilidade e a imobilidade de um espectador: "Todos, desde os recém-nascidos aos mais anciãos, são parte ativa da construção de uma sociedade integrada e reconciliada. Esta cultura é possível, se todos nós participarmos de sua elaboração e implementação. A situação atual não admite meros observadores das lutas travadas pelos demais. Pelo contrário, é uma convocação profunda à responsabilidade pessoal e social".

Os jovens são o presente - e não apenas o futuro - desta Europa e devem se tornar protagonistas do "sonho" europeu. Algo assim só é possível se lhes for dada a oportunidade de trabalhar e, para isto, "é necessário encontrar novos modelos econômicos, mais inclusivos e igualitários"; é necessária "a passagem de uma economia centrada no rendimento e no benefício baseado na especulação e nos empréstimos com juros a uma economia social, que invista nas pessoas, criando postos de trabalho qualificados". Somente assim é possível que entrem no jogo "as diferentes dimensões da vida: a criatividade, a projeção para o futuro, o desenvolvimento de competências, o exercício dos valores, a comunicação com os outros e uma atitude de adoração".

Portanto, o Papa apostaem sonhar sobre um "novo humanismo europeu", ao que o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, também havia se referido.

A obrigação da Igreja e o final da tese carolíngia: E. Przywara.

Em seu discurso, Francisco cita um autor que considera muito importante: o grande teólogo jesuíta Erich Przywara, mestre de Hans Urs von Balthasar. "Em sua magnífica obra "A ideia de Europa", nos desafia a pensar sobre a cidade como um lugar de convivência entre várias instâncias e níveis. Ele conhecia perfeitamente essa tendência reducionista que habita cada tentativa de pensar e sonhar o tecido social. A beleza encarnada em muitas de nossas cidades se deve ao fato de que foi possível conservar ao longo do tempo as diferenças de idade, nacionalidades, estilos e visões ", disse o Papa.

Mas ao citar "A ideia da Europa", que ele conhece bem, Francisco revela que sua convicção é a mesma do teólogo jesuíta: estamos no fim da era de Constantino e do experimento de Carlos Magno. É, pois, muito interessante que o Papa cite Przywara precisamente neste contexto carolíngio. A "cristandade", ou seja, o processo que começou com Constantino, em que é ativado um vínculo orgânico entre cultura, política, instituições e Igreja, está chegando ao seu fim. Przywara - junto ao historiador austríaco Friedrich Heer - está convencido de que a Europa nasceu e cresceu em relação e em contrapos ição com o "Sacrum imperium", que funde suas raízes na tentativa de Carlos Magno de organizar o ocidente como um estado totalitário.

Este processo é classificado por Heer como "a possibilidade de a Igreja retomar os caminhos evangélicos iniciados por Francisco de Assis, Inácio de Loyola ou Teresa de Lisieux, quebrando a barreira que a separava dos pobres, o cristianismo - na conjuntura teológico-política das várias formas de cristandade - se mostrou sempre como a ideologia - e a garantia - política dos grupos dominantes". Para Heer, o fim da cristandade não significa, de fato, o declínio do Ocidente, mas carrega um recurso teológico decisivo em si, uma vez que a missão de Carlos Magno chegou ao seu fim. O próprio Cristo retoma a obra da conversão. Caem os muros que até quase os dias de hoje têm impedido o Evangelho de atingir as camadas mais profundas da consciência e penetrar no núcleo da alma.

Desta forma, a ideia da presença do Reino de Deus na Terra é rejeitada radicalmente, ideia que tinha estado na base do Sacro Império Romano e de todas as formas políticas e institucionais semelhantes, até moldar-se na dimensão de um "partido". De fato, o assim entendido "povo escolhido" entraria em uma intrincada encruzilhada de dimensões religiosas, institucionais e políticas que o fariam perder a consciência de sua 'diaconia' universal e o contraporiam aos povos mais distantes, que não lhe pertencem, ao "inimigo".

O Papa confirmou a sua visão, citando Przywara alguns dias depois de ter recebido o prêmio, concretamente em 9 de maio, em uma entrevista com o jornal francês La Croix. Perguntado sobre por que ele fala de "identidade europeia" e não utiliza a expressão "raízes cristãs da Europa", o Pontífice respondeu: "Temos de falar sobre as raízes plurais, pois existiram muitas. Por isso, quando escuto falarem das raízes cristãs da Europa, às vezes o tom da fala, que pode ser triunfalista ou vingativo, me dá medo. E então se torna colonialismo. João Paulo II falava delas em um tom tranquilo. Sim, a Europa tem raízes cristãs. O cristianismo tem o dever de regá-las, mas em espírito de s erviço, como na lavagem dos pés. O dever do cristianismo na Europa é o serviço. Erich Przywara, grande mestre de Romano Guardini e Hans Urs von Balthasar nos ensina: 'A contribuição do cristianismo em uma cultura é a mesma de Cristo com a lavagem dos pés", ou seja, o serviço e o dom da vida. Não deve ser uma contribuição colonialista".

Com Przywara, Bergoglio reconhece - conforme expresso na Carta aos Hebreus (13:13) - que os cristãos devem "sair do acampamento e carregar a desonra de Cristo" (1). A Igreja deve ser uma entidade receptiva, nunca fechada e excludente. Trata-se de seguir Cristo "fora dos muros" da Cidade Santa, onde Ele morreu como um maldito, para poder recolher à humanidade inteira, inclusive a parte que é criada como amaldiçoada ou abandonada por Deus (cfr. Gálatas 3,13).

Nascia assim a ideia da Igreja como "hospital de campanha", também evocada pelo discurso de Tusk, presidente do Conselho Europeu. E, de fato, Francisco continua seu discurso afirmando que "a Igreja pode e deve contribuir para o renascimento de uma Europa cansada, mas ainda rica em energias e potencialidades". Como? Anunciando o Evangelho que "se traduz, acima de tudo, em ir ao encontro das feridas do homem, levando a simples e forte presença de Jesus, bem como sua consoladora e animadora misericórdia".

Esta deveria ser, pois, a tarefa da Igreja, decididamente pós-carolíngia: ser receptiva e sair para atender as feridas do mundo. E é isso que Francisco está fazendo, tentando contribuir, assim, para revitalizar a alma da Europa.

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"O olhar de Bergoglio é o de Magalhães, e ele quer que continue assim". Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU