Junto com o papa contra o ecocídio e o genocídio. Entrevista com Vandana Shiva

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05 Novembro 2016

Uma entrevista com a líder ambientalista indiana Vandana Shiva, que discursou nestes dias no 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares que ocorre em Roma. Depois dos encontros anteriores em Roma e na Bolívia, milhares de representantes das organizações que lutam pela justiça e pelos direitos dos excluídos se encontrarão neste sábado com o Papa Francisco no Vaticano. Eles também apresentarão um documento final com propostas e ações concretas.

A reportagem é de Patrizia Caiffa, publicada no sítio do Servizio Informazione Religiosa (SIR), 04-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A presença dos movimentos populares no Vaticano "é um sinal para o mundo: se houver um futuro, ele deve se fundamentar no respeito pela terra, no reconhecimento da injustiça estrutural". A voz do Papa Francisco pode "restaurar o equilíbrio em favor da terra e da humanidade neste tempo de ecocídio e de genocídio". Quem está convencida disso é a líder ambientalista e cientista indiana Vandana Shiva, fundadora e presidente da Navdanya International, que está participando nestes dias em Roma (de 2 a 5 de novembro) do 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que reúne 175 delegados de 100 movimentos de todo o mundo.

Há os cartoneros que reciclam papel na Argentina ou na Bolívia, os sem-terra do Brasil, os moradores das favelas indianas, os sindicalistas da Uganda, os camponeses mexicanos palestinos, as mulheres curdas, os representantes da comunidade maia da Guatemala, dos aborígenes da Nova Zelândia, os vendedores de rua senegaleses que vivem em Barcelona.

Uma plateia colorida e variada assim como o mundo que representam: o dos excluídos, das comunidades que devem lutar, com a força da participação popular e da democracia interna, pelo direito à terra, à água, ao trabalho, à casa. O fio condutor que os une são os "três Ts" lembrados pelo Papa Francisco no encontro de 2015 na Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra: "Tierra, techo y trabajo". Ou seja, direito à terra, a uma moradia digna e ao trabalho.

No fim do encontro, será redigido um documento final com uma série de propostas, que serão entregues ao Papa Francisco na tarde deste sábado, durante a audiência no Vaticano. São esperadas milhares de pessoas, também das organizações italianas.

Eis a entrevista.

Vandana Shiva, não é a primeira vez que você vem ao Vaticano...

Não. No processo que levou à encíclica Laudato si’, foram organizados diversos encontros com pequenos grupos de especialistas, para discutir como redefinir a globalização e ir rumo a uma nova economia. Eu vim ao Vaticano várias vezes em 2014 e falei pessoalmente com o papa, para dar a minha contribuição sobre o tema da biodiversidade, sobre a riqueza dos saberes das diversas culturas. Também falamos de economia e globalização: um único mercado sob o controle de 20 multinacionais.

Quando o Papa Francisco foi eleito, em uma entrevista ao SIR, você tinha expressado muitas expectativas. Elas foram atendidas?

O seu magistério foi além das minhas expectativas. Eu conheço bem os limites impostos pelas estruturas mundiais, conheço as estruturas de violência que não trabalham pela verdade nem estão a serviço. Em vez disso, o Papa Francisco disse a verdade sobre o que realmente pode ser útil ao mundo.

O que representa hoje a presença dos movimentos populares no Vaticano?

A força da democracia, hoje mais necessária do que nunca, é aquilo que torna digno de respeito o trabalho dos movimentos populares. O fato de movimentos de todo o mundo estarem no Vaticano significa que eles estão mudando as estruturas de poder estabelecidas por mais de 500 anos de colonização e de criminalização desses movimentos: lembremos que foram mortos 90% dos nativos americanos, que os africanos foram capturados como escravos, que na Índia o Império Britânico matou mais de 10 milhões de pessoas para tomar posse das terras.

A presença dos movimentos no Vaticano é um sinal para o mundo: se houver um futuro, ele deverá se fundamentar no respeito pela terra, no reconhecimento da injustiça estrutural, a fim de agir de outro modo. É um sinal que reforça também o trabalho das organizações confessionais que querem contribuir para a mudança. Porque uma parte das religiões, a mais fundamentalista, tornou-se serva do capitalismo e dos poderes fortes. Quando eu falo de fundamentalismo, não me refiro aos valores ou às escrituras que estão a base das religiões, mas ao extremismo, à intolerância, ao ódio e ao medo que algumas alas querem incutir. Às vezes, a religião se transformou em um suporte para a economia da ganância. O que o papa está fazendo, trazendo os movimentos populares para o Vaticano, significa, ao contrário, pôr a fé a serviço da humanidade, que é a tarefa de cada religião.

No fim do encontro, haverá um documento final com uma série de propostas que serão apresentadas ao papa. Quais são as suas?

A primeira: na Laudato si’, o papa disse muito claramente que a terra não pertence ao ser humano. Ela já existia antes que nós viéssemos habitá-la. Por isso, vou pedir para parar todas as formas de land grabbing [apropriação de terras, grilagem], que produz pessoas sem-terra, sem-teto, refugiados e violência. A terra, que é a nossa casa comum, deve voltar para as mãos daqueles que cuidam dela, de acordo com as instruções dadas pela própria terra, como ensinam as culturas indígenas.

A segunda: a biodiversidade não é uma invenção das pessoas envolvidas nesse âmbito. O meu trabalho de mais de 30 anos me mostrou que proteger a biodiversidade é também um dever espiritual. Inventar sementes que não existiam antes é a violência contra a integridade da criação, que fomenta injustiça e leva até mesmo à morte, como também disse o papa. Lembremos que 300 mil agricultores indianos se suicidaram por estarem endividados para comprar sementes geneticamente modificadas que não podem se reproduzir.

A terceira proposta: ir além de uma economia baseada em fontes fósseis, que criou tantos desastres, envenenando agricultura e os alimentos e provocando o aquecimento global e as mudanças climáticas. Portanto, parar o envenenamento dos alimentos, que é uma violação dos direitos humanos e dos direitos da terra.

A Europa não consegue enfrentar uma crise migratória grave, que causa milhares de mortes no Mediterrâneo e muros. O que você pensa a respeito?

O ano de 2015 foi o Ano do Solo. Escrevemos um manifesto, intitulado "Terra Viva", para dizer que a crise dos refugiados está ligada à destruição do solo: é o caso da Síria, do Boko Haram na Nigéria. Essas guerras não se devem à decisão das pessoas de lutar umas contra as outras, mas se baseiam na violação da terra: se a terra se torna inabitável, as pessoas são forçadas a fugir, montam um conflito e, depois, os comerciantes de armas em nível global usam o conflito local para criar uma guerra duradoura. Ficamos muito perturbados diante da gravidade da crise dos refugiados no Mediterrâneo. O mar é uma fonte de vida, de festa, não pode se tornar um túmulo para os nossos irmãos, irmãs e para os nossos filhos. Não é possível. As pessoas são forçadas a fugir porque o modelo agrícola e econômico imposto às pessoas torna as suas casas inabitáveis por causa da desertificação, da poluição das águas. Em todos os países onde se procura por petróleo, no Oriente Médio, na Líbia, na Síria, no Iraque, as sociedades se tornaram inabitáveis. Hoje, fala-se de militarizar o Mediterrâneo em vez de humanizá-lo e torná-lo novamente o berço da civilização. Nós temos as capacidades, como seres humanos, para restaurar a paz sobre esta terra, para viver juntos em um mesmo planeta. Temos um grande potencial. Todos os movimentos populares estão trabalhando para isso. O papa, com os seus escritos e discursos, conhece o potencial da humanidade. Esse é o motivo pelo qual o encontro com a voz do Papa Francisco pode contrabalançar essas forças desumanas e trazer de volta o equilíbrio em favor da terra e da humanidade neste tempo de ecocídio e de genocídio.

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