Quando o Papa Francisco se põe ao lado dos fundadores da laicidade francesa

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24 Mai 2016

Definindo a laicidade francesa como "exagerada", o Papa Francisco toma posição em um debate que, atualmente, dilacera a esquerda. Em outros tempos, se teria falado de crime de ingerência, se teria gritado o escândalo. Por duas vezes, à distância de poucas semanas, o Papa Francisco, de Roma, se intrometeu nas disputas franco-francesas sobre a laicidade. Em março, diante de militantes cristão-sociais, definiu a laicidade francesa como "incompleta". Depois, qualificou-a como "exagerada" no decorrer de uma entrevista publicada no dia 17 de maio pelo jornal católico La Croix.

A reportagem é de Henri Tincq, publicada no sítio Slate.fr, 19-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Para esse papa jesuíta, a laicidade francesa é "fechada à transcendência", inspirada demais pela herança intelectual do Iluminismo. Na França, diz ele, "as religiões são consideradas como uma subcultura, e não como uma cultura em sentido próprio".

É claro, esse papa é muito popular no mundo, e os ambientes "laicos" estão dispostos a lhe perdoar muitas coisas. Mas dizer que a laicidade "à francesa" é "exagerada", contudo, suscita, há dois dias, perguntas e irritação.

Primeira pergunta: o papa de Roma tem o direito de julgar a laicidade francesa, de criticar o sistema francês, tão particular, de separação entre o Estado e as religiões? Como é que ele pode dar lições à França sobre a herança da Revolução e do Iluminismo, que os seus antecessores continuamente desacreditaram, senão até combateram com a máxima energia?

Lembremos que, para os papas, há dois séculos, a Revolução Francesa, o Iluminismo e as leis laicas foram inspiradas pelo diabo. Eles teriam cometido o crime insuportável de suplantar os deveres em relação a Deus pela veneração idólatra da liberdade e dos direitos humanos.

Durante todo o século XIX, eles continuaram defendendo os seus privilégios, combatendo as ideias liberais, democráticas, laicas vindas da França, as leis de separação da Igreja e do Estado. Seria preciso esperar até meados dos anos 1960, com o Concílio Vaticano II, para que a Igreja Católica finalmente aceitasse "a autonomia das realidades terrestres" e a distinção entre a esfera pública e a fé privada, e se resignasse às regras do jogo laico, do qual, hoje, ela percebe melhor todas as vantagens, em termos de independência financeira, de liberdade de ação e de expressão.

"Os Estados confessionais sempre acabam mal"

Esse papa que veio da Argentina introjetou tanto essa nova realidade que, hoje, ele chega a enunciar, em um jornal católico francês, que "um Estado deve ser laico" e que "os Estados confessionais sempre acabam mal, porque vão contra a história".

Que inversão histórica! Que forma de fazer se revirarem no túmulo os papas, os teólogos devotos e as suas milícias, que passaram toda a vida lutando contra os regimes ditos "ateus" das sociedades secularizadas, que defenderam ferozmente, contra todo tipo de heresia, o monopólio da "verdade" católica, que protegeu os regimes mais reacionários da história também contemporânea, os Franco, os Salazar, os Pinochet, que impuseram aos Estados e às sociedades as suas leis divinas e ditaram os seus princípios a todas as consciências.

É precisamente porque ele pretende superar esse passado de intolerância que o Papa Francisco se permite criticar hoje a nossa concepção de laicidade, achando-a "exagerada". Porque, enfatiza ele, "cada um deve ter a liberdade de exteriorizar sua própria fé. Se uma mulher muçulmana quer usar o véu, ela deve poder fazer isso. Assim também se um católico quer portar uma cruz. Deve-se poder professar a própria fé, não ao lado, mas dentro da cultura".

Aliança com os fundadores da laicidade

Mergulhamos aqui no debate sobre a laicidade que grassa dentro da esquerda, naquela "batalha cultural e identitária", que, de acordo com Manuel Valls, acontece na França do pós-Charlie-Hebdo e do pós-atentados.

Esse papa que veio do fim do mundo, personalidade mundial e influente, escolheu de que lado quer estar. Não do lado dos "ultralaicos", dos "identitários republicanos", como são chamados aqueles que, como o primeiro-ministro francês, não pretendem recuar um milímetro diante da influência crescente das religiões. Aqueles que rejeitam as mães muçulmanas veladas como acompanhadoras nas excursões escolares. Ou aqueles eleitos que, como o prefeito de Chalon-sur-Saône, que deu início ao movimento, proíbem os menus alternativos nos refeitórios escolares no dia em que se serve carne de porco.

Essa concepção exclusiva da laicidade – que gostaria de fazer desaparecer todos os sinais religiosos do espaço público, confundido com a reputação estatal, e de restringi-lo apenas à esfera privada – é, como diz o papa, "exagerada".

No entanto, ela tem o vento em popa. Cada vez mais reivindicações visam a estender o campo da laicidade ao espaço semipúblico (o caso da creche Baby-Loup), ou até ao espaço privado. Quer-se rever a determinação da área legítima e legal da exigência laica, alargar o seu perímetro jurídico. Antes de mudar de ideia, Manuel Valls tinha proposto legislar outra vez sobre o véu islâmico para proibi-lo na universidade. Ou para banir os pedidos de caráter religioso em ascensão nas empresas privadas.

O papa rejeita essa evolução e, em vez disso, vai em sentido contrário, no sentido dos "multiculturalistas", para os quais cada homem e cada mulher deveriam poder externar livremente a própria fé. Ele está do lado daqueles que, apesar das tensões religiosas e do aumento dos extremismos, querem defender o direito de cada religião e de cada cultura, por mais diferente que seja da cultura dominante, à plena autonomia, no respeito da lei e da ordem pública.

Assim, hoje, encontramo-nos diante de um paradoxo extraordinário. O de ver o jesuíta argentino, herdeiro daqueles papas que, de Roma, continuaram lutando contra a lei francesa de separação de 1905, ficar do lado dos "pais fundadores" (Jaurès, Briand, Buisson), para os quais a laicidade jamais deveria degenerar em recusa dogmática da religião.

São eles que, por primeiro, puseram como princípio absoluto a liberdade religiosa, para a qual toda religião se organiza de acordo com o direito próprio. São eles que esculpiram em mármore que "a República assegura a liberdade de consciência e garante o livre exercício dos cultos" (artigo primeiro da lei de separação de 1905).

Era Aristide Briand, referente daquele texto, que afirmava na Câmara dos Deputados que "o novo regime dos cultos não poderia oprimir ou impedir, nas suas múltiplas formas, a expressão exterior dos sentimentos religiosos".

Ele mesmo defenderia que "sempre há dois modos de fazer fracassar uma reforma: ou votar contra ou, exagerando as demandas, torná-la inaplicável". É precisamente o exagero laico que hoje nos ameaça e que o papa, do seu modo, está denunciando. Aquele exagero que, na Frente Nacional, em certas correntes de direita, nos ambientes católicos integralistas, mas também em certas alas da esquerda, designa o Islã como o inimigo número um e encerra a identidade francesa na sua origem e nas suas raízes cristãs. Aquele exagero que luta contra uma chamada "ideologia" multicultural e multirreligiosa para a qual um crucifixo vale o mesmo que um véu, uma burca, um niqab ou um turbante! E que reduz toda forma de prática religiosa a uma expressão comunitarista, e a laicidade à sua concepção mais intransigente, que certamente não é a que os seus fundadores defendiam.

Que caiam as máscaras!

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