O ser comunhão

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20 Abril 2016

O teólogo americano, James Keenan, professor de Teologia no Boston College, comenta o livro “Being as Communion: Studies in Personhood and the Church” de John Zizioulas, Editora St. Vladimir, 1985, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 18-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

Em 1982, dei início aos meus estudos em Ética Teológica na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma. De 1982 a 1984, fiz aproximadamente 16 disciplinas, passei por provas gerais e escrevi minha monografia com Klaus Demmer em Metafísica Moral. De 1985 a 1987, escrevi minha tese em Tomás de Aquino sob a orientação de Josef Fuchs.

Cursei uma lista interessante de disciplinas nestes dois primeiros anos: três delas com Fuchs, quatro com Demmer, três com Louis Vereecke, duas com Edouard Hamel, e outras tantas com Wilhelm Ernst, Frank Sullivan e Jared Wicks. Para um aspirante a teólogo moral, desejoso em aprender a “Tradição” e a abordagem contemporânea à Ética Teológica, eu me encontrava no paraíso.

No início de 1984, alguns colegas me disseram que eu deveria me inscrever para as aulas de Jean Zizioulas. Eu nunca havia cursado uma disciplina totalmente dedicada à teologia ortodoxa. Inscrevi-me numa turma de 200 alunos aproximadamente, a maioria dos quais era composta de padres.

Lembro que ouvir Zizioulas era como ouvir a um marciano! Eu tinha passado dois anos estudando casuística, teologia fundamental e, as últimas opções, deontologia e teologia. Com Fuchs e Demmer, estive no coração do debate europeu sobre a autonomia da consciência e do magistério. De forma alguma era aquele debate trivial que se dava nos EUA, sobre se nós “poderíamos” seguir a nossa consciência ao invés de um ensinamento católico. Para os moralistas europeus, em particular os moralistas alemães, a consciência autônoma levantou-se das cinzas da Europa atormentada pela guerra, culpando-se pelos estragos do fascismo, do nazismo e do holocausto. A consciência não era uma opção; era um assombro, uma reprovação divina da subserviência viciosa construída sobre o medo.

Em Roma, eu li tudo de Demmer e Fuchs e de seus colegas, bem como estive supervisionando as edições inglesas dos escritos de Fuchs pela Georgetown University Press. Eu também estava tendo aulas com Vereecke, com quem aprendi sobre os probabilistas, os probabilioristas, os equiprobabilistas, para não falar dos laxistas e tutioristas. No mundo da Ética Teológica, eu conhecia a minha tradição, das alturas dos debates alemães e americanos sobre metaética até as particularidades da casuística de uma gravidez ectópica.

Naquele primeiro semestre, escutar Zizioulas era como ouvir um idioma totalmente novo, uma perspectiva inteiramente nova e um sopro completamente inesperado de ar fresco. Ar fresco, exatamente isso. Zizioulas estava lecionando sobre Espírito Santo e a racionalidade. Em minhas outras 15 disciplinas cursadas, com a exceção de Hamel, raramente se mencionou o Espírito Santo.

Na Gregoriana, exigia-se pouca leitura para as disciplinas. Sempre se faziam referências às leituras – e nós “podíamos” fazê-las –, mas o essencial para a disciplina era entender as palestras. As leituras de Zizioulas eram na maioria em francês. Ela justapunha os seus primeiros ensaios com debates subsequentes juntamente com teólogos católicos romanos que o tocavam, o padre jesuíta Ignace de la Potterie e o frade dominicano Yves Congar.

No centro de suas palestras estava o seu livro, L'Être ecclésial (Paris: Labor et Fides, 1981) que, em inglês, foi lançado em 1985 sob o título “Being as Communion: Studies in Personhood and the Church (Yonkers: St. Vladmir editora). Fui tomado pela racionalidade que escoava por estas páginas.

Em L’Être ecclesial, Zizioulas sustenta que a Queda nos mostra a nossa natureza quando nós, criaturas, somos deixados a nós mesmos. A Queda era, acima de todas as coisas, uma ruptura com a comunhão. Separada, a humanidade depois da Queda é deixada à procura da sua pessoalidade, que denota particularidade e comunhão. A pessoa pela qual estamos em busca é Cristo, plenamente relacional: ao Pai e ao Espírito na divindade, e a nós em nossa humanidade. Em sua pessoa, Cristo é constitutivamente relacional.

Pelo Espírito é que nos tornamos relacionais, porque é por ele que nos constituímos como Igreja. O batismo é, então, um nascimento por onde deixamos de ser um indivíduo para nos tornarmos uma pessoa. Tornamo-nos aquele que se constitui, ao mesmo tempo, pela comunidade. Da mesma forma como Deus se constitui em três pessoas em comunhão, nós também nos constituímos pelo Espírito enquanto pessoas em comunhão com o Corpo de Cristo

Na medida em que, pelo batismo, descobrimos que a nossa liberdade pessoal se encontra em Cristo, a nossa liberdade não é mais a prática distanciadora de escolher entre dois, optando por um e declinando o outro. A liberdade encontra-se não nas práticas individualizantes, mas nas relacionais.

Devemos, pois, ver que a Igreja como comunhão nunca é “ou uma coisa ou outra”. Ela não é local ou universal, mas as duas ao mesmo tempo; a Igreja é ambas as coisas. Para os fiéis, é impossível entender que a Igreja local não é, ao mesmo tempo, a Igreja universal. A Igreja unida em Cristo é a integridade, a plenitude do Corpo de Cristo. A Igreja universal está tão presente na Igreja local quanto o Corpo de Cristo está presente na Eucaristia de domingo em nossas paróquias.

A maioria dos primeiros concílios teve dificuldades para entender que a Igreja local não poderia se recusar a receber um membro fiel de uma outra comunidade: cada comunidade estava em plena unidade, jamais imposta do além, mas percebida de dentro ao se partir o pão. Por esse motivo, os bispos não eram ordenados fora do contexto da comunhão eucarística. Dentro da Eucaristia, nós ordenamos aquele que foi chamado à responsabilidade pela comunhão da Igreja.

O Espírito não apenas nos constitui como pessoas, mas também introduz a “eschaton” na história e altera a história linear no presente; a história não se identifica simplesmente como um passado, mas como um presente e um futuro também. Para a ortodoxia grega, a “anamnesis” da eucaristia inclui a lembrança de todos os três: “Lembrando-nos deste mandamento do Salvador (‘fazei isso em memória de mim’) e de tudo o que se realizou por nós: a cruz, o túmulo, a ressurreição ao terceiro dia, a ascensão ao céu, a entronização à direita do Pai, a segunda e gloriosa vinda”.

O que Cristo nos dá na Eucaristia é a estrutura do próprio Reino: na Eucaristia, podemos compreender que na Igreja local nós podemos encontrar a Igreja universal e, da mesma forma, no presente nós podemos testemunhar a história da salvação. Na comunhão, desaparece tudo aquilo que nos separa.

A racionalidade que Cristo nos apresenta na Eucaristia é a sua unidade com o Pai, com o Espírito e conosco. Em troca, na Igreja local, o bispo ordenado na Eucaristia deve ver que a própria identidade episcopal não é como a de um indivíduo, mas como de uma pessoa relacional cuja função é, fundamentalmente, promover a comunhão.

Espero que tudo isso lhe permita uma apreciação do talento de Zizioulas.

No fim de casa disciplina na Gregoriana, tínhamos uma prova final, um exame oral de 10 minutos para cada aluno junto ao professor. Os exames orais aí eram, para dizer em uma palavra, estranhos. A pessoa ficava à espera em uma longa fila alfabética: tínhamos de nos certificar de que éramos a próxima pessoa a ser chamada pelo professor, quando ele olhava em sua lista de chamada para passar ao próximo avaliado. O professor faria uma série de perguntas com base em suas palestras. Tudo era muito previsível.

Para as minhas provas orais, decidi que queria ter um diálogo com cada um de meus professores. Para cada avaliação, apresentei-lhes uma lista de leituras que havia feito para a disciplina. Isso sempre funcionava e, o melhor, ninguém o fazia, só eu! O professor invariavelmente iria querer, no meio da monotonia de infindáveis horas a perguntar uma mesma questão aos alunos, ter um diálogo também.

De Zizioulas, eu havia lido tudo: os primeiros ensaios, os debates com Congar, a obra L’Être ecclésial. Dei-lhe a lista. Ele me fez algumas perguntas para ver se eu havia compreendido os seus escritos. Surpreso e satisfeito, ele falou: “Posso lhe perguntar: o que acha de meus escritos?”

Eu disse: “Eu estou me tornando um jesuíta casuísta em todas as particularidades que isso significa. Estou, se assim desejar, no lado oposto no espectro da teologia em que o senhor se encontra. O senhor me permitiu imaginar a vastidão da teologia e estimulou a minha imaginação. Acho que não irei usar os seus escritos, mas transformei-me para sempre ao perceber o quão pequeno é o meu campo de ética teológica católica no cenário da teologia cristã”.

Enquanto volto a fazer uma leitura de L’Être ecclésial, posso ver que Zizioulas (ou seria o Espírito) me seduziu para fora da minha ética autônoma e me levou a perguntar sobre a racionalidade; além disso, ele me levou a procurar uma consciência pessoal e uma ética normativa baseada não principalmente no agir, mas no ser e, portanto, uma ética das virtudes, com base na pessoa, não como indivíduo, mas essencial e constitutivamente relacional.

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