Colonização da moradia na era das finanças

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04 Dezembro 2015

Como a moradia passou de direito a ativo financeiro? Por que este novo modelo, tão dependente de construtoras quanto de empréstimos bancários, foi implementado no Brasil justamente no governo Lula, em 2009, no programa Minha Casa, Minha Vida?

Essas são duas das várias perguntas difíceis cujas respostas, tão reveladoras quanto complexas, estão no livro "Guerra dos Lugares - A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças", da professora da USP e colunista da Folha Raquel Rolnik.

A entrevista foi publicada Fernanda Mena, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 04-12-2015.

O lançamento será na quarta (9/12), com debate e sessão de autógrafos no Centro Maria Antônia, em São Paulo.

A obra tem relação íntima com a experiência da urbanista como relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, cujo mandato durou seis anos, e teve início em 2008, ano em que estourou a crise hipotecária e financeira, ligada à questão habitacional.

Com isso, Rolnik viu de perto efeitos da crise no território americano e em lugares tão longínquos quanto o Casaquistão, onde a falência de construtoras turcas levou quem havia pago por um apartamento que não receberia a fazer greve de fome.

"Desenrolei um novelo que evidenciou uma mudança radical de paradigma dentro do campo da política habitacional", diz Rolnik. Segundo ela, a moradia como direito proporcionado pelo Estado se transformou em mercadoria consumida individualmente e em ativo financeiro.

"A habitação se tornou uma nova fronteira para o mercado financeiro e expôs a casa das pessoas, o lugar básico de vivência, à volatilidade do fluxo internacional de capital e a seus riscos".

Eis a entrevista.

De que maneira o livro "Guerra dos Lugares" está ligado a sua experiência como relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada?

Impossível entender o livro sem entender o mandato -um mecanismo externo do Conselho de Direitos Humanos da ONU para monitorar a implementação de tratados e pactos. Em seis anos como relatora especial, fiz missões em vários países e encontrei tanto autoridades locais quanto comunidades que acreditavam que seus direitos estavam sendo violados. Logo no primeiro ano do mandato, em 2008, estourou a crise hipotecária-financeira, intimamente ligada ao tema da moradia. A crise virou tema de um relatório especial. Essa experiência virou minha tese de livre docência, que virou o livro.

De que maneira a crise de 2008 direcionou seu olhar sobre a questão da moradia durante o mandato na ONU?

Logo que a crise estourou, fui para os EUA não só para ver os efeitos da crise sobre a moradia, as execuções hipotecárias e as pessoas que ficaram sem ter onde morar mas também para estudar as origens desta crise. 

Descobri, seguindo este rastro, que no Casaquistão - ou seja, do outro lado do mundo, na Ásia, numa ex-república soviética - havia gente fazendo greve de fome por causa da crise hipotecária. A crise havia causado a falência das construtoras turcas, que pegaram seu dinheiro e foram embora, deixando as pessoas que pagaram por seus apartamentos sem casa.

E eu comecei a desenrolar um novelo mostrando como nos últimos 30, 40 anos, a gente viveu uma mudança radical de paradigma dentro do campo da politica habitacional.

Que mudança é essa?

É a mudança da ideia de moradia como direito proporcionado em distintas maneiras e formas pelo Estado, para o conceito de moradia como mercadoria consumida individualmente e como ativo financeiro, ou seja, como uma das novas fronteiras abertas para a financeirização do capital. 

E vi as distintas versões desta mudança de paradigma pelo mundo e no Brasil, com a criação do Minha Casa, Minha Vida [programa habitacional do governo federal], que tem tudo a ver com essa nova lógica.

São mudanças na política de moradia, mas também no tratamento da terra urbana e políticas fundiárias. 

Como a moradia passou de direito a ativo financeiro?

Essa mudança tem duas dimensões: a de destruição da ordem anterior e a de construção de uma nova ordem. Houve um desmonte das políticas de moradia nos países que tinham algo deste tipo, como Reino Unido e diversos países da Europa. Mesmo os EUA, que sempre promoveram a casa própria via hipoteca, tiveram desde o New Deal atividades importantes de construção de conjuntos habitacionais integralmente financiados pelo Estado, com aluguel subsidiado. E há os casos mais radicais, como nos países do comunismo e socialismo real, onde o Estado construía massivamente conjuntos habitacionais públicos, coletivos ou cooperativados. 

No caso inglês, que é pioneiro, o desmonte ocorre via privatização deste estoque habitacional, vendido a preços módicos para quem morava lá. Ao transformar a classe trabalhadora em proprietários de imóveis, o partido conservador e o Tatcherismo [era em que Margareth Tatcher era primeira-ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990] penetraram com tudo nas bases do partido trabalhador.

A Espanha, que nunca teve política de moradia, tinha controle de aluguel e proteção de inquilinos. E isso também foi desmontado.

Então, a única política que foi sendo construída no lugar de várias que existiam foi a compra do imóvel individual via crédito bancário. É o paradigma dominante no mundo todo. 

Onde está a financeirização neste novo paradigma?

Na medida em que a moradia se torna um produto que é comercializado, o mercado é ampliado. Como se trata de um produto caro, é necessária a intermediação financeira, ampliando fronteiras para o capital. 

No âmbito da globalização do mercado financeiro, a partir do final dos anos 1970, passa a haver grande quantidade de capital pairando sobre o planeta e procurando novos campos para investimento. A produção residencial se tornou um desses novos campos para a atuação do capital financeiro global. 

Tem uma ideia do economista norte-americano Nouriel Roubini que se aplica em alguns desses casos: a moradia como um caixa eletrônico. Como ela se torna um ativo territorial, funciona como garantia para empréstimos. E isso gerou um mercado primário e um mercado secundário de hipotecas, que foi empacotado junto a outros produtos e girou de mão em mão para gerar juros e estourar na crise financeira-hipotecária de 2008. 

Como existe um processo de arrocho salarial histórico, uso dos ativos da própria moradia acaba servindo para financiar o consumo: comprar carro, faculdade dos filhos etc.

Com isso, a casa das pessoas, o lugar básico de vivência das pessoas, passou a estar exposto à volatilidade do fluxo internacional de capital e a seus riscos. Na hora que vem uma crise, perde-se tudo, inclusive a casa. 

E como a moradia era vista antes dessa mudança? Já não existia o "sonho da casa própria"?

Essa experiência varia muito de um país para outro. Mas a ideia de casa própria não é nova em absoluto. Nos 1964, no Brasil, quando foi criado o BNH (Banco Nacional de Habitação), seu lema era fazer de cada trabalhador um proprietário. Isso tem um sentido ideológico. 

Em boa parte da Europa e certamente nos países do Leste Europeu, havia a ideia de que você não precisava ser proprietário de uma casa, mas tinha de ter acesso a ela de forma adequada e independente de sua renda.

Essa relação passou a ser de proporcionalidade entre o que você ganha, o lugar onde você mora e a rentabilidade que aquela moradia pode prover.

Nada parece ter mudado neste modelo desde a crise de 2008.

A reação dos governos foi salvar os bancos e não rever suas políticas habitacionais. A resposta à crise hipotecária foi mais do mesmo. Houve, aqui e ali, o surgimento de algum tipo de controle do mercado de hipotecas.

Historicamente, há uma parcela da população, de menor renda, que não tem acesso a propriedade privada individual e a hipoteca. E os mecanismos subprime [créditos de risco] surgiram para integrar essas populações ao mercado. Quando mais arriscado é o empréstimo, mais juros são cobrados. 

Como o Brasil se insere neste contexto?

O aumento da disponibilidade de crédito e da dinâmica econômica que o país passou recentemente, aliado a zero política fundiária capaz de controlar preços e fazer reservas, teve como efeito um enorme boom nos preços dos terrenos e dos imóveis. Isso aconteceu em todas as grandes cidades. Há uma grande discussão se isso é ou não uma bolha etc., mas esse crescimento deu uma parada em função da atual recessão. Ainda assim já foi suficiente para aprofundar a crise da moradia no Brasil. Em qualquer capital, a narrativa nos movimentos sem-teto se repete: "Eu pagava aluguel e começou a ficar muito caro, aí eu fiquei sem ter pra onde ir e vim pro movimento etc.". 

Qual o efeito disso sobre a cidade?

A política de produção massiva de moradias nas periferias se aliou à financeirização da terra urbana e da política urbana. E aí estamos falando de outro processo: grandes projetos de transformação urbana que produziram a remoção ou o deslocamento dos setores mais vulneráveis das cidades ao mesmo tempo em que a produção em massa de moradia funcionou como alternativa para que esses deslocamentos pudessem se dar. 

E isso não é só no Brasil. Ocorre também na Turquia e em vários países também. 

No Chile, cujo modelo o Brasil copiou, é o Estado quem paga o cidadão para que ele adquira um produto porcaria que o mercado está oferecendo para ele. Por que o produto ofertado neste esquema de produção em massa pelo mercado, financiado pelo Estado, é de quinta categoria. Embora seja uma casa com condição mais confortável, com água encanada e luz, ela está situada em uma localização muito pior. Como há um teto para o valor do financiamento, só tem uma maneira de as construtoras ganharem dinheiro: comprando uma terra de quinta. É uma terra ou contaminada ou no meio da zona rural ou longe da cidade, portanto, sem infraestrutura, o que dificulta o acesso das pessoas que vão morar nela a outros direitos. Estruturalmente esses modelos produzem guetos. 

Os conjuntos do Chile são os locais hoje de grande concentração de todo tipo de problema social: violência doméstica, crime, dependência de drogas etc. Eles estão demolindo parte desses conjuntos. 

De que maneira o Minha Casa Minha Vida é um espelho deste novo paradigma?

O programa é muito parecido com modelo chileno, e as favelas removidas tem seus moradores deslocados para esses conjuntos habitacionais. 

No Brasil há um diferencial: a faixa um de financiamento do programa, para população que recebe de um a três salários mínimos, é praticamente toda subsidiado pelo governo. É uma casa dada. Só que isso gera outro problema: como manter esses condomínios, essas novas casas próprias, se seus moradores ganham zero, meio, um salário mínimo? Isso não se sustenta e só mostra que não dá pra termos um modelo único na área de moradia. 

O Minha Casa, Minha Vida se sobrepôs a outros programas?

Várias cidades tiveram políticas locais de moradia e abandonaram tudo. Hoje só tem Minha Casa Minha Vida porque ele traz vantagens para as prefeituras, que fica com os dividendos políticos e não têm ônus de organizar, encontrar terra, construir etc. Também só traz vantagens para o setor privado, que tem certeza de retorno porque o governo dá dinheiro para as pessoas comprarem seu produto.

Até o governo do PSDB acabou com sua produção de moradia no CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano] para pegar carona no Minha Casa, Minha Vida

Por que é justamente em 2009, na segunda gestão Lula, que se dá esse processo no Brasil?

Eu fui pesquisar as origens da relação entre o sindicalismo e o complexo imobiliário-financeiro.

Historicamente, o campo imobiliário foi um dos grandes setores de investimentos dos fundos de pensão e foi por aí que ocorreram os primeiros vínculos entre o complexo imobiliário-financeiro e as lideranças sindicais, portanto, partidárias. 

Essa relação se deu pela luta do movimento sindical para estar na direção dos fundos de pensão dos trabalhadores, na década passada, o que gerou a conexão destes atores sindicais, gestores dos fundos, com o setor imobiliário. 

Estou falando da gênese desta relação no campo urbano, que é aquele que eu pude observar. E isso ajuda explicar por que e como justamente na era Lula se dá essa financeirização do mercado imobiliário. 

Como megaeventos como a Rio 2016 vão impactar a moradia no Rio de Janeiro?

Esse processo que eu descrevo no livro vem acompanhado de uma fragilização de todo tipo de vínculo com a terra que não a propriedade individual registrada, ou seja, as formas tradicionais de posse, as áreas habitadas por populações tradicionais (ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, assentamentos informais) etc. 

Isso porque a propriedade privada individual registrada é aquela completamente adaptada à linguagem das finanças, que pode servir de lastro para empréstimos e que pode circular no mercado financeiro internacional. Como transacionar uma terra coletiva de uma comunidade? Impossível!

O Morro da Providência, por exemplo, tem cem anos de ocupação. Mas ele é visto pela política urbana atual como um espaço ambíguo no sentido de que nunca está claro se é permanente ou se a população vai sair, se é regular ou irregular. Essa resposta nunca é dada porque a ambiguidade permite que esses locais funcionem como reservas de terras potenciais para expansão do capital financeiro no momento oportuno. Os megaeventos funcionam como catalizadores deste processo.

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