04 Dezembro 2015
"O que me impressiona a respeito da Igreja Católica hoje, especialmente quando considero os debates feitos no recente Sínodo, é a forma como a história (a história da Igreja, a história dos desdobramentos doutrinais, a história de instituições como o matrimônio) é usada, ou, se preferir, como ela 'não' é usada, quando se debate sobre a doutrina".
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo e diretor do Institute for Catholicism and Citizenship, na University of St. Thomas, nos EUA, em artigo publicado por Globall Pulse, 02-12-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A globalização do catolicismo é mais um motivo para dedicarmos tempo à história.
As convenções anuais dos teólogos e estudiosos da religião nos EUA são grandes oportunidades para acadêmicos não americanos (como eu) terem uma ideia do que está acontecendo na área.
Sim, o velho continente tem a sua Sociedade Europeia para a Teologia Católica (European Society for Catholic Theology) fundada em 1989, mas ele não pode aspirar ser um centro de atividades como a Sociedade Teológica Católica da América, a College Theology Society ou a Academia Americana da Religião.
O caso é: o que capturou a minha atenção na recente convenção anual da Academia Americana da Religião em Atlanta foram as traduções do francês para o inglês dos diários privados de dois dos teólogos católicos mais importantes do século XX, cujo trabalho foi decisivo nos desdobramentos teológicos no Vaticano II: Yves Congar e M.-D. Chenu.
O diário de Congar do Concílio já é conhecido do público falante de língua inglesa (o seu texto fora traduzido e publicado em 2012), mas aqui nós temos agora um diário ainda mais dramático e pessoal: é o “Journal of a Theologian 1946-1956” [1].
Eis um trecho da seção dedicada às semanas dramáticas no verão de 1950, quando a encíclica Humani Generis, de Pio XII (com a data de 12 de agosto), foi usada para silenciar dezenas de teólogos católicos, incluindo Congar.
Paris, onze em ponto da manhã, 1 de agosto de 1950. O Pe. Geral [Manuel Suarez, 1946-1954] chegou em Paris na noite do dia 16 e pediu-me que o visse nesta quinta-feira pela manhã, dia 17. Ele me recebeu das 9h15 às 10h15 e aqui estou imediatamente fazendo uma nota sobre a essência do que ele me falou. Na verdade, ele repetiu certas coisas várias vezes e debruçou-se sobre alguns pontos. Em essência, tem a ver com o “Chrétiens Désunis”, livro seminal de Congar sobre o ecumenismo, publicado em 1937, traduzido ao inglês e publicado em 1939 com o título “Divided Christendom”. Certos jornais anunciaram que uma nova edição havia sido proibida pelo Santo Ofício (…) [O Pe. Geral me disse] que eu precisaria revisar o “Chrétiens Désunis” à luz do texto do Santo Ofício; eu teria de corrigir certas coisas. Não me disseram isso (...) Ele quer que eu mesmo faça as mudanças; em todo o caso, ele não quer que Roma se envolva. Esta proposta o surpreendeu e até mesmo o chocou um pouco. Mas eu lhe disse: O Pe. Lacordaire jamais precisou limpar o seu nome, nem o Pe. Sertillanges (…). Tendo uma vez sido rotulado não se pode mais voltar atrás e ser restaurado. Ele me contou que o papa havia lhe dito, pouco antes da morte de Sertillanges, que ele era um de seus admiradores (...) Isso porém não impediu de o Pe. Sertillanges enfrentar dificuldades até o fim.
Não menos interessante é o “Vatican II Notebook” [2] de Chenu. Este é um dos muitos diários do concílio que terminaram com a primeira sessão do Vaticano II. Dois dias antes de sua abertura, em 11 de outubro de 1962 – quando João XXIII proferiu o discurso Gaudet Mater Ecclesia, redefidindo a pauta do Vaticano II –, Chenu relatou o seu diálogo com o Cardeal Léger, de Montreal, sobre os documentos elaborados durante a fase preparatória do evento:
[Léger] falou comigo animadamente sobre a sua decepção com os esquemas doutrinais: teses especulativas que só repetem o Vaticano I e não consideram as necessidades e possibilidades da nossa época. Não estamos mais nos tempos do liberalismo doutrinal de 1860, nem no tempo do socialismo antieclesiástico. Tampouco estamos em um gueto. Não podemos estar contentes em atirar pedras nos comunistas, dizendo-me alguma coisa que João XXIII dizia-lhe. Os americanos ainda estão no Concílio de Trento. “Eu mesmo”, disse ele, “me comprometi; os meus opositores me chamam de o ‘cardeal furioso’”.
Três dias depois, em sua nota do dia 12 de outubro, Chenu relata o que Henri de Lubac lhe diz sobre o status do “caso Rahner”, que surgiu a partir do pedido do Santo Ofício, em junho de 1962, de sujeitar os escritos de Karl Rahner ao escrutínio prelimitar por um sensor romano, pedido que os bispos alemães apelaram ao Papa João XXIII. “O caso Rahner terminou”, escreve Chenu.
“Confrontado com um claro apoio dos bispos alemães, o Santo Ofício retrocedeu; mas, para não se sair perdedor, não reverteram o juízo antes feito, mas delegaram o poder de imprimatur aos cardeais König e Döpfner, defensores do Pe. Rahner!”
É interessante saber que o Santo Ofício removeu a censura preliminar contra Rahner apenas em maio de 1963, depois que ele fora nomeado oficialmente um teólogo peritus do Vaticano II. (De Lubac, que havia tido os seus próprios problemas com o Santo Ofício, compilou os seus relatos no livro “Vatican Council Notebooks” [3], cujo primeiro volume foi recentemente publicado em inglês.)
O tratamento de Congar, Rahner, de Lubac e muitos outros pelo Santo Ofício (o que Congar chamou, em sua entrada de 9 de fevereiro de 1954, de a “a suprema Gestapo”) nos mostra a distância que estamos da cultura não somente da Igreja de Pio XII (a quietude – na falta de um termo melhor – da Congregação para a Doutrina da Fé pelo Papa Francisco sendo, possivelmente, o exemplo mais próximo), mas também da Igreja de João Paulo II e Bento XVI.
Por outro lado, a menção de Chenu e Léger ao “liberalismo doutrinal de 1860” nos recorda o quão distante estamos também daquela consciência histórica, que é o que faz muitos dos nossos seminaristas e jovens padres e bispos olharem para o Vaticano II como o epítome de um liberalismo teológico perigoso.
O que me impressiona a respeito da Igreja Católica hoje, especialmente quando considero os debates feitos no recente Sínodo, é a forma como a história (a história da Igreja, a história dos desdobramentos doutrinais, a história de instituições como o matrimônio) é usada, ou, se preferir, como ela “não” é usada, quando se debate sobre a doutrina.
É lamentável. Talvez a globalização do catolicismo tenha complicado as coisas. Mas, então, eis mais um motivo para dedicarmos um tempo à história. Que existem muitas coisas a esse respeito é uma coisa boa, e a melhor forma de assegurar o desenvolvimento da doutrina é explorando as suas profundezas.
Notas:
[1] Conferir a descrição do livro aqui.
[2] Conferir a descrição do livro aqui.
[3] Conferir a descrição do livro aqui.
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Muita história em tão pouco tempo. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU