Leonardo Boff, sobre o Papa e o aborto: “Uma vez aberta a porta, já não se fecha”

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Por: Jonas | 04 Setembro 2015

“A doutrina católica é uma invenção de teólogos. Cada época elabora sua teologia. Porém, há valores que marcam uma ruptura. Ou seja: aqui começa algo novo. E este Papa vive essa ruptura”, afirma o teólogo brasileiro Leonardo Boff (foto).

A permissão temporal concedida pelo papa Francisco para que os sacerdotes perdoem mulheres que tenham abortado supõe “abrir uma porta” que “já não se fecha” para a Igreja católica, afirmou Boff.

 
Fonte: http://goo.gl/UflrpC  

Uma das principais referências da Teologia da Libertação, condenado ao ostracismo em 1985, pelo Vaticano, por seu livro “Igreja, carisma e poder”, Boff expressou seu entusiasmo com o atual Pontífice, durante uma conversa com BBC Mundo.

“O Papa está inaugurando outro tipo de Igreja, adequada à globalização”, afirmou o ex-sacerdote, que disse ter colaborado com a encíclica sobre a ecologia, divulgada por Francisco, neste ano.

A entrevista é Gerardo Lissardy, publicada por BBC Mundo, 02-09-2015. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Qual a sua opinião sobre a permissão temporal concedida pelo papa Francisco para que os sacerdotes possam absolver do “pecado de aborto aos que o praticaram e que estejam arrependidos”?

Esta decisão está diretamente ligada ao conceito fundamental que o Papa possui do Evangelho como misericórdia. Deus tem um amor incondicional e sua misericórdia não tem limites. Somente um cristianismo doutrinário, apologético, eu diria quase machista e sem misericórdia (possui), é duro nisso.

Este Papa declarou claramente: eu não dirigirei a Igreja pelo poder, mas, sim, pelo amor e a misericórdia. Esta decisão é absolutamente coerente com sua mensagem.

Você fala de uma misericórdia sem limites, mas o perdão só poderá ser concedido durante o Ano Santo (entre os dias 8 de setembro próximo e 20 de novembro de 2016). Visto dessa maneira, não parece uma mudança duradoura...

Sim, mas isto é abrir uma porta. E uma vez aberta a porta, já não se fecha. Significa que ele tem certa pedagogia, certo sentido de processo. Não é um processo que irá retroceder. Iniciou agora e o Ano Santo é uma ocasião muito oportuna, porque é o ano da misericórdia e do perdão de todas as dívidas. Abre-se uma porta e esta será uma atitude pastoral permanente na Igreja.

Acredita que isto antecipa uma mudança doutrinária dentro da Igreja?

Acredito que o Papa não irá discutir as doutrinas. Ele sempre disse que a realidade está acima das doutrinas. Se a realidade diz que hoje há muitos divórcios, o conceito de família está mudando cada vez mais, e para ele o importante é que há amor. Onde há amor, seja no primeiro ou segundo casamento, aí existe algo de Deus.

A Igreja rejeita, por exemplo, que uma criança de 10 anos estuprada e grávida aborte, como ocorreu no Paraguai. Como se coloca a realidade sobre as doutrinas aí?

Acredito que o Papa não faria isso: ele entenderia. O bispo local ou a Igreja local podem fazer isso porque fazem deduções: não se pode cometer aborto porque importam as pessoas. Isso é abstrato.

A questão é o quanto o papa Francisco é reformista: alguns acreditam que está impulsionando mudanças de fundo e outros que são apenas atos cosméticos de alguém que, em definitivo, é o guardião da doutrina católica...

Ele é o guardião da tradição de Jesus. Porque a doutrina católica é uma invenção de teólogos. Cada época elabora sua teologia. Porém, há valores que marcam uma ruptura. Ou seja: aqui começa algo novo. E este Papa vive essa ruptura. Não é populista, nada. Ele vive sua profunda convicção como homem religioso. Já vivia assim como cardeal, na Argentina, fora do palácio, utilizando os meios comuns, o ônibus e o metrô, ia sozinho às vilas misérias.

O Papa também disse que não era ninguém para julgar uma pessoa gay, mas sua Igreja continua condenando a prática homossexual e se opondo ao casamento gay. Como você enxerga isso?

Nisso, o Papa está inovando na linha da misericórdia e da compreensão. Ele disse: é preciso fazer uma solução pastoral, ‘o pastor tem que ter o cheiro de ovelha, caminhar junto com seu povo. E ele entende a condição humana, então não tem nada de rigidez.

E em relação aos abusos sexuais, dentro da Igreja, está fazendo tudo o que deve para atacar este problema grave?

Aí o Papa é implacável, é tolerância zero. Esse núncio apostólico de Santo Domingo foi imediatamente condenado. Um cardeal da Irlanda foi imediatamente demitido e enviado a um convento para fazer penitência. É rígido porque se trata de pecar contra um inocente, abusar de quem não pode se defender. Esse crime tem que ser julgado pela justiça civil, e o Papa tem isso claro. Um crime não pode ser escondido como foi nos dois pontificados anteriores.

Em março, houve uma polêmica no Chile porque o Vaticano defendeu a nomeação de um bispo acusado de acobertar abusos sexuais. Há aqueles que destacam que, na verdade, não são vistas tantas mudanças...

Todas as mudanças precisam de processos, não acontecem da noite para o dia. São realizadas com práticas novas e é um processo pedagógico em que as mentes vão amadurecendo. Muitos ficam para trás e outros que são muito conservadores ficarão cada vez mais isolados.

O Papa está inaugurando outro tipo de Igreja, adequada à globalização. Não pode ser uma igreja ocidental, porque o Ocidente é cada vez mais um acidente na história e a Igreja não pode ser refém dessa cultura ocidental.

O Papa consultou seus escritos para preparar a encíclica que lançou, neste ano, sobre a ecologia?

Não é bom falar sobre isto. Mas, por três vezes fui solicitado a enviar materiais por meio do embaixador argentino na Santa Sé. Com grande alegria constatei que muitas coisas foram aproveitadas. No entanto, a encíclica é do Papa, não é minha. O novo da encíclica é superar a visão da ecologia como ambientalismo. Não é uma encíclica verde, é uma encíclica da ecologia integral, política, econômica, espiritual, não somente da relação com a natureza. O Papa já parte do novo paradigma.

Há alguma mudança na Igreja, com este Papa, no que diz respeito à Teologia da Libertação?

A Teologia da Libertação tem várias tendências. Na Argentina, por causa da repressão militar e a fúria antimarxista, não utilizava nenhuma categoria de classe, mas era a teologia do povo oprimido e da cultura silenciada. É o mesmo. E Bergoglio nunca foi contra a Teologia da Libertação. Sempre esteve do lado dos pobres que são oprimidos, a favor da justiça social.

No entanto, você mesmo havia criticado Bergoglio como um expoente de conservadorismo da Igreja, alguém que apoiou o regime militar argentino que cometeu crimes contra a humanidade. Quem mudou, ele ou você?

Não se pode esquecer que (na Argentina) a Igreja católica é a igreja oficial do Estado, então todos os bispos e sacerdotes tinham dificuldade em se opor ao regime. E Bergoglio sofreu com isso. Porém, não se pode dizer que ele simplesmente aderiu a isso. Salvou muitíssimas pessoas, como jesuítas que enviou ao Brasil, Uruguai e outras partes. Mas, a Igreja como continua hoje ainda é em grande parte conservadora, com exceção de alguns.

Em 2005, você não tinha essa opinião. Quando o jornal “Página/12” lhe perguntou sobre a candidatura do cardeal Bergoglio, disse que deveria ser descartada ad limine, porque “um papa não pode ter sido ligado aos militares como ele”...

Mas, isso é de 2005. Estamos em 2015. Há 10 anos de diferença. Não dou valor a isso. Estava pensando que no contexto global era difícil que viesse alguém da América Latina – no Chile era muito pior, no Brasil menos – onde, de alguma maneira, muitos haviam colaborado com regimes porque eram anticomunistas, por temor ao comunismo, etc. Não era no sentido de dizer que Bergoglio estava comprometido; pertencia a uma Igreja que, em seu conjunto, tem muito que pedir perdão ao povo argentino por não ter sido suficientemente profética e denunciadora dos crimes.

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