“Bem-vindos de volta ao caos”. Entrevista com Jesús Martín Barbero

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Por: André | 27 Novembro 2014

Filósofo, antropólogo, semiólogo, mas sobretudo amante da provocação. Desde esse lugar, este especialista em cultura e meios de comunicação analisa como as novas tecnologias impactam na sociedade atual. “A digitalização é a máquina que está reconfigurando os seres humanos”, diz. E explica porque esse caminho leva de novo ao caos.

É reconhecido como um dos maiores intelectuais da comunicação e da cultura na América Latina. Todos os estudantes de comunicação dos países da região e de boa parte do mundo leram e debateram seus textos, em particular Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997), que transformou profundamente o pensamento sobre a comunicação, tentando colocar as pessoas, a cultura e não os meios, no centro do processo comunicacional. Jesús Martín Barbero (77 anos), espanhol de nascimento e colombiano por decisão, esteve em Buenos Aires e conversou com o Página/12.

A entrevista é de Washington Uranga e publicada no jornal Página/12, 24-11-2014. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Desde a sua chegada a Buenos Aires o ouvimos falar insistentemente sobre a necessidade de “voltar ao caos”. Você chegou a dizer “bem-vindos ao caos”. É possível pensar no caos?

Evidentemente. A Bíblia nos acostumou a pensar que vivíamos no caos, porque quando Deus criou o mundo, criou a ordem. Sim? Mas anterior à ordem e à criação é o caos. A crença popular moderna já tem a ver com um mundo bastante ordenado. Na Idade Média – para falar de uma época que nos diz respeito – também houve uma sensação de caos, porque acabou tudo o que era relativo àquilo que dominou grande parte do mundo conhecido na época: o Império Romano. Então, apareceram alguns senhores diferentes, a quem os historiadores chamaram de “bárbaros”, porque vinham do caos. Ou seja, que o império era a ordem e o que ficava fora do império era o caos. Para os cristãos, a palavra caos ficou marcada por algumas figuras do Antigo Testamento, mas na realidade eu teria que ter dito simplesmente “bem-vindos de volta ao caos”. Porque ao longo da nossa história houve várias épocas de caos. E eu penso que atualmente este mundo está tão fora de órbita que só uma volta ao caos vai nos permitir reinventar a sociedade. Reinventar a sociedade com capacidade de acolher toda a diversidade que hoje existe neste planeta, toda a diversidade de sensibilidades, de invenção, de tipos de esperança, toda a diversidade narrativa que há hoje, a explosão narrativa dos jovens. Então, novamente, bem-vindos ao caos.

Mas a modernidade nos acostumou a assimilar conhecimento com ordem e com disciplina. Por esse motivo pode ser muito difícil compreender o que você está dizendo agora?

Há um livro de Alessandro Baricco – o autor de Seda – que aconselho cada vez mais. Intitula-se Os bárbaros. São textos em fascículos para uma revista da Itália. Ou seja, são textos para ler, para o público em geral. O mais chocante do livro é que quando começa a entrar realmente no tema – antes de falar de como mudou o futebol, como se faz o futebol, como mudou o vinho, como se faz o vinho, e assim por diante – aparece um senhor que está diante de uma cidade destruída pelos bárbaros e a pergunta é a seguinte: os bárbaros constroem uma cidade? A resposta é “sim... mas muito tempo depois. Primeiro a destroem”. Ainda há muito por destruir; estamos na época de destruir. Essa é a parte difícil, pensar que realmente há algo para destruir. Porque na nossa cultura destruir equivale a perder memória. Não se pensa que destruir é criar espaço para construir, uma vez que já está tudo construído como neste mundo. Em um mundo superconstruído como o nosso, em qualquer aspecto, a única maneira de ter um espaço livre, um espaço verde, é destruir.

Pergunto-me e lhe pergunto: a digitalização é algo como uma máquina de demolição em relação ao que está construído?

Me perguntas?

Pergunto.

Exatamente. Essa é a máquina que já está produzindo... perdão pelo verbo... está reconfigurando os seres humanos em relação a muitas dimensões vitais. Penso na sociedade. Hoje existe um grande número de associações de pais de família que estão preocupadíssimos com a quantidade de horas que seus adolescentes, crianças inclusive, passam diante da tela do computador. E dizem: mas estão sozinhos! A solidão de que falam estes pais não tem 200 anos. Antes, as pessoas solitárias eram aquelas que iam da cidade para o campo e subiam num pinheiro. A modernidade inaugurou um tipo de solidão: quem está mais solitário é quem caminha por uma grande avenida de qualquer grande cidade, no meio de uma grande multidão. Ou seja, o indivíduo solitário não é quem saía, é quem estava dentro. Essa era a solidão moderna.

A solidão do nosso tempo é outra, porque esses adolescentes estão profundamente acompanhados por outros, desenhando, insultando-se, trocando músicas. Há outros modos de estar juntos e isso – que para alguns pode ser completamente superficial – para outros pode ser vital. E não apenas por idades. Os pais se queixam de que os filhos são solitários quando, na verdade, a adolescência é a época em que se você não assume a solidão, não cresce. A adolescência é o primeiro tempo no qual o sujeito humano tem que assumir que está sozinho no mundo. Que sua vida não é a do seu pai, nem a da sua mãe, nem a do seu amigo. Não. É a sua sozinha. E vai estar com ele, sozinho, para toda a vida. Viver com a solidão não é uma doença, é uma valiosíssima dimensão da vida humana.

E como tudo isso se relaciona com o mundo digital?

Vamos lá. O mundo digital supõe, sobretudo, a demolição da hegemonia letrada. Digamo-lo bem forte: a demolição do que Julio Ramos chamou de “a cidade letrada”. Essa cidade que continua ignorando que milhões de pessoas, em nossas cidades da América Latina, são indígenas da cultura oral, inclusive na Argentina, embora tenham passado por uma escola que lhes ensinou a ler e a escrever. A cultura cotidiana é oral. E o mundo digital move o chão. O caos move o chão das seguranças que tínhamos. Aquela segurança que sustentava que para ser inteligente era preciso ser letrado.

Se a ideia é que recuperemos o caos e retomemos a oralidade, o que fazemos com a noção de progresso e com o conceito de desenvolvimento?

É uma pergunta muito interessante. A verdade? O progresso se foi pr'o diabo... há muito tempo. Pouca gente leu e divulgou Walter Benjamin, um senhor que não foi nem filósofo, nem teólogo, nem literato... mas todas essas coisas juntas. Ou seja, foi um caos. Esse era o problema que Benjamin tinha com os amigos que lhe publicavam os seus artigos para que pudesse viver. O que é isso? Literatura?, diziam a ele. Isto não é literatura, é crítica literária... Também não. É filosofia? Mas, de que filosofia? Bom... o caos começou lá, num senhor que disse que houve uma mentira: pensar a história em termos de progresso. É o que fariam as crianças, os bebês. Mas não um ser com um pouquinho de razão, com um pouquinho mais de idade. A ideia do progresso é a de um tempo homogêneo e vazio. Acreditávamos que o tempo nos conduzia a algum lugar e nos preparava para chegar a esse lugar. O progresso era isso.

Mas em função desta perspectiva organizamos também o nosso modo de pensar...

Claro. Organizamos tudo. Melhor dito: nos deixamos organizar por essa ideia. Porque a ideia do progresso, a ideia secular, da providência, vai nos dando, em cada idade e em cada tempo, o que necessitamos para ter poder. Por quê? Porque se não você não quer chamar progresso ao material, tem todo o direito. Em 1900, a média de vida nos países mais desenvolvidos da Europa era de 50 anos. No final desse século é de 80 anos. Se isso é progresso, está muito bem. Você tem o direito de pensá-lo, desfrutá-lo. Mas há muitíssimos outros índices que não são considerados. Estamos para chegar a não sei quantos bilhões de habitantes neste planeta... que simplesmente respirando vão tornar o planeta irrespirável em menos de 50 anos. E nem pensemos em termos de alimentos. Se você pensa em algo que dura menos de mil anos pode pensar em termos de progresso. Caso contrário, não. Quantos séculos, ou milhares de séculos, ou de tempo real, demorou este “animalzinho” para chegar onde está? Se você o coloca em perspectiva de tempo real do planeta, de que estamos falando? E se, por outro lado, falamos realmente da maioria da humanidade, o que chamamos de progresso começa a aviltar-se enormemente. A menos que o identifiquemos com algumas variáveis do tipo: “tem menos ebola”, “tem menos tal... que nós”. Não é que a palavra progresso não nomeie algo que acontece. Mas não é certo que isso permita pensar a história, porque é indefinido para frente. É isso que aconteceu conosco. É indefinido para frente e foi um atraso em uma série de aspectos.

A palavra desenvolvimento, a palavra desenvolver, sofreu uma perversão: desenvolver-nos para sermos como outros. E somente alguns poucos na América Latina conseguiram torcer o pescoço a isso para propor que aquilo nos “subdesenvolvia”, que um desenvolvimento autônomo é outra coisa. E tivemos muitos problemas para poder retomar a palavra desenvolvimento. Porque essa palavra foi inventada na Europa.

Arturo Escobar, um fabuloso antropólogo colombiano – mais conhecido fora que dentro – em um texto intitulado O selvagem, mostra a poderosa armadilha do desenvolvimento. Porque desenvolver não era apenas crescer, era a palavra que substituía progresso para os países pobres. Até as Nações Unidas identificaram durante muitos anos desenvolvimento com crescimento econômico. A ideia de crescimento é uma ideia muito pequena para pensar na história da humanidade. É muito torpe. E, no fundo, desenvolvimento é crescimento. Sabemos o que é crescimento e sabemos o quanto vive um ser humano. O que é crescimento? Caminhar para a velhice, lascada como já sabemos que é.

E diante deste raciocínio, qual é a ideia de emancipação, qual é o sentido da emancipação?

Para pensar a emancipação é preciso sair da categoria de progresso, é preciso sair de todas as categorias que nos falam de crescimento, de desenvolvimento, e é preciso começar a pensar a história, ou seja, o tempo. É preciso voltar à palavra tempo para pensar nos destempos, nos contratempos. Porque a história é feita disso: de tempos, destempos e contratempos. E, finalmente, de intervalos.

Eu proponho pensar a emancipação em termos de intervalos. Há intervalos no tempo nos quais se pode fazer coisas que não se pode fazer no tempo normal. Emancipação é outra coisa, é libertar-nos. Tem a ver com liberdade, com aumento da liberdade com conhecimento das contradições que toda liberdade tem, dos conflitos que a liberdade gera.

No fundo, é mais fácil ser feliz sendo escravo. Hegel contou-nos isso da seguinte maneira: um escravo passa mal, mas quando pensa em mudar se assusta porque a única coisa que pensa é em matar o senhor para ser ele mesmo o senhor. Então, não saímos nunca da situação de escravidão.

A emancipação é outra coisa, não é matar o senhor. Emancipação é aquele tipo de liberdade que nos torna mais iguais, isto é, que vai destruindo todas as desigualdades que se “colincharan” (nota: na Colômbia colinchar: integrar, unir), que se penduraram numa noção completamente perversa, não emancipada, de liberdade. É o ricaço que pensa que com o seu dinheiro, como é seu, pode fazer o bem quiser. Um momento. Neste planeta vivemos todos e então se tem que começar a pensar na maioria e quando começa a pensar na maioria se dá conta do quão difícil é ajudar a emancipação pessoalmente. E sabemos a quantidade de coisas das quais nos teríamos que emancipar.

Temos consciência clara daquilo que nos escraviza?

Costume é uma palavra muito mais linda que escravidão. É meu costume, são os costumes do meu povo, algo que eu digo à minha esposa e aos meus filhos 25 vezes por dia: “Veja, é que eu venho de um povoado bem pequeno da Espanha... então eu tenho outros costumes”. Outros costumes são outros gostos, são outros modos de ver o mundo, de falar. Aqui não há receitas, mas há contradições e, portanto, há intervalos, há 'destempos'. Essa foi a imagem que eu recebi do Brasil. São as brechas. Brecha é uma palavra brasileira. Não há muro que não tenha brecha, mas é preciso passar a mão muitas vezes, bem devagarinho, para detectá-la. E se você pode detectar a brecha, perfura, derruba...

Devemos trabalhar sobre as brechas. Este é um pouco o tema. E se o tempo não está a nosso favor, esqueçam-se. Por isso as revoluções são esses momentos que permitiram a humanidade avançar. Com uma série de mortos, sim, mas eles tentaram. Outra coisa é que as revoluções produzem seus monstros, e alguns muito rapidamente, como ocorreu com o comunismo. Os franceses acreditaram que a emancipação iria durar mais. Um historiador francês da cultura me contou que poucos dias depois da revolução chegou uma comissão da Grã-Bretanha porque estavam convencidos de que, se os cidadãos eram todos e eram iguais, não tinham por que vir a Paris para pedir licença para falar bem seu idioma ou fazer coisas que tinham a ver com seus costumes. E sabem o que fez Robespierre? Mandou cortar-lhes a cabeça. Se há um país centralista no mundo, a contradição das contradições, é a França.

Eu ouço e reflito. Podemos concordar ou não, mas o sujeito do progresso e do desenvolvimento é um sujeito que soma saber e poder. Por um lado, um saber técnico científico e, por outro lado, um poder baseado na propriedade privada que tem seu reflexo simbólico no dinheiro. Esse, para mim, é o sujeito da modernidade que constrói um modo de entender o progresso. Qual é o sujeito da emancipação?

O sujeito da emancipação tem, sem dúvida, junto com a precariedade dos intervalos, algo de saber e algo de poder.

Mas o que é saber e o que é poder a partir da concepção da emancipação?

É um tipo de saber menos pensado a partir do sujeito individual e mais a partir de um sujeito comunitário, ou seja, libertário. Um saber que está em função de que mais gente saiba. A emancipação, para mim, passa por um saber desligado do saber e do poder hegemônico. Porque há outros vocabulários, outros saberes, outras formas de poder. Porque para outros tipos de saberes é mais difícil fazer o gol de que o único poder é o econômico.

Pensando outra vez nos sujeitos da emancipação, penso-os como sujeitos situados em um âmbito concreto. O sujeito da emancipação é um sujeito genérico ou é um sujeito inserido em um lugar que o constitui de alguma maneira? Custa-me pensar em sujeitos genéricos.

A palavra sujeito é sua. Eu não a coloquei.

De acordo. Atores?

Bom. Mas faço a advertência, porque é o enredo no qual alguém se mete quando coloca a palavra sujeito. É uma palavra com uma ambiguidade terrível. Foucault tentou acabar com ela e Derrida fez também todo o possível.

Primeiro, porque na linguagem comum “sujeito” é quem está sujeito a outro. Ou seja, todo o contrário do que significa nobremente falando. Sujeito é sujeitado. Mas acontece que tem uma história filosófica que tem a ver com Descartes. Não é uma palavra que não existia antes, mas o sentido que nós damos a ela é o da modernidade: o sujeito moderno é um sujeito autônomo. É uma contradição nos próprios termos. Mas, bem... sujeito autônomo moderno. É isso. É o emancipado. Sujeito autônomo emancipado... aquele capaz de pensar com sua cabeça. Aquele capaz de tomar decisões que não sejam induzidas nem pelo costume, nem pelo poder.

É isso o sujeito moderno? Esse é o cidadão que acreditamos que existiu e que é o ideal para ter uma sociedade democrática, uma sociedade que respeita a diversidade, o que é difícil, que é contra a desigualdade, o que é muito mais difícil ainda. De maneira que a emancipação está aí: lutar contra a desigualdade, a favor da diversidade.

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