Aos 86 anos, d. Pedro Casaldáliga ainda enfrenta 'lobos' e fala de esperança

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Por: Cesar Sanson | 22 Junho 2014

Aos 86 anos, dom Pedro Casaldáliga segue enfrentando ameaças, o sistema político, o agronegócio, os impérios. Em nome da esperança, se apresenta como soldado de uma causa invencível.

A reportagem é de Sônia Oddi e Celso Maldos e publicada pela Rede Brasil Atual – RBA, 21-06-2014.

São Félix do Araguaia, nordeste mato-grossense, 10 de maio de 2014. Numa pequena capela, no fundo do quintal, uma oração inaugura o dia na casa do bispo emérito de São Félix, dom Pedro Casaldáliga. A simplicidade da arquitetura ganha força com o significado dos objetos ali dispostos.

No altar, uma toalha com grafismos indígenas. Na parede, um relevo do mapa da África Crucificada, um Cristo rústico no crucifixo, uma cerâmica de mãe que protege seu filho com um braço e carrega um pote no outro. No chão de cimento, bancos feitos de toras de madeira, que lembram aqueles de buriti, usados pelos Xavante, em uma competição tradicional, em que duas equipes se enfrentam numa corrida de revezamento, carregando as toras nos ombros, demonstração de resistência e força, qualidades de um povo conhecido por suas habilidades guerreiras. Cercada de plantas, a luz entra por todas as faces das tímidas e incompletas paredes. Nesse ambiente orgânico, assim como tem sido a vida de Pedro, os amigos se aninham para tomar parte da oração.

José Maria Concepción, companheiro de Pedro de longa data, e recém-chegado da Espanha, inicia a leitura:

“1795: José Leonardo Chirino, mestiço, lidera a insurreição de Coro, Venezuela, com índios e negros lutando pela liberdade dos escravos e a eliminação de impostos.

1985: Irne García e Gustavo Chamorro, mártires da justiça. Guanabanal, Colômbia.

1986: Josimo Morais Tavares, padre, assassinado pelo latifúndio. Imperatriz, Maranhão, Brasil”

Os martírios lembrados referem-se àquela data, 10 de maio. Inúmeros outros, centenas deles, são e serão lembrados ao longo de todo o ano, de acordo com a Agenda Latino-Americana. E continua: “2013: Ríos Montt, ex-ditador guatemalteco, condenado a 80 anos de prisão por genocídio e crimes contra a humanidade. A Comissão da Verdade calcula que ele cometeu 800 assassinatos por mês, nos 17 meses em que governou, depois de um golpe de Estado.”

O jovem padre Felipe Cruz, agostiniano, de origem pernambucana, conduz um canto, a reza do pai-nosso e a leitura de uma passagem da edição pastoral da Bíblia. O encerramento se dá com a Oração da Irmandade dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, escrita por dom Pedro, onde na última linha pode-se ler “Amém, Axé, Awere, Aleluia!”, em respeito à diversidade de crenças do povo brasileiro.

Em nome desse respeito, dom Pedro nunca celebrou uma missa na Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante, comunidade que desde sempre contou com o seu apoio na luta pela retomada da terra, de onde haviam sido deportados em 1968 e para onde começaram a retornar em 2004. “Se o bispo está aqui celebrando a missa, significa que nós estamos em pleno direito aqui. E, por orientação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da igreja da Prelazia, ele, pessoalmente, não fez nenhuma celebração na reserva”, testemunha José Maria.

Por apoiar a luta quase cinquentenária dos povos originários daquela região de Mato Grosso, Pedro foi ameaçado de morte algumas vezes. Na última, no final de 2012, quando o processo de desintrusão (medida legal para efetivar a posse) dos fazendeiros e posseiros da TI (terra indígena) Marãiwatsédé avançava e se efetivava, decorrente da determinação da Justiça e do governo federal, ele teve de se ausentar de São Félix.

Perseguições, ameaças de morte e processos de expulsão do país têm marcado a trajetória de Pedro, que chegou à longínqua região do Araguaia, como missionário claretiano, em 1968, aos 40 anos. De origem catalã, ele nasceu em 1928 – e aos 8 anos teve sua primeira experiência com o martírio, quando um irmão de sua mãe, padre, foi assassinado quando a Espanha estava mergulhada em uma sangrenta guerra civil.

A Prelazia de São Félix, uma divisão geográfica da Igreja Católica, foi criada em 1969 e abrange 15 municípios: Santa Cruz do Xingu, São José do Xingu, Vila Rica, Santa Terezinha, Luciara, Novo Santo Antônio, Bom Jesus do Araguaia, Confresa, Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte, Serra Nova Dourada, Alto Boa Vista, Ribeirão Cascalheira, Querência e São Félix do Araguaia. Atualmente, conta com uma população estimada em 135 mil habitantes, uma área aproximada de 102 mil quilômetros quadrados e 22 chamadas paróquias.

Pedro, em meio às distâncias, encontrou um povo carente, sofrido, abandonado, à mercê das ameaças dos grandes proprietários criadores de gado. Os pobres do Evangelho, a quem havia escolhido dedicar a sua vida, estavam ali.

Em 1971, pelas mãos de dom Tomás Balduíno (que morreu em maio último, aos 91 anos) foi sagrado bispo da prelazia. A partir de 2005, quando renunciou, recebeu o título de bispo emérito.

Um dos fundadores da Teologia da Libertação, o seu engajamento nas lutas dos ribeirinhos, indígenas e camponeses incomodou os latifundiários e a ditadura. Ainda hoje, incomoda os homens ricos e poderosos do Centro-Oeste brasileiro.

A política dos incentivos fiscais, levada a cabo pelos militares, por meio da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), foi o berço do agronegócio. E também dos conflitos advindos da expropriação da terra das populações originárias, da exploração da mão de obra, do trabalho escravo e toda sorte de violências, que indignou o missionário Pedro e o fez escolher do lado de quem estaria.

“O direito dos povos indígenas são interesses que contestam a política oficial”, diz dom Pedro. “São culturas contrárias ao capitalismo neoliberal e às exigências das empresas de mineração,  das madeireiras. Os povos indígenas reivindicam uma atuação respeitosa e ecológica.”

Em plena ditadura, nos anos 1970, fundou, junto com dom Tomás Balduíno, o Cimi e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, indígenas, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia. Ainda nesse período, em 1976, presenciou o assassinato do padre João Bosco Burnier, baleado na nuca quando ambos defendiam duas mulheres que eram torturadas em uma delegacia de Ribeirão Cascalheira (MT).

Pedro faz seções de fisioterapia algumas vezes na semana. Aos 86 anos, e com o Parkinson diagnosticado há cerca de 30, esse cuidado se faz necessário para minimizar os avanços do mal que provoca atrofia muscular e tremores. Ele segue disciplinadamente uma dieta alimentar, o que de certa maneira retardou, mas não cessou, segundo seu médico, o avanço da doença.

A disciplina se repete na leitura diária de e-mails, notícias, artigos, acompanhado mais frequentemente por frei Paulo, agostiniano,  que assim como dom Pedro tem sempre as portas abertas para moradores da comunidade e viajantes. Durante a visita da Revista do Brasil, por exemplo, há uma pausa para acolher Raimundo, homem alto, pardo, magro que, aflito, emocionado, de joelhos, pedia a sua bênção.

A casa é simples, de tijolos aparentes, sem acabamento nas paredes. Porém, tal como a capela no fundo do quintal, é plena de significados e ícones que atestam o compromisso com as causas humanas, de quem vive sob aquele teto.

Che, Jesus, Milton

No quarto, na salinha, na cozinha, no alpendre dos fundos, no escritório, um devaneio para os olhos e para o coração. Imagens de significados diversos: Che Guevara, Jesus Cristo, Milton Nascimento, padre João Bosco Burnier, dom Hélder Câmara, monsenhor Romero, Pablo Neruda. Textos de Martín Fierro, São Francisco de Assis, Joan Maragall, Exodus. Pôsteres da Missa dos Quilombos, da Romaria dos Mártires da Caminhada, da Semana da Terra Padre Josimo. Calendários da Guerra de Canudos, de operários no 1º de Maio. E ainda fotos, pequenas lembranças e artefatos populares, em meio a estatuetas de prêmios recebidos.

O seu compromisso com as causas populares extrapola as fronteiras do país. Em 1994, dom Pedro apoiou a revolta de Chiapas, no México, afirmando que quando o povo pega em armas deve ser respeitado e compreendido. Em 1999, publicou a Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba. Fala com convicção da importância da unidade latino-americana, idealizada por Simon Bolívar (1783-1830) e defendida pelo ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013).

“Eu dizia que o Brasil era pouco latino-americano, a língua comum dos povos castelhanos fez com que o Brasil se sentisse um pouco à parte do resto”, diz dom Pedro. “Por outro lado, o Brasil tem umas condições de hegemonia que provocava nos outros povos uma atitude de desconfiança. Hugo Chávez fez uma proposta otimista, militante, apelando para o espírito de Bolívar, com isso se conseguiu vitórias interessantes, como impedir a vitória da Alca.”

Ele recorda de um encontro com o ex-presidente brasileiro. “Quando Lula esteve na assembleia da CNBB, estávamos nos despedindo, ele se aproximou de mim e me deu um abraço. E eu falei, vou te pedir três coisas. Primeiro, que não nos deixe cair na Alca, segunda, que não nos deixe cair na Alca, terceira, que não nos deixe cair na Alca. Só te peço isso”, conta, em referência a Área de Livre Comércio das Américas, ícone do neoliberalismo.

“E realmente não entramos na Alca. Porque a América Latina tem de se salvar continentalmente, temos histórias comuns, os mesmos povos, as mesmas lutas, os mesmos carrascos. Os mesmos impérios sujeitando-nos, uma tradição de oligarquias vendidas. Tem sido sempre assim. Começavam com o império, o que submetia as oligarquias locais. Os exércitos e as forças de segurança garantiam uma segurança interesseira. Melhorou, inclusive os Estados Unidos não têm hoje o poder que tinham com respeito ao controle da América Latina. Somos menos americanos, para ser mais americanos.”

Esperança e diálogo

É preciso de todo jeito salvar a esperança, defende dom Pedro. “Insistir nas lutas locais, frente à globalização. Se somar as reivindicações, sentir como próprios, as lutas que estão acontecendo nos vários países da América Latina. El Salvador, Uruguai, Bolívia, Equador... Claramente são países muito próximos nas lutas sociais.”

Há tempos dom Pedro Casaldáliga não concede entrevistas pela dificuldade que tem encontrado em conciliar a agilidade do raciocínio com o tempo possível da articulação das palavras. A ajuda de José Maria, seu amigo e conterrâneo, foi fundamental para a compreensão das pausadas e esforçadas falas, enquanto discorria sobre assuntos por ele escolhidos.

Otimista com a atuação do papa Francisco, ressalta que “ele fez gestos emblemáticos, muito significativos”. “A Teologia da Libertação se sentiu respaldada por ele. Tem valorizado as Comunidades Eclesiais de Base, com o objetivo de uma Igreja pobre para os pobres. Estimulou o diálogo com outras igrejas... Chama a atenção nele o diálogo com o mundo muçulmano e com o mundo judeu, e agora essa visita a Israel... Muito significativa. Desmantelou todo o aparato eclesiástico, seus colaboradores tiveram de se adaptar.”

Ele reconhece as limitações que o sistema político impõe à atuação do governo, que segundo dom Pedro tem “um pecado original”: as alianças. “Quando há alianças, há concessões e claudicações. Enquanto esses governos todos se submeterem ao capitalismo neoliberal teremos essas falhas graves. A política será sempre uma política condicionada. Tanto o Lula como a Dilma gostariam de governar a serviço do povo mesmo, mas as alianças fizeram com que os governos populares estivessem sempre condicionados”. Para ele, deve haver uma “atitude firme, quase revolucionária”, em relação a temas como saúde, educação e comunicação.

Morto em março do ano passado, o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez é lembrado com determinação pelo religioso. “Ele tentou romper, rompeu o esquema. Por isso, a direita faz questão de queimar, queimar mesmo, a Venezuela. Nos diários e noticiários, a cada dia tem de aparecer alguma coisa negativa da Venezuela”.

Direitos indígenas x ruralistas

Ele aponta a “atualidade” da causa indígena, e as ameaças que não cessam. “Nunca como agora, se tem atacado tanto. Tem várias propostas para transformar a política que seria oficial, pela Constituição de 1988, que reconhece o direito dos povos indígenas de um modo muito explícito. Começam a surgir propostas para que seja o Congresso quem defina as demarcações das terras indígenas, sendo assim já sabemos como será a definição. A bancada ruralista é muito grande...”, observa dom Pedro.

Por outro lado, prossegue, nunca os povos indígenas se organizaram como agora. E o país criou uma “espécie de consciência” em relação a essa causa. “Se querem impedir que haja uma estrutura oficial com respeito à política indígena, tentam suprimir  organismos que estão a serviço dessas causas. Isso afeta os povos indígenas e o mundo rural . Tudo isso é afetado pelo agronegócio, o agronegócio é o que manda. E manda globalmente. Não é só um problema do Mato Grosso, é um problema do país e do mundo todo. As multinacionais condicionam e impõem.

“A retomada da TI Marãiwatsédé é bonita e emblemática. Os Xavante foram constantes em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados – esta é a palavra, eles foram deportados –, seguiram vinculados a esse terreno, vinham todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites. E reivindicavam sempre a terra onde estão enterrados nossos velhos. E foram sempre presentes”, testemunha. “Aqui, nós sempre recordamos que essa terra é dos Xavante, que esta terra é dos Xavante. Os moradores jovens, meninos, outro dia diziam – nossos vovôs contam que essa terra é dos índios, nossos papais contam que essa terra é dos índios.”

A essa altura, dom Pedro lembra de “momentos difíceis” em que o Cimi se vê obrigado a contestar certas ações do governo. “Quando se diz que não há vontade política pelas causas indígenas, eu digo que há uma vontade contrária ao direito dos povos indígenas, isso é sistemático. A Dilma, eu não sei se se sentisse um pouco mais livre, respaldaria as causas indígenas. Alguns pensam que ela pessoalmente não sintoniza com a causa indígena. Tem sido criticada porque nunca recebeu os índios. Faz pouco foi o primeiro encontro com um grupo.

Todos esses projetos de Belo Monte, as hidrelétricas. Se ela tem uma política desenvolvimentista, ela tem de desrespeitar o que a causa indígena exige: em primeiro lugar seria terra, território, demarcação, desintrusar os invasores. Seria também estimular as culturas indígenas e quilombolas”, diz, sem meio-termo. “Se você está a favor dos índios, você está contra o sistema. Não adianta colocar panos quentes aí.”

Dom Pedro defende a presença de sindicatos, mas critica o movimento. “Eles são a voz dessas reivindicações todas dos povos indígenas, do mundo operário. Na América Latina, estiveram muito bem os sindicatos, ultimamente vêm falhando bastante. Foram cooptados. Quando se vê um líder sindicalista transformado em deputado, senador, ele se despede”, afirma, vendo a Via Campesina como uma alternativa, por meio de alianças de grupos populares em vários países.

“Daí voltamos à memória de Hugo Chávez, que estimulou essa participação”, observa. “De ordinário acontece que antes as únicas vozes que os operários tinham eram o sindicato e o partido. Nos últimos anos, tanto o partido como o sindicato perderam representatividade. Em parte foram substituídos por associações, alguns movimentos. Mas continuam sendo válidos. Os sindicatos e partidos são instrumentos conaturais a essas causas do povo operário, camponês.”

Para fazer campanha eleitoral, todo candidato operário a deputado, senador, tem de “claudicar” em algum aspecto, acredita dom Pedro.  “Por isso, é melhor que não se candidate. Por outra parte, não se pode negar completamente a função dos partidos e dos sindicatos. Não é realista, ainda continuam sendo espaços que se deve preencher.”

Lúcido, Pedro conclui a conversa lembrando a frase de um soldado que lutava contra a ditadura franquista na Guerra Civil Espanhola: “Somos soldados derrotados de uma causa invencível”.

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