09 Mai 2014
Quem quiser entender Bergoglio, homem que sabe anunciar o Evangelho como Evangelho, deverá fazer um esforço para realmente compreender os pontos essenciais do seu ministério.
A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 08-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ao redor do Papa Francisco, há um consenso aparentemente ilimitado. Só pequenas franjas do conservadorismo extremo e poucos teólogos incontentáveis ousam levantar ressalvas explícitas sobre o seu modo de ser (para usar uma expressão do Pe. Milani) "um padre cristão". Para todos os outros, Francisco é o padre que gostariam de ter conhecido, para serem melhores cristãos ou para não terem deixado de sê-lo.
A admiração pelo papa não é incomum. Dois séculos de papolatria construíram um cerimonial rígido e superficial, do qual Bergoglio está bem consciente ("parole, parole, parole" [palavras, palavras, palavras], cantarola ele, imitando Mina, quando lhe dizem que pessoas ou mundos o apreciam). E não é incomum que, debaixo da grande e fina camada de conformismo que o aplaude, estão as resistências daqueles que, exibindo desenvoltamente a sua própria casa ou o seu próprio egocentrismo, querem demonstrar que é possível viver "etsi Bergoglius non daretur" (mesmo que Bergoglio não existisse).
Quem quiser entender esse homem que sabe anunciar o Evangelho como Evangelho, portanto, deverá fazer um esforço para realmente compreender os pontos essenciais do seu ministério: isto é (para usar os paradigmas cunhados por Dossetti para o Papa João XXIII), entender a sua solidão institucional, da qual a residência mudada é um sintoma, e não a cura; entender o seu consenso que influencia as suas decisões; e entender a sua cultura – como a "biblioteca" que Antonio Spadaro fez surgir na sua entrevista do ano passado ajuda a fazer.
Na realidade, Francisco é o homem de um livro só, o Evangelho. O Evangelho, como diz ele, para ser levado no bolso e para se ler no metrô. O Evangelho pensado como alimento de todos e para todos. O Evangelho sobre o qual ele prega de manhã, deixando que o encaixe entre o Evangelho do dia e a vida do auditório (os parlamentares italianos sabem disso, eles que saíram de uma pregação matinal desconjuntados pela consciência culpada deles). Evangelho que, no testamento do outro Francisco, o de Assis, tem uma "forma" em dialética com a "forma" da Santa Igreja Romana, e que este Francisco, o latino-americano, quer elevar como medida da instituição e da comunhão.
Mas Francisco se torna o homem de um livro só através dos muitos livros de uma biografia obscurecida pelos pegajosos estereótipos holográficos repetidos obsessivamente. Bergoglio é o primeiro papa que nunca rezou missa antes do Vaticano II: para ele, a tradição é a dos séculos restituídos à Igreja pelo missal de Paulo VI. É um padre construído pela paciência formativa da Companhia de Jesus: já que Bergoglio se torna padre aos 33 anos (Arrupe aos 29, por exemplo), portanto, ainda mais livre da ansiedade do desempenho apostólico.
Bergoglio é o primeiro papa que teve familiaridade com a psicologia, da qual foi professor: e que lhe permitiu olhar para a experiência humana e para as suas dilacerações com uma distância não só espiritual. E ensinou literatura com paixão, a tal ponto que, quando dialoga com o diretor da La Civiltà Cattolica, ele sabe construir um percurso no qual cada etapa, cada omissão, cada escolha tem um sentido.
Não há Eric Pryzwara, o jesuíta autor de um comentário dos Exercícios Espirituais que deveria ter sido o assunto do doutorado de Bergoglio e cuja teologia da troca ("admirável commercium") é uma das possíveis vias da renovação teológica, como mostrou Giuseppe Ruggieri; mas há os Exercícios de Santo Inácio como tais.
Não há o livro sobre a Reforma do papado de Dom John R. Quinn, bispo de San Francisco, que, por causa daquelas teses pronunciadas pela unidade das Igrejas, sofreu suspeitas que um leitor ávido por aquele panfleto como Bergoglio poderia hoje ressarcir; mas há as Meditações sobre a Igreja de De Lubac, publicadas em 1953, quando a repressão teológica seguida à encíclica Humani generis havia começado.
Há os clássicos da cultura humanista como Virgílio e Manzoni, mas também aqueles autores da literatura argentina e da poesia, que surpreenderão alguns, porque não obedecem ao estereótipo católico-vitoriano da literatura "edificante".
Como Jean-Pierre Jossua ensina há muito tempo, a literatura interessa ao teólogo não porque escreve sobre Deus ou sobre os santos, mas porque escava no humano e cria uma cavidade na qual o homem do Evangelho que é Bergoglio coloca o Evangelho.
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Bergoglio, o homem de um livro só: o Evangelho. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU