“A minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro”

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Por: André | 01 Junho 2012

Diego Tatian, filósofo, pesquisador do Conicet e decano da Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Nacional de Córdoba, escreveu vários livros dedicados a Baruch Spinoza (1632 - 1677). Agora acaba de ser publicado o último: Spinoza, o dom da filosofia (Colihue). Trata-se de uma série de artigos que, em sua maioria, provêm dos “Colóquios Spinoza” realizados em Córdoba desde 2004, com uma sólida convocatória nacional e internacional, e dos quais Tatian é o principal impulsionador. A questão da comunidade, o dom e a linguagem que perpassam estes textos, têm um perfil estritamente político: são chaves da crítica à dominação e à obediência, e abertura de um pensamento de radicalização democrática. Neste ponto, o debate com certa interpretação do republicanismo se torna uma aresta importante de um pensamento que é fundamentalmente não liberal.

A entrevista é de Veronica Gago e publicada no jornal argentino Página/12, 21-05-2012. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você reivindica o “valor de uso” da filosofia de Spinoza. Concretamente, que chaves este filósofo oferece para pensar o que significaria uma radicalização democrática hoje?

Na minha opinião, Spinoza convida a pensar a democracia como manifestação, incremento, abertura, composição imprevista de diferenças, e nunca como bloqueio do desejo pelo procedimento. Democracia significa em seu pensamento um regime no qual a Constituição, as leis e os procedimentos são instituições forjadas pela vida popular, pelas lutas sociais e a experiência coletiva, que deste modo é sempre autoinstituição. Trata-se de uma noção que nunca pressupõe a desconfiança da potência comum, a inibição pelo medo, nem a despolitização do corpo coletivo para o seu controle.

Esse sujeito coletivo, de massa, é então o protagonista democrático...

A “multidão” spinozista é democrática num duplo sentido: por um lado, como designação de um poder popular, uma potência inalienável e intransferível, um direito em ato constitutivo da realidade social; por outro lado, multidão democrática significa preservação das diferenças que a constituem por natureza, resistência à uniformidade; multiplicidade sem centro que não admite nunca ser reduzida à unidade; conflito irrepresentável que produz institucionalidade, dando-se a si mesma uma forma viva. Por isso, a liberdade de pensar e manifestar o pensamento tem em Spinoza um núcleo democrático, não liberal.

Qual é a potência dessa figura que é no fundo irrepresentável?

A multidão não é o poder do número, nem o exercício imediato da força, mas (e Cecilia Abdo Fereza escreveu um trabalho muito lindo sobre isto) fundo barroco irrepresentável, nunca pleno, nem completo, nem totalizável, do qual emergem figuras indeterminadas e transitórias, impossíveis de traduzir em termos de dominação da maioria sobre as minorias. Trata-se do inconsistente, embora esconda a novidade e a invenção. Creio que estes elementos proporcionam uma importante inspiração teórica para pensar e construir a democracia na América Latina.

O que implica o fato de que não se possa pensar uma teoria política despojada de uma teoria das paixões?

Há política porque a vida humana é apaixonada; de outro modo não seria necessária, nem a ética; esse reconhecimento é o princípio da conversação coletiva dos seres humanos sobre si mesmos, e as ações políticas, tanto como as ideias filosóficas, a literatura, a arte, produzem, no mundo das paixões, alianças, desvios e elaborações que, sem suprimi-las, dotam-nas de uma direção e abrem a possibilidade de uma vitalidade não destrutiva. O horizonte da política seria um crescente aumento da potência coletiva, que não obstante preserva a multiplicidade de singularidades em equilíbrio e envolve uma trama de afetos entre os quais há um, de muito difícil tradução, que Spinoza chama “hilaritas”.

Que significado tem?

Podemos defini-la como uma alegria integral que não pode ter excessos; um afeto resultante do viver em comum democrático, forma de ser uns com os outros que não pressupõe uma despotencialização dessa multiplicidade, nem um sacrifício do direito natural para a sua preservação e sua paz, mas que, essa paz, resulta de uma circulação ininterrupta de afetos e de conceitos que estabelecem reciprocidades complexas.

Você assinala a importância do realismo na política e em particular como base das instituições democráticas. O que entende por realismo e com que perspectiva está discutindo?

É muito importante desmarcar a democracia do idealismo que postula por princípio do pensamento uma representação de como os seres humanos deveriam ser (racionais, virtuosos, solidários, austeros, justos), para tomar em conta o poder das paixões sobre a vida humana. Despojada deste legado maquiavélico, a democracia seria impotente e frágil. Isso não quer dizer que os indivíduos e as sociedades estejam condenados às paixões assim como irrompem imediatamente. Esta perspectiva permite uma ideia de República não sacrificial.

Em que sentido?

Enquanto o consenso não for pensado como anulação das diferenças, nem a instituição como supressão do conflito, nem a liberdade seja o dízimo a pagar pela obtenção de segurança. Diferença e consenso, conflito e instituição, liberdade e segurança permanecem termos não cindíveis, abertos a um trabalho do pensamento e das práticas sociais. Esta maneira de pensar procura não contrapor as noções de República – conjunto de instituições que conferem uma forma à vida social – e democracia – palavra que designa o mundo dos desejos, das paixões e dos anseios dos setores populares –, mas que mostra antes sua implicância mútua.

É um uso diferente do republicanismo moral de certos discursos políticos.

Na atual discussão argentina costuma-se recorrer à palavra República, ao contrário, como palavra de ordem e bloqueio de qualquer transformação social. É necessário disputar esse termo, recordar uma proveniência antiga que não separa a República dos litígios sociais (Eduardo Rinesi tem textos importantes a este respeito) e resgatá-la da acepção vazia que a reduz apenas ao império da lei.

Você traduz a noção de utilidade de Spinoza como “desejo de outros”. Que tipo de flexão representa em relação à clássica ideia de utilidade como benefício individual?

O conceito de “utilidade” é um conceito que chega a Spinoza do estoicismo; nada tem a ver com o autointeresse, nem remete à ideia de um indivíduo possessivo, nem à antropologia do egoísmo. A utilidade spinozista tem sempre uma dimensão coletiva porque remete a uma teoria da potência singular, com a qual define a essência mesma do homem, cujo desenvolvimento e plenitude não pressupõem a impotência de outros, mas o contrário: tanto mais se realiza quanto mais comum for. Creio que o spinozismo permite substituir o apotegma liberal que reza “a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro”, por este: “A minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro”. Seria esta uma expressão muito precisa do que Spinoza entende por “utilidade”.

Assim a “utilidade” está muito vinculada à liberdade.

A liberdade é o lugar do outro. A singularidade é o lugar do outro, é aberta ao mundo, afetada e constituída pela exterioridade. Por isso é que também a relação consigo mesma é política. O autofechamento do desejo é a forma última da dominação, efeito de uma ativação ideológica do medo. Se o habitante da ilha solitária tivesse sido um spinozista e não um hobbesiano como Robinson, a pegada na praia não lhe teria motivado angústia pela iminência do outro, nem provisões para custodiar suas propriedades, mas seguramente um desejo de encontro, curiosidade, paixões de companhia.

Você escreve o seguinte: “Uma organização democrática e livre nunca exige nada contra a natureza”. Como pensaria a partir daqui os atuais conflitos pela exploração de recursos naturais?

Essa frase tem a ver em primeiro lugar com a natureza humana. A democracia é a forma de vida coletiva mais natural porque preserva e estende a liberdade de pensar, de falar, de fazer, e não exige uma anulação da multiplicidade humana (a natureza é a mesma para todos e ao mesmo tempo se expressa de maneira diversa). A democracia não prejudica nem exige uma repressão dessa natureza, mas que a expressa, a emenda, a expande, a prolonga em formas criativas, enquanto aventura coletiva para seres humanos de carne e osso, não para anjos. Ao mesmo tempo, hoje, deve incorporar à sua reflexão e ao seu âmbito não apenas o que tem a ver com a relação humana, mas também a relação com a natureza e os recursos de que nos valemos para manter a vida. A natureza deixou de ser um objeto apenas de intervenção técnica que pode ser ilimitadamente saqueada para proveito humano; a relação com ela torna-se também política. Reconhecer ou restituir direitos às formas de vida não humanas, à natureza como um todo, é uma urgência à qual a democracia deve estender seu significado e incorporar às suas lutas. A humanidade não está no centro, o resto dos seres não são propriedades suas das quais pode dispor ao seu bel prazer, a natureza não tem centro, nem é hierárquica.

Por que propõe a prudência e a cautela como qualidades políticas?

A prudência é uma virtude que protege tudo o que é radical, transformador, ou simplesmente raro, das ameaças às quais estaria exposta em um mundo no qual os poderes fáticos, e também um conservadorismo de senso comum, reagem contra a força embrionária das coisas novas ali onde aparecem; contra as ideias, as experiências e as iniciativas das quais pode brotar a diferença. Isto era assim no século XVIII, ao qual ainda não havia chegado o espírito voltaireano de um enfrentamento aberto com o trono e o altar sob o modo da provocação, do desafio direto e da manifestação imediata das ideias.

E na atualidade?

Na minha opinião, a prudência volta a se tornar necessária para uma cultura política de esquerda depois do desastre dos chamados “socialismos reais”, das ostentações de força das organizações revolucionárias nos anos 1970, cuja imprudência teórica, política e militar não foi irrelevante no processo de aniquilação de que foram objeto. A prudência não é inação, nem temor; é o registro lúcido do que há, o que ampara a práxis política de sua malversação, uma maneira de enfrentar a adversidade, um vínculo com os outros adversos não mediados pela destruição, mas pelo trabalho, uma paciência que cuida do que quer nascer, ou acaba de nascer. A cautela é a potência do raro.

O dom e a generosidade são dimensões que se reiteram em sua leitura. Como se vinculam com a prática intelectual?

O trabalho intelectual tem por matéria as ideias e as palavras; muitas delas – a imensa maioria – nos foram legadas, podem ser muito antigas, foram pensadas e pronunciadas por homens e mulheres de outros tempos ou de outros lugares. Nesse sentido, a cultura é um dom que permite um trabalho: o trabalho de contribuir para pensar e dizer coisas novas, ou coisas velhas de outro modo. A generosidade adota um sentido político – para além de seu significado imediatamente econômico e de sua aceitação ética – quando a prática intelectual se detém em dramas sociais imediatos ou em singularidades remotas e coisas às vezes muito minoritárias, de maneira não recíproca, sem perder nunca um sentido tribal, uma aspiração de comunidade, e uma motivação real nos seres com os quais compartilhamos o tempo. A generosidade assim compreendida é também uma maneira de preservar as ideias de sua captura pela mercadoria e sua inundação em uma rotina dominada unicamente pela relação custo/benefício. O pensamento e o trabalho intelectual estão sempre ameaçados por tentações burocráticas, que no meu modo de ver as coisas avançam quando os outros, as pessoas, desaparecem do seu horizonte de sentido.

Você acredita que a filosofia política que se assenta na democracia, na diferença, no reconhecimento e na igualdade devem enfrentar também a questão do trabalho e da chamada “economia”? Ou considera que este é um terreno viciado pelo modo como o tratou o marxismo economicista?

O mundo do trabalho e da economia se apresentam como campos abertos à compreensão e à transformação; é um terreno que não deve ser abandonado, tampouco cedido àqueles que querem fazer crer a inexorabilidade do capitalismo, nem a preguiça economicista dos que repetem consignas inflexíveis, independente do acontece no mundo. A economia não é regida por leis naturais diante das quais devemos nos render; é um fato social, fruto de uma imaginação coletiva para organizar a vida em sociedade que poderia ter sido outra, e que pode ser outra.

Sob que premissas?

A economia é uma dinâmica de interesses que deve estar subordinada à política e, como tudo, ao pensamento humano; expressão com a qual não me refiro a nenhum saber técnico, competente ou especializado, mas todo o contrário. O que são a riqueza, a propriedade, o dinheiro, o trabalho, o produto do trabalho? A renovação da pergunta por estes conceitos, em contiguidade com as transformações empíricas que se produzem no mundo da vida pública, deve levar muito a sério o colapso das cidades e do estrago que o regime capitalista produz na natureza e nos recursos naturais. É esta talvez a maior tarefa que temos pela frente: pensar uma economia contra a acumulação, que permite a todos trabalhar, e a todos trabalhar menos.

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