O crack avança nos canteiros e corrói empregos e sonhos dos operários do PAC

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28 Fevereiro 2012

A notícia começou a circular ainda com ares de boato no início tarde do dia 28 de dezembro. Foi ganhando força ao entardecer e quando a noite caiu sobre o lamacento povoado de Jaci Paraná, a 100 quilômetros ao Sul de Porto Velho (RO), tornou-se uma verdade assustadora mesmo para uma região tão acostumada à violência. Uma família inteira de cinco pessoas, entre elas uma mulher grávida de quatro meses e uma menina de apenas cinco anos, havia sido brutalmente assassinada. Não era um crime comum. Mãe e filha haviam sido violentadas e torturadas antes de morrer. Os homens - o pai e dois de seus primos - tiveram os braços e as pernas quebrados para que coubessem com mais facilidade nas covas rasas. Todos foram degolados.

A reportagem é de Yan Boechat e publicada por iG, 27-02-2012.

Naqueles dias tensos às vésperas da virada do ano, os moradores de Jaci Paraná se deram conta de que a relação que o povoado tinha com o tráfico e o consumo de drogas havia mudado de patamar. Desde o início das obras da Usina Hidrelétrica de Jirau o consumo de crack vem crescendo de forma constante nesse distrito de Porto Velho com cara de cidade. Jaci Paraná nasceu há exatos 100 anos por conta da faraônica construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Distante apenas 20 quilômetros do principal canteiro de obras da usina hidrelétrica, a cidade é uma espécie de parque de diversões dos quase 20 mil trabalhadores que estão construindo as mais modernas usinas hidrelétricas do Brasil. Em seu núcleo central, composto por três ruas de 700 metros de comprimento cortadas por seis perpendiculares, contam-se exatos 62 prostíbulos, 18 salões de beleza e cinco igrejas.

Foi no ano passado que o frágil equilíbrio que rege um universo calcado em sexo, álcool e drogas começou a sair de órbita. Pequenas cracolândias bem ao estilo paulistano começaram a aparecer. Logo cenas de craqueiros sujos, quase zumbis, catando latas pelas ruelas barrentas ou vivendo nas ruínas da ferrovia foram sendo incorporadas ao cotidiano de Jaci. “O consumo de crack começou a crescer muito, muito mesmo, tanto entre os funcionários da hidrelétrica quanto entre os moradores de Jaci”, diz Ademir Ferreira, diretor do Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas (Caps-AD) de Porto Velho. “De cada 10 pacientes que temos, oito são dependentes de crack e essa proporção tende a aumentar”, afirma ele, que desde abril passou a levar a equipe da Caps para visitas bimestrais ao distrito.

A chacina de Jaci, como ficou conhecida a matança do final de ano, apenas cristalizou uma certeza: o crack havia saído de controle no entorno de uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, orçada hoje em R$ 15 bilhões. Em Jaci todos sabiam que família assassinada era chefiada por um traficante que havia se instalado na região havia pouco tempo. Antes mesmo de a polícia finalizar as investigações e concluir que o autor do crime era um soldado da Polícia Militar local ligado a outros traficantes, não havia quem duvidasse de que as mortes eram fruto da disputa por um mercado formado por um exército de homens que foram buscar emprego e melhoria de vida em canteiros de obras na amazonia.

Sexo e Crack

R.F. não tem idade para trabalhar em Jirau. Fez 14 anos há pouco e não fosse a voz que insiste em dançar descontrolada entre os graves e agudos, poderia se passar até por um pré-adolescente. O corpo esquálido, sempre enfiado em calças justíssimas, reforça a impressão de que é quase uma criança. Ele não brinca muito e de estudar desistiu quando começou a voltar para casa com os primeiros raios de sol. “Passo a noite toda fumando, fumo uma pedra e quero mais, mais e mais”, diz ele, que experimentou o crack pela primeira vez há três anos. “Ai só paro de manhã, quando o pessoal volta pra usina e vou dormir”.

Para conseguir dinheiro para comprar as pedras de crack, vendidas a R$ 10 em Jaci Paraná, R.F. se prostitui. Seus clientes, quase sempre, são os operários das empresas que estão construindo a Usina de Jirau. “Faço programas com gente de tudo quanto é empresa”, conta, com a naturalidade de quem vive em um lugar conhecido como o maior bordel ao ar livre da Amazônia. O adolescente cobra R$ 20 o programa e o faz entre as frondosas árvores amazônicas que cobrem os últimos trilhos que restaram da Madeira-Mamoré, numa região conhecida como Trilhal, um dos pontos de encontro dos usuários de crack de Jaci Paraná. Ele frequenta o Trilhal muitas vezes na companhia de duas tias, também viciadas e que também se prostituem para conseguir dinheiro para comprar a droga.

Os haitianos de Jirau

R.F. faz parte de um novo tipo de usuário de crack em Jaci Paraná. Até pouco tempo, o consumo estava restrito basicamente aos funcionários das usinas, prostitutas que migraram para lá no início das obras e moradores ribeirinhos que foram remanejados de áreas rurais para o núcleo urbano por conta dos alagamentos inerentes à construção das barragens. Agora, no entanto, o crack vem se alastrando pela população juvenil rapidamente. “Para não exagerar, ao menos 10% dos adolescentes entre 12 e 18 anos de Jaci Paraná já são dependentes químicos da pedra”, diz Hélia de Jesus Bernardes, conselheira tutelar da Infância e da Juventude local. “Essa é uma conta conservadora, a coisa simplesmente saiu de controle e está crescendo”, diz ela, pouco depois de levar, ao posto de saúde, um adolescente que diz querer largar o vício.

Sorte de mãe

Essa é a conta também de um executivo de uma das empresas que constroem a usina e que conhece o canteiro de Jirau de perto. Pelas suas estimativas, ao menos 10% dos homens que estão construindo a usina hidrelétrica que terá capacidade de abastecer mais de 10 milhões de casas são dependentes ou usuários de crack. “É impressionante”, afirma o engenheiro, que prefere não ter o nome e o cargo revelados.

“É muita gente da usina, gente demais que vem fumar pedra aqui. Tem dia que recebo tantos convites que nem sei pra onde ir”, diz Oseas Salgueiro, o Sassá, viciado em crack de Jaci que funciona como uma espécie de intermediário entre os homens que estão alojados nos canteiros de obras e os traficantes locais.

Sassá tem 22 anos, mas aparenta muito mais. Sua pele é manchada por pequenas marcas negras, que parecem cicatrizes criadas por espinhas que infeccionaram e demoraram muito tempo para secar. Seu cabelo tem falhas e os quatro dentes incisivos centrais da arcada superior já se foram. Preso duas vezes por porte e tráfico de drogas, Sassá é um homem bem humorado que, como quase todos os viciados em crack, vive exclusivamente para a droga. “Na minha casa, dos 12 irmãos, só três estão na pedra. Minha mãe tem sorte”, diz ele, rindo.

Sobreviventes do crack

Para conseguir dinheiro para comprar a droga faz o que chama de “correria”, principalmente para os funcionários mais graduados da usina. “Encarregados sempre me procuram, às vezes, até engenheiros. Passam o dia fumando aqui no Trilhal e ainda levam pro canteiro”, afirma. “Teve uma vez que fiquei mais de dois meses, fumando sem parar, sem ir em casa, com um cara da usina que recebeu a rescisão por ter sido demitido”, conta, rindo e lembrando que sua mãe mora a menos de um quilômetro dessa cracolândia amazônica.

Sanções trabalhistas

Na Camargo Corrêa, funcionário encontrado com crack é demitido. “Sempre tem gente sendo pega lá, semana passada mesmo eu flagrei um com um cachimbo do lado do alojamento”, afirma um guarda patrimonial que trabalha dentro do canteiro de obras de Jirau e faz bico de segurança em Jaci Paraná. “Não tem conversa, está com crack a gente já leva pro departamento de demissão e chamamos a polícia”. Procurada pela reportagem, a Camargo Corrêa enviou uma nota informando que “todo profissional, ao ser contratado, passa por uma sensibilização em relação a dependência química e é alertado que, de acordo com as normas da empresa, o porte de drogas não é permitido de forma alguma no ambiente de trabalho, sendo considerado infração grave sujeita a sanções trabalhistas e penais.”

O problema é que muitos dos migrantes que foram tentar a sorte no canteiro de obras perdem o emprego, mas não largam o vício. “Muitos desses trabalhadores demitidos já estão dependentes e nem conseguem voltar para casa, ficam por aqui mesmo e acabam com o dinheiro da rescisão em dias, só consumindo crack”, diz Alda Lopes, diretora do Centro de Referência em Assistência Social de Jaci Paraná. “Antes ainda tinham algum tipo de respeito, mas agora, que vivem por aí, fumam em qualquer lugar, não se preocupam mais, já perderam tudo mesmo.”

Essa é a história dos irmãos José Aparecido, de 30 anos e de José Paulo, de 31 anos. Naturais de Catanduva (SP), os dois foram trabalhar como armadores na construção da Usina de Jirau há dois anos. Em pouco tempo passaram a usar crack. Primeiro nos finais de semana, em Jaci Paraná. Depois nos canteiros de obras. Flagrados fumando, foram demitidos. Com o dinheiro da rescisão esbaldaram-se por uma semana, até que tudo se foi. Hoje, vivem com cerca de outros 15 usuários de crack sob as arquibancadas de madeira do único campo de futebol de Jaci Paraná. “É nossa pequena cracolândia, já foi muito maior, mas a polícia deu bafão aqui depois da matança, bateu na gente, e aí um povo foi morar lá para o Trilhal”, afirma José Aparecido.

As arquibancadas eram a principal cracolândia de Jaci Paraná até o início do ano. Mas com a repercussão da chacina, cometida por um soldado do próprio batalhão que faz a segurança do distrito, a polícia decidiu por reduzir o movimento. “Em época de pagamento das empresas isso aqui parecia dia de jogo de futebol, lotava essa arquibancada”, conta Oscar, um amazonense que chegou a Jaci há dois anos para trabalhar em uma madeireira e, como os irmãos paulistas, também perdeu o emprego após viciar-se em crack. “Comecei nos fins de semana, nas folgas, e logo parei de trabalhar”, diz ele, que deixou mulher e três filhos na periferia de Manaus. “Mas agora só sobramos nós, o resto se embrenhou no meio do mato”, diz Alberto Vargas, o Baiano, outro viciado em crack, outro ex-funcionário de Jirau e agora mais um morador da cracolândia da arquibancada.

Barro molhado


Jaci Paraná é um lugar simples. Nessa época em que chove quase todos os dias na Floresta Amazônica, uma lama vermelha toma conta de tudo: das ruas, dos carros, das casas, das roupas. De longe, o tom ocre do barro molhado contrasta com o azul escuro das nuvens sempre carregadas e com o verde das matas que ainda restam nessa região marcada pelo encontro dos rios Jaci e Madeira. Desde que a Usina de Jirau começou a ser construída, houve uma explosão demográfica nesse antigo ponto de parada da Madeira-Mamoré.

Aos 4 mil habitantes que viviam ali da pesca e da agricultura de subsistência, em quatro anos somaram-se outros 16 mil que vieram tentar a sorte na esteira da grande obra. Como quase sempre acontece, Jaci não foi preparada para a invasão de prostitutas, cafetões, operários, comerciantes e toda sorte de aventureiros que sempre surgem em situações como essas. “Não houve nenhuma preparação e toda a sociedade ficou desestruturada. Prometeram muito, mas pouco fizeram. Continuamos sem saneamento básico, sem uma estrutura de saúde”, diz Maria da Silva Pereira, agente de Saúde da Família e professora do ensino básico de Jaci Paraná, que vive ali há quase duas décadas.

Hoje, Jaci é um amontoado de ruas esburacadas e lamacentas, com pouquíssimos equipamentos públicos. Tem um posto de saúde que faz as vezes de pronto socorro, duas escolas públicas e um centro administrativo. No mais, não há sequer um representante direto dos governos federal ou estadual. “Aqui nós não temos condições de atender o viciado”, afirma Adriana Soares da Silva, diretora do posto de saúde da família de Jaci Paraná, única unidade de saúde num raio de quase 100 quilômetros. “O que fazemos é dar o tratamento básico quando alguém está tendo uma overdose ou quando se envolve em uma confusão”, diz. “A demanda cresceu demais desde a chegada das usinas, não conseguimos nem atender toda a população de forma eficaz”.

Quando foram assinados os contratos dos consórcios que venceram as licitações para construir as usinas do Complexo do Madeira – Jirau e Santo Antônio, essa distante apenas 20 quilômetros de Porto Velho – ficou acertado que cerca de R$ 400 milhões seriam investidos em compensações sociais na região. Em Jaci, a Energia Sustentável do Brasil, consórcio responsável pela construção de Jirau, ampliou o posto de saúde, fez obras de reformas na escola municipal e construiu o centro administrativo da comunidade, além de ceder uma área onde a polícia militar está instalada.

Mas boa parte do investimento foi destinado a uma cidade modelo construída a apenas 10 quilômetros do canteiro de obras. Para lá foram levados parte dos moradores da localidade de Mutum-Paraná, que será totalmente alagada quando a usina estiver pronta. Nessa cidade cuidadosamente planejada e curiosamente sem árvores, estão instalados também os engenheiros mais graduados da Camargo Corrêa e da Energia Sustentável do Brasil (ESBR). Apesar da proximidade com o canteiro de obras, não há prostíbulos nem cracolândias em Nova Mutum Paraná.

Pedido de ajuda

A Energia Sustentável do Brasil é um consórcio liderado pela empresa francesa Suez. São ainda sócias no empreendimento a Eletrosul, a Chesf e a própria Camargo Corrêa. Boa parte dos R$ 15 bilhões que estão sendo gastos na construção da usina – a qual o consórcio terá o direito de explorar por 35 anos –, vem de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. O Banco já autorizou o empréstimo de R$ 7,5 bilhões – o maior de sua história. A ESBR pleiteia um crédito adicional de R$ 2,5 bilhões para ampliar a capacidade de geração de Jirau. A Energia Sustentável do Brasil recusou-se a dar declarações sobre essa reportagem ao iG. Por meio de sua assessoria de imprensa, informou que problemas com drogas dentro do canteiro de obras são de responsabilidade da Camargo Corrêa. Fora dele, da prefeitura de Porto Velho.

A única ação da prefeitura de Porto Velho para conter, ou ao menos amenizar, o avanço do crack na região de Jirau é o envio bimestral da equipe do Caps-AD. Por apenas dois dias a cada dois meses, Ademir segue com um psiquiatra, uma psicóloga, uma assistente social e um assistente administrativo para Jaci Paraná. Instalam-se no posto de saúde e ali aguardam a chegada de viciados que estejam dispostos a buscar tratamento. É um trabalho reativo que, reconhecem os próprios profissionais, tem poucos efeitos práticos. “Estamos só raspando a pontinha do iceberg, há um número imenso de dependentes dentro das usinas com os quais não temos contatos, além daqueles que já estão em estado de total dependência aqui em Jaci e que não querem ajuda”, diz Bernardo Melo, o psiquiatra do Caps.

Ana Lúcia Rueda quer ajuda. Morando há três anos em Jaci Paraná, há poucos meses ela entrou em uma espiral de decadência que a fez perder a filha, de pouco menos de dois anos, e a dignidade. “Tive que entregar minha menina pra minha mãe, senão o conselho ia levar, e agora ela não me deixa mais ver a menina”, diz ela, que chega a fazer programas por até R$ 10 para conseguir comprar crack. Com 24 anos, Ana Lúcia foi para Jaci para ser uma das centenas de prostitutas que tem nos trabalhadores da usina uma clientela regular. Experimentou o crack com um barrageiro, como são conhecidos por lá os operários. Em pouco tempo estava fumando todo fim de semana, depois todas as noites e, por fim, o tempo todo. Foi expulsa do prostíbulo no qual trabalhava e hoje vive sob as arquibancadas do campo de futebol. “Quero parar porque quero ver minha filha, mas sozinha não consigo”, diz Ana. Ela nunca procurou o apoio, nem recebeu a visita, de um profissional do Caps.

O pedido de ajuda de Ana Lúcia é o mesmo do de Hélia Bernardes, a conselheira Tutelar da Infância e da Juventude de Jaci Paraná. “Sozinhos nós não conseguiremos fazer nada, precisamos de ajuda do poder público”, diz ela. “Não temos nada aqui e sem apoio a coisa só vai piorar”.

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