Vale: novos conflitos em Moçambique. Entrevista especial com Jeremias Filipe Vunjanhe

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26 Janeiro 2012

“Diante das reivindicações das famílias, os governos Distrital de Moatize e Provincial de Tete têm se posicionados como porta-vozes da Vale defendendo interesses desta companhia em detrimento do seu povo”, denuncia o jornalista.

Confira a entrevista.


“Dividir para reinar”. É assim que os cidadãos moçambicanos interpretam o reassentamento de aproximadamente 1313 famílias decorrente da conclusão da primeira fase do projeto de mineração da Vale no Distrito de Moatize, Província central de Tete. A instalação da mineradora brasileira em Moçambique tem gerado polêmica e diversos conflitos entre o governo e os órgãos de direitos humanos locais. Representando as comunidades reassentadas, a Justiça Ambiental submeteu uma Carta Queixa e uma petição à Comissão dos Assuntos Sociais, Gênero e Ambiente da Assembleia da República, mas as ações “foram ignoradas”, segundo o jornalista Jeremias Vunjanhe.

Vunjanhe participa da campanha de monitoria do projeto de mineração da Vale e, na semana passada, visitou as famílias reassentadas durante três dias. Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ele diz que a situação das pessoas que foram realocadas para outros bairros da região “é péssima e revoltante. (...) Há dificuldades de acesso à água potável, energia, transporte, serviços básicos como escolas e saúde, acesso à terra arável para agricultura. De fato estas famílias estão passando fome aguda e estão vivendo em precárias condições por causa do deslocamento em função do projeto da Vale, que não tem honrado com os seus compromissos”.

Para a ele, a situação é ainda mais grave porque o governo conhece a situação das famílias e utiliza a força policial para conter os protestos e reivindicações. “De acordo com a informação obtida, o Comandante da Polícia da República de Moçambique - PRM e o seu batalhão, incapazes de dispersar os reassentados, ordenaram a vinda da Força de Intervenção Rápida - FIR para Cateme. (...) Durante a sua intervenção, a FIR fez rusgas às casas, arrombando portas com pontapés e agredindo várias pessoas. 14 jovens foram capturados e encarcerados, durante cerca de três horas no Posto Policial local. Mais tarde, cinco dos detidos foram soltos e os outros nove, foram transferidos para as celas da cadeia da Carbomoc, na Vila de Moatize, onde permaneceram durante dois dias e duas noites sem alimentação adequada e submetidos a torturas e maus tratos por agentes da PRM. Só foram libertados no dia 12, após intervenção da Procuradoria. Dois dos detidos apresentam ferimentos nas nádegas e sinais de vários golpes no corpo”, relata.

Jeremias Filipe Vunjanhe é jornalista graduado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Modlane de Maputo, Moçambique. Atualmente é coordenador da Área de Mídia da Justiça Ambiental e da campanha de Monitoria do Projeto de Mineração da Vale em Moatize.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quantas famílias já foram reassentadas  em função dos projetos de Mineração da Vale na Província da Tete?

Jeremias Filipe Vunjanhe - A primeira fase do Projeto de Mineração da Vale no Distrito de Moatize, Província central de Tete, já reassentou cerca de 1313 famílias, o equivalente a sete mil pessoas. 717 famílias classificadas pela Vale como sendo rurais foram reassentadas na região de Cateme, há aproximadamente 40 quilometros da Vila de Moatize e 60 quilometros da cidade de Tete. Outras 596 famílias consideradas urbanas pela empresa foram reassentadas no Bairro 25 de Setembro, nos arredores do município de Moatize. Segundo Thomas Selemane (2011), investigador do Centro de Integridade Pública, a divisão das 1313 famílias reassentadas em rurais e urbanas é considerada por setores da sociedade moçambicana como uma estratégia da companhia brasileira que tem como objetivo “dividir para reinar”.

IHU On-Line – Qual a situação das famílias que estão vivendo no bairro 25 de Setembro e em outros bairros da região?

Jeremias Filipe Vunjanhe - Cerca de 596 famílias reassentadas pela vale no Bairro 25 de Setembro, nos arredores da Vila de Moatize. A situação e a condição de vida destas famílias é péssima e revoltante, semelhante a das pessoas que estão na região de Cateme. Falta tudo neste bairro. Há dificuldades de acesso à água potável, energia, transporte, serviços básicos como escolas e saúde, acesso à terra arável para agricultura. De fato estas famílias estão passando fome aguda e estão vivendo em precárias condições por causa do deslocamento em função do projeto da Vale, que não tem honrado com os seus compromissos. Os fatos e circunstâncias vividas pelas famílias reassentadas pela Vale são mais graves ainda se considerarmos que esta situação é conhecida pelos governos local, distrital, provincial e cental de Moçambique, que nada fazem para ultrapassá-las.

IHU On-Line - Você visitou essas famílias? O que as pessoas dizem em relação à Vale e quais são suas reivindicações?

Jeremias Filipe Vunjanhe - Durante três dias (13, 14 e 15 de janeiro), novamente, visitei as famílias reassentadas pela Vale no Bairro 25 de Setembro e na região de Cateme, onde mantive vários contatos. As pessoas estão revoltadas e dizem que foram enganadas e burladas pela Vale. Dizem ainda que foram abandonados e traídas pelo governo de Moçambique. As famílias reassentadas dizem que Moatize é um “Pequeno Brasil” e já não pertence a Moçambique. Elas reivindicam contra o processo de reassentamento desde o início mal conduzido; infraestrutura de má qualidade e sem condições de habitação; dificuldade de acesso à água, terra e energia; terra imprópria para a agricultura; fome aguda e subnutrição de crianças; o não cumprimento de promessas de indenização; restrição à circulação de pessoas através da instalação da vedação à volta da Vila de Moatize e das vias de acesso aos recursos; o não cumprimento da promessa de provisão trimestral de produtos alimentares durante os primeiros cinco anos de reassentamento; o não cumprimento das responsabilidades do Estado de monitorar todo o processo de reassentamento e garantir o cumprimento total e integral das obrigações da Vale Moçambique para com os afetados; conflitos de terra com as comunidades originárias de Cateme; falta de meios de transporte para a circulação de pessoas e bens; permanente abandono e desamparo a que as comunidades reassentadas foram sujeitas pelas instituições de Justiça, do Estado, do governo, às quais têm recorrido, nos últimos dois anos, com vista à reposição dos direitos violados através de petições, queixas e reclamações sem resposta.

Relato

"Nós queremos voltar para as nossas zonas de origem. Só aceitamos sair de lá e sermos reassentados por causa das promessas que a Vale se comprometeu a cumprir. A Vale se comprometeu a repor condições iguais ou melhores das que nós já tínhamos. Prometeu que durante cinco anos iria prestar todo o apoio necessário e assistência técnica, além de manutenção das novas infraestruturas. Mas agora nada disso está sendo cumprido. Faltam escolas, água, energia, terra para a agricultura. Estamos  passando fome. Falta quase tudo e nós estamos sofrendo." Este foi um dos relatos que ouvi de um dos populares que vive no Bairro 25 de Setembro.

IHU On-Line - Como os governos Distrital de Moatize e de Tete se posicionam diante das reivindicações das famílias? Quais as relações dos governos com a Vale?

Jeremias Filipe Vunjanhe - Diante das reivindicações das famílias, os governos Distrital de Moatize e Provincial de Tete têm se posicionados como porta-vozes da Vale defendendo interesses desta companhia em detrimento do seu povo. Durante as manifestações de caráter pacífico e consagradas na Constituição da República de Moçambique, o governo de Moçambique, do Distrito de Moatize e da Província de Tete, com recurso da Polícia da República de Moçambique - PRM e da Força de Intervenção Rápida - FIR, reprimiu brutal e violentamente as famílias reassentadas em Cateme. De acordo com a informação obtida, o Comandante da PRM e o seu batalhão, incapazes de dispersar os reassentados, ordenaram a vinda da FIR para Cateme. Curiosamente, encontra-se instalada uma unidade da FIR,  alimentada por fundos da Vale, junto à estrada Nacional Nº 103, que liga a cidade de Tete ao Malawi, passando por Zóbwe e o cruzamento da estrada de terra planada que vai para Cateme. Por volta das 10 horas do dia 10 de janeiro, a FIR chegou ao local e o som da sua sirene atraiu os reassentados ao local. Eles pensavam que finalmente teriam uma oportunidade para ouvir o governador ou o representante da Vale. No entanto, de imediato a FIR começou a agredir violentamente os reassentados fazendo com que estes fugissem para as suas casas. Durante a sua intervenção, a FIR fez rusgas às casas, arrombando portas com pontapés e agredindo várias pessoas. 14 jovens foram capturados e encarcerados, durante cerca de três horas no Posto Policial local. Mais tarde, cinco dos detidos foram soltos e os outros nove, foram transferidos para as celas da cadeia da Carbomoc, na Vila de Moatize, onde permaneceram durante dois dias e duas noites sem alimentação adequada e submetidos a torturas e maus tratos por agentes da PRM. Só foram libertados no dia 12, após intervenção da Procuradoria. Dois dos detidos apresentam ferimentos nas nádegas e sinais de vários golpes no corpo.

No dia 17 de janeiro, em sequência dos acontecidos acima referidos, ocorreu um encontro entre o governador de Tete, Alberto Vaquina, e as famílias reassentadas no Bairro 25 de Setembro, na Vila de Moatize. Várias fontes presentes na reunião denunciaram à Justiça Ambiental durante à tarde do dia 18, aquilo que consideram ameaças feitas pelo governador.

Tráfico de influência

O peso do investimento da Vale na economia do país e sua excessiva influência política no governo de Moçambique permitiram o surgimento de relações perigosas com o poder local, distrital, provincial e central, muitas vezes construídas a partir da divisão de membros de uma mesma família, comunidade ou governo. Há denúncias de tráficos de influência junto de figuras importantes do governo Central, que simultaneamente tem interesses empresariais no empreendimento da Vale. Uma unidade da Força de Intervenção Rápida - FIR da Polícia da República de Moçambique foi destacada para guarnecer os interesses da Vale junto à estrada Nacional Nº 103, que liga a cidade de Tete ao Malawi, passando por Zóbwe e o cruzamento da estrada de terra planada que vai para Cateme. Toda a logística desta unidade da FIR é suportada pela Vale, que é responsável pelos custos de alimentação, transporte, água e outras condições consideradas como estímulos para a execução do seu trabalho. A Vale também financiou despesas significativas do governador Alberto Vaquina. Sabe-se ainda que muitas vezes a Vale financia instituições do governo.

IHU On-Line - Como a sociedade civil e os órgãos de Direitos Humanos têm se posicionado diante dos conflitos entre as famílias e a Vale?

Jeremias Filipe Vunjanhe - Diante dos conflitos entre as famílias e a Vale, a sociedade civil e os órgãos de Direitos Humanos têm se posicionado contra a forma como a empresa brasileira Vale Moçambique reassentou populações que foram desalojadas dos seus locais habituais de residência, além de manifestar a sua solidariedade e prestar todo o apoio e assistência necessária para as famílias. Os órgãos de Direitos Humanos condenam amplamente o uso excessivo e justificado da violência contra pessoas indefesas e desprotegidas. A Justiça Ambiental, organização na qual trabalho em parceria com a Liga dos Direitos Humanos, tem facilitado o acesso a instituições de justiça e de saúde das famílias reassentadas e vítimas da repressão da Polícia de Moçambique. Uma equipa da Liga dos Direitos Humanos está em Moatize para trabalhar com as famílias reassentadas. Outras organizações como Associação de Apoio e Assistencial Jurídica às Comunidades - AAAJC e o Fórum das organizações Não Governamentais de Tete também estão trabalhando com as famílias reassentadas

IHU On-Line – Esses fatos estão sendo divulgados na imprensa local?

Jeremias Filipe Vunjanhe - Felizmente, uma parte significa da imprensa local, particularmente a chamada imprensa independente, tem noticiado amplamente os casos de reivindicação das famílias reassentadas e da repressão a que foram vítimas pela Polícia da República de Moçambique e sua unidade de Força de Intervenção Rápida - FIR. Vários órgãos de imprensa moçambicana com destaque para os jornais Canal de Moçambique, Savana, Canal de Televisão STV, Diário de Moçambique, a Rádio Moçambique, A Verdade, O País fizeram uma cobertura dos acontecimentos de Cateme. Maior parte destes órgãos enviaram seus repórteres a Cateme, que com devido profissionalismo e rigor deram  maior destaque e repercussão nacional ao fato. Desta vez parece que este segmento da imprensa local teve pujança e coragem suficientes para estarem do lado dos fatos e da verdade, ainda que sem a requerida investigação e enquadramento. Entretanto, os chamados órgãos públicos como a Televisão de Moçambique - TVM (o único órgão de televisão pública no país), e o Jornal Notícias (diário de maior circulação) foram demasiado cautelosos e excessivamente omissos na abordagem destes acontecimentos. Aliás, setores importantes da sociedade moçambicana consideram que a TVM e o Jornal Notícias manipularam os fatos e tentaram, sem sucesso, desinformar a opinião pública.

Todavia e apesar dessa avaliação positiva da cobertura da imprensa local, é preciso realçar que a mesma agiu com alguma lentidão e não tem dado seguimento às notícias. Apenas começaram a mostrar interesse pelos acontecimentos de Cateme quando uma nota de imprensa da autoria da Justiça Ambiental foi divulgada regional e internacionalmente pelas principais agências de notícias do mundo como a Reuters, CNN, Rádio France Internacional, a Rádio Voz da Alemanha, Agência Lusa entre outros. É particularmente interessante destacar a forma peculiar como a Justiça Ambiental agiu evitando com os acontecimentos de Cateme não fossem mais uma vez alvos de uma censura generalizada pela imprensa local.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Jeremias Filipe Vunjanhe - Desde agosto de 2009 coordeno a campanha da Justiça Ambiental – JA!, uma importante organização da sociedade civil reconhecida pelo seu trabalho contra os impactos negativos dos projetos de desenvolvimento em Moçambique, e de Monitoria do Projeto de Mineração da Vale em Moatize. Desde então acompanho com particular atenção e muita indignação o assentamento das 1313 famílias e todos os impactos sociais negativos provenientes deste processo. Durante os últimos três anos a JA! tem desenvolvido um intenso trabalho de monitoria, confrontada com denúncias e queixas relatando graves irregularidades no contexto do processo de reassentamento involuntário resultante da implantação do projeto de Mineração da Vale.

Entre os dias 25 e 26 de outubro de 2011, decorreu em Maputo o Seminário sobre Responsabilidade Corporativa em Moçambique, organizado em parceria entre o Centro de Serviços de Cooperação para o Desenvolvimento Kepa e a JA!. Durante o encontro, a voz das comunidades de Moatize ergueu-se mais uma vez, denunciado os impactos e violações da Vale como um grito de socorro para as autoridades governamentais nacionais e organizações da sociedade civil, que advogam em prol do respeito e promoção dos direitos humanos. A Justiça Ambiental aproveitou a oportunidade da presença dos representantes das comunidades de Moatize em Maputo para agendar dois encontros com os Ministérios dos Recursos Minerais e da Administração Estatal. Em seguida, a JA! Representando as comunidades reassentadas pela Vale, teve um encontro com a Comissão dos Assuntos Sociais, Gênero e Ambiente da Assembleia da República, onde submeteu uma Carta Queixa e uma petição. Cópias desta documentação foram entregues pelos reassentados ao governador de Tete, à Direção Provincial dos Recursos Minerais e Energia de Tete e aos Ministérios dos Recursos Minerais e da Administração Estatal, solicitando a intervenção destas entidades na resolução urgente dos problemas. Entretanto, todas as diligências feitas pelas famílias e por diversas organizações foram ignoradas.

(Por Patricia Fachin)

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Vale: novos conflitos em Moçambique. Entrevista especial com Jeremias Filipe Vunjanhe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU