As vantagens do decrescimento sustentado. Entrevista especial com Rafael Reinehr

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28 Fevereiro 2010

“Hoje, a capacidade de parar um dia durante a semana voluntariamente parece bastante difícil ao primeiro olhar. Entretanto, muitas proposições já foram feitas para a redução do trabalho, e, em países como a Alemanha, a semana de 36 horas já é regra”, explica o médico e escritor Rafael Reinehr. Em entrevista à IHU On-Line, realizada via skype, ele pondera as ações de responsabilidade do Estado e aquelas que nós mesmos devemos tomar para que o planeta possa “sobreviver” ao consumismo desenfreado atual. Defensor da tese do descrescimento, Reinehr diz que “o discurso, táticas de convencimento através da palavra e da razão são pouco eficazes”. Para ele, as mudanças na forma de consumo podem ser promovidas de três formas: “através de benefícios financeiros, através do apelo à emoção e, finalmente, através do exemplo”.

Rafael Reinehr é médico especialista em Medicina Interna e Endocrinologia. Colabora com o Núcleo para a Excelência Humana da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mantém os blogs Escrever Por Escrever, Simplicíssimo e seu site pessoal.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A consciência de que os recursos naturais do planeta são finitos é algo crescente ou ainda estamos apenas no plano dos discursos?

Rafael Reinehr – Existem evidências, como a multiplicação de entidades não governamentais, associações sem fins lucrativos e movimentos nos mais variados cantos do mundo que tratam justamente de combater este modelo econômico que não se importa com a manutenção da diversidade cultural e biológica.

Podemos nos conectar e conhecer muitos destes movimentos hoje através de publicações, como Deep Economy - The Wealth of Communities and The Durable Future, de Bill McKibben [1], Blessed Unrest - How the Largest Movement in The World Came Into Being and Why No One Saw It Coming, de Paul Hawken [2] e Worldchanging - A User`s Guide for The 21 Century, de Alex Steffen [3], o qual estou adaptando para o português.

Resumindo: existem sim propostas bastantes práticas sendo postas à mesa. Iniciativas de Economia Solidária se multiplicam, cooperativas de reciclagem, arte com lixo, atividades como a do Freecycle.org, que garantem a utilização de produtos que, para alguns, não tem valor, aumentando assim a vida útil dos bens.

IHU On-Line – Você acha que Copenhague foi um passo para trás?

Rafael Reinehr – Não caminhamos para trás. Apesar da COP-15 não ter produzido resultados palpáveis no que diz respeito à proteção ambiental, basicamente em função de proteções econômicas que países como China e Estados Unidos insistem em defender, a própria ausência de resposta dos governantes "eleitos" acaba por reforçar ainda mais os movimentos colaterais que estão surgindo e sendo amplificados. Se existe uma carência que não é atendida pelo Estado, vários indivíduos, não contentes com isso, passam a buscar suas próprias soluções para o problema. E é esse movimento que enxergo: a incapacidade cada vez maior do Estado suprir as demandas de um mundo cada vez mais rápido (acelerado pelo consumo, pela propaganda e até pela obsolescência planejada) faz com que pessoas se unam para resolver questões locais imediatas e, com a capacidade que hoje temos de nos conectar em rede, em breve também resolver questões mediatas e globais.

Ao contrário do que o senso comum prega, não acredito na necessidade de utilizarmos a máquina governamental para melhorarmos o mundo e proteger nosso futuro. Antes, pelo contrário, podemos usar estas rachaduras, estes vãos deixados pelo sistema estabelecido para criar uma Nova Economia, uma que respeite o ser humano ao invés de oprimi-lo.

Dessa forma, a falta de resultados em Copenhague pode significar um avanço para movimentos instituintes. A insuficiência estatal leva as pessoas a buscarem o mínimo de dignidade. O mesmo poderá acontecer quando uma massa crítica estiver formada (e, pelo que tenho acompanhado, ela está se formando no que diz respeito às preocupações ambientais e econômicas).

Descrescimento sustentável

Veja bem: hoje, sexta-feira, estou aplicando, na prática, o decrescimento sustentável. Escolhi, há algum tempo, não trabalhar nas sextas para dedicar-me à pesquisa, leitura, contemplação e produção de capital social. Passei a utilizar a bicicleta ao invés do carro.

Hoje, a capacidade de parar um dia durante a semana voluntariamente parece bastante difícil ao primeiro olhar. Entretanto, muitas proposições já foram feitas para a redução do trabalho, e, em países como a Alemanha, a semana de 36 horas já é regra. A criação de arranjos de trabalho que possibilitem aos seres humanos viver mais e trabalhar menos é uma possibilidade hoje, lamentavelmente oculta sob a necessidade do lucro por parte das empresas, que, como regra, rejeitam qualquer ideia de benefícios trabalhistas que não aqueles impostos por lei.

Do outro lado, está o trabalhador-consumidor, que, inspirado pela propaganda e pelo meio no qual está inserido, sente-se impelido a comprar sem nem mesmo ter necessidade de certos produtos. Este consumo, esta falsa "necessidade" faz com que ele precise trabalhar mais e mais horas por mais e mais anos para manter aquele dado padrão de vida. E eu mesmo não fujo à regra, apenas tenho a consciência disso e, há alguns anos, passei a me mover de forma a enfrentar e minimizar este aspecto da nossa relação com as coisas. Um exemplo prático: minha esposa e eu estávamos pensando em adquirir um automóvel, sendo que já tínhamos um. A análise (econômica, ecológica, social e de conforto) da aquisição do carro nos fez optar por um par de bicicletas.

De um lado, ter dois carros facilitaria nossa vida, tendo em vista que minha esposa trabalha duas vezes por semana em uma cidade vizinha e eu o faço também, duas vezes ao mês. A bicicleta nem sempre é confortável (dias de chuva torrencial ou de calor extremo) e, em caso de pressa, pode ser insuficiente. Para estes casos, optamos pelo táxi. Por outro lado, o valor a ser investido no carro passou a ser um conforto extremo quando economizado, pois permitiu a redução da jornada de trabalho, ao mesmo tempo em que poluímos menos e causamos uma pegada ecológica menor (não ajudamos a extrair mais minérios do solo e, tampouco, utilizamos as quantidades maciças de energia necessárias para a produção do veículo).

O mesmo pode se aplicar para a compra de uma batedeira para uma família com baixo poder aquisitivo. Aquela batedeira pode trazer um conforto significativo: poupa tempo e braço, mas, ao mesmo tempo, gasta energia elétrica e necessita de horas de trabalho para ser comprada. Bater uma massa na mão pode ser chato ou pode ser uma oportunidade para praticar o comensalismo, quando feita entre amigos durante um bate-papo.

IHU On-Line – Qual é a origem e a essência da tese do descrescimento sustentável?

Rafael Reinehr – Particularmente, a noção de "crescimento e desenvolvimento econômico" sempre foi algo que me “encafifou”: como se pode crescer, ano após ano, em um mundo finito? Minhas aulas de biologia não estavam de acordo com as minhas aulas de geografia e matemática. Fiquei feliz ao perceber que não estava só com este incômodo quando conheci Serge Latouche [4], um francês que, em 2003, publicou, no Le Monde Diplomatique, um artigo intitulado "As vantagens do decrescimento", no qual ele dizia:

“Depois de algumas décadas de desperdício frenético, parece que entramos na zona das tempestades – no sentido próprio e no figurado... As perturbações climáticas são acompanhadas pelas guerras do petróleo, que serão seguidas pela guerra da água, mas também por possíveis pandemias, desaparecimento de espécies vegetais e animais essenciais. Nessas condições, a sociedade de crescimento não é sustentável, nem desejável. É urgente, portanto, que se pense numa sociedade de “decrescimento”, se possível serena e convivial.”

Bem antes disso, em 1972, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) realizou um estudo que acabou se transformando em um livro chamado "Os limites do crescimento", no qual eles concluíam que “Se as tendências atuais de crescimento na população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e depleção de recursos continuarem imutáveis, os limites do crescimento neste planeta serão atingidos nos próximos 100 anos. O resultado mais provável será uma súbita e descontrolada queda na população e na capacidade industrial”.

Baseado nestas constatações, passou a imaginar formas de combater esta "escassez prevista", e uma delas é o conceito de Decrescimento Sustentável. Como diz Latouche: “uma sociedade não pode sobreviver se não respeitar os limites dos recursos naturais”, e propõe “um círculo virtuoso de descrescimento: Reavaliar, Reconceitualizar, Reestruturar, Relocalizar, Redistribuir, Reduzir, Reutilizar, Reciclar. (...) Reconceitualizar é mudar nossa maneira de pensar. É uma verdadeira revolução cultural.”

O que hoje alguns chamam de desenvolvimento sustentável outros de antiprodutivismo e outros ainda de decrescimento sustentado têm um objetivo comum: reduzir a “pegada” humana, o impacto que o homem imprime sobre o ambiente em que vive, garantindo a possibilidade da permanência da raça humana sobre a Terra pelo máximo de tempo possível. Apesar de muito se discutir acerca do tema, precisamos entender o que nos impede de desejar uma vida mais simples e feliz. Qual é a ilusão que nos é vendida (e que compramos) que está a obliterar nossa visão.

IHU On-Line – O crescimento da população também é um agravante para a vida sustentável na Terra?

Rafael Reinehr – Sim. Definitivamente, é um agravante para a vida humana sustentável na Terra. O planeta, certamente, irá se readaptar. A questão é se nós somos capazes de nos readaptarmos a tempo em função das mudanças que estamos imprimindo. Sou um curioso extremado, e queria ter a chance de dar uma espiadela, hoje, no mundo daqui a 20 anos. Posso apostar que, seguindo no caminho atual, já estaríamos vivendo em condições insustentáveis. Ao mesmo tempo, creio que a pressão para a mudança está gradativamente mudando e, nestas duas décadas, poderemos ter atenuado nossa pegada ecológica ao invés de tê-la aumentado ainda mais.

Se todos consumíssemos como os estadunidenses, já estaríamos mortos. Imagine uma população que é estimada em cerca de sete bilhões crescendo cada vez mais economicamente, tendo mais acesso a bens materiais, com aumento linear da extração de materiais da natureza para produzir estes bens, produzindo mais lixo, consumindo mais energia e acelerando a exaustão dos sistemas vitais e da diversidade do planeta. O atual sistema é claramente insustentável, mas parece que, inebriados pelo hoje, acabamos por negligenciar o amanhã.

IHU On-Line – Muitos afirmam que a ideia do decrescimento sustentável é compatível com o atual sistema capitalista. Não se trata de uma contradição?

Rafael Reinehr – O que movimenta o sistema capitalista? Dinheiro, basicamente. Uma forma de regular o sistema capitalista - do qual não sou partidário, apenas jogo conforme suas regras enquanto articulo e vivo na maior parte do tempo possível fora dele.

Poder-se-ia criar um sistema de taxas, normas, bônus e subsídios seletivos para tornar um ambiente virtuoso uma alternativa economicamente interessante e evitar perdas em larga escala. Um bom exemplo é estimular a construção de casas energeticamente mais eficientes, mesmo mais caras, concedendo créditos a serem trocados posteriormente.

Além disso, se poderia sobretaxar alimentos industrializados que viajam quilômetros de distância e, com o valor arrecadado, subsidiar arranjos produtivos locais. Algumas formas de integrar o decrescimento sustentável ao sistema capitalista são:

* Reduzir nossa pegada ecológica ao ponto de que a mesma passe a ser igual ou inferior aos recursos do planeta Terra. Isso significa trazer a produção de materiais de volta aos níveis da década de 60 ou 70.
* Internalizar os custos de transporte.
* Relocalizar todas as formas de atividades.
* Retornar a uma produção em pequena escala.
* Estimular a produção de “bens relacionais” - atividades que dependem de relações interpessoais fortes, tais como cuidar de enfermos ou pessoas terminalmente doentes, massagens e até psicanálise, sendo negociadas comercialmente ou não, ao invés da exploração dos recursos.
* Reduzir o gasto energético em três quartos.
* Taxar severamente os gastos com publicidade.
* Decretar uma moratória na inovação tecnológica, levando a uma avaliação profunda de suas conquistas e uma reorientação da pesquisa técnica e científica de acordo com novas aspirações.

As formas elencadas acima foram citadas pelo Serge Latouche, em um artigo de 2006, chamado The globe downshifted.

IHU On-Line – Como convencer as pessoas de que elas precisam mudar os seus hábitos de consumo?

Rafael Reinehr – Esta é difícil. Posso dizer que tenho tentado responder a esta questão fundamental, e a conclusão que cheguei foi a de que a melhor forma é através do exemplo. O discurso, táticas de convencimento através da palavra e da razão são pouco eficazes. Conseguimos promover mudanças no consumo de três formas: através de benefícios financeiros, através do apelo à emoção (é o que fazem igrejas, contadores de histórias como líderes comunitários e psicoterapeutas, por exemplo) e, finalmente, através do exemplo. Se vivemos em um ambiente em que pessoas nas quais nos espelhamos passam a tomar certas atitudes e as vemos bem, logo tendemos a imitá-las. Dizendo isso, significa dizer: a academia é insuficiente.

Produzir artigos científicos, dar entrevistas e publicar textos em sites e revistas é insuficiente. É preciso começar e fazer. Na sua casa, no seu bairro, na sua comunidade. É preciso estar aberto para ajudar quem está começando a seguir pelo mesmo caminho. Não é fácil nem isento de dor, mas é extremamente compensador.

IHU On-Line – O senhor identifica, na sociedade, manifestações, iniciativas e experiências que vão de encontro à tese do decrescimento sustentável?

Rafael Reinehr – Sim, principalmente no que diz respeito aos arranjos produtivos e de consumo locais. A agricultura orgânica e a permacultura (que passa por toda uma filosofia diferente da cultura extensiva na qual são usados pesticidas e maquinário intenso) estão crescendo, a formação de novas cooperativas de produtores com o fortalecimento do local, auxiliado por redes de economia solidária estão pipocando aqui e ali. Ao mesmo tempo, o capitalismo também dá o ar de sua graça com as super-megarredes de supermercados se espalhando e acabando, em uma só tacada, com dezenas ou centenas de estabelecimentos comerciais da vizinhança.

Justamente para, aqui no Brasil, tentar encontrar, concatenar, reunir e colocar em uma mesma "mesa de reuniões" na qual se possam discutir agendas comuns, que foi criada a Coolmeia, Ideias em Cooperação, uma incubadora de ideias altruístas estruturada em rede (de forma não-hierárquica) que visa buscar investigar e resolver, de forma sustentável, os principais problemas do nosso tempo. Estas manifestações, iniciativas e experiências existem e são numerosas, mas não conversam entre si. Desta forma, dispersas, não sabem o poder que têm de promover a mudança. Nosso papel é justamente dar-lhes esta ciência e fazer com que trabalhem em conjunto, acelerando o processo de mudança em direção a um mundo mais justo, solidário e sustentável.

Notas:

[1] William Ernest "Bill" McKibben é um ambientalista estadunidense. Escreve frequentemente sobre o aquecimento global e energias alternativas, e advogados para economias mais localizadas.






[2] Paul Hawken é um ambientalista, empresário e autor. Escreve sobre o impacto do comércio sobre o ambiente, e consulta com os governos e corporações em ecologia industrial e política ambiental.






[3] Alex Steffen é um escritor estadunidense. Editor, orador e futurista, é bastante conhecido por suas ideias verdes. Steffen edita a revista on-line Worldchanging.







[4] Serge Latouche é um economista e filósofo francês. Muito influenciado pelos trabalhos de Ivan Illich, Latouche desenvolveu uma teoria crítica da ortodoxia econômica. Já esteve na Unisinos, a convite do IHU. Os Cadernos IHU Idéias e a revista IHU On-Line têm publicado artigos e entrevistas com ele.



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