Violência contra a criança: uma ferida aberta. Entrevista especial com Ana Maria Drumond

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27 Mai 2010

Toda semana, pelo menos uma das notícias de repercussão nacional trata de violência contra a criança. O assunto não se tornou apenas corriqueiro, mas alarmante. Cada vez mais, o Ligue 100 recebe denúncias de abusos contra crianças e adolescentes. E essa violência acontece, principalmente, dentro da própria casa. “Uma criança que está em uma situação de risco ou de violência, que faz parte da comunidade ou está vinculada a uma escola, está dentro de uma rede que poderia protegê-la, e não a protege”, diz a diretora-executiva da Childhood Brasil, Ana Maria Drumond. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone, ela fala dos principais problemas que envolvem a criança em situação de violência e abuso, e aponta onde acontece a maioria das ocorrências. “O senso comum diz que as crianças que mais sofrem abuso sexual são de classes menos favorecidas, mas isso não é verdade. O que acontece é que a denúncia é feita com maior frequência pelas camadas menos favorecidas, mas tem muita criança sendo abusada por famílias com alto poder aquisitivo”, revela.

Ana Maria defende que o diálogo ainda é uma das maneiras mais fortes de fazer com que se enfrente o problema. Segundo ela, as crianças pequenas também podem ser orientadas. “Não devemos entrar em uma paranoia, mas se não falarmos sobre sexualidade, a partir de uma determinada faixa etária, como essas crianças vão poder lidar bem com sua própria sexualidade e ter consciência de que podem dizer não?”, disse. O caso da adolescente paranaense que foi estuprada por ter aderido à brincadeira das “pulseiras do sexo” [1] evidencia essa afirmação. “Por mais que ela estivesse com a pulseira, ela se sentiu intimidada e com medo de ser criticada depois. Que autoestima é essa? Que consciência é essa em relação aos seus próprios limites?”, destacou.

Ana Maria Drumond é mestre em administração de empresas pela Universidade Luigi Bocconi (Itália) e diretora da Childhood Brasil, uma Ong fundada em 1999 e tem sede em São Paulo que faz parte da World Childhood Foundation, criada pela Rainha Silvia da Suécia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Depois que a menina Araceli [2] foi drogada e estuprada em 1973, muitos casos como esse ainda acontecem. A impunidade é o maior problema?

Ana Drumond – Hoje vemos como um grande problema o fato de as pessoas serem indiferentes quando esse tipo de coisa não acontece com uma pessoa próxima. Uma criança que está em uma situação de risco ou de violência, que faz parte da comunidade ou está vinculada a uma escola, está dentro de uma rede que poderia protegê-la, e não a protege. A maioria das crianças que é vítima de violência não é tratada como criança dentro de um processo judicial. São várias frentes que precisam ser realizadas como conscientizar a população como um todo e melhorar o sistema para dar conta dessa criança ter coragem de ir até o fim. Além disso, estamos trabalhando para que quando a criança esteja no processo judicial por ser vítima de violência, ela tenha direito a um depoimento especial e que seja humanizado.

IHU On-Line – Ainda falta muito para chegarmos num ideal?

Ana Drumond – O Brasil tem diversas realidades. Em determinados lugares, o fluxo de atendimento dessa criança funciona. Quando é verificado um caso de violência, a criança é prioridade, seja no serviço de saúde, no conselho tutelar ou no atendimento psicológico social. Existem redes muito bem montadas, não significa que o país inteiro não acolheu esta questão. Há dez anos, o cenário era bem diferente. Hoje existem planos municipais e estaduais de enfrentamento à violência sexual. Porém, isso é insuficiente, precisamos ainda tirar o Estatuto da Criança e do Adolescente do papel. Esta causa permeia todos os serviços de atendimento à criança.

IHU On-Line – Onde e como essa violência ocorre com maior incidência? São nos estados mais pobres ou nos mais ricos, nas capitais ou no interior?

Ana Drumond – Olhamos a questão do abuso de uma forma diferente da exploração sexual. O abuso não tem classe social e lugar para acontecer com frequência. O senso comum diz que as crianças que mais

"O senso comum diz que as crianças que mais sofrem abuso sexual são de classes menos favorecidas, mas isso não é verdade"

sofrem abuso sexual são de classes menos favorecidas, mas isso não é verdade. O que acontece é que a denúncia é feita com maior frequência pelas camadas menos favorecidas, mas tem muita criança sendo abusada por famílias com alto poder aquisitivo. Não dá para dizer que isso acontece em um determinado lugar ou outro. Se observarmos o disque denúncia nacional, o Ligue 100, mais de 80% das denúncias de abuso sexual acontece dentro de casa, por pessoas conhecidas da criança. Não é um fenômeno que ocorre dentro da escola ou em outros espaços, pessoas muito próximas à criança são as que iniciam uma violência psicológica e que depois evolui para uma violência sexual.  

IHU On-Line – É possível fazer um mapeamento das denúncias que chegam através do Ligue 100?

Ana Drumond – Sim. Esse mapeamento diz que os números estão crescendo, pois o serviço está sendo mais conhecido pela população. O Ligue 100 é só a ponta do “iceberg”. Alguns estados possuem um número maior de denúncias, mas não podemos assumir que são estados-problemas, pois lá o telefone pode ter sido mais divulgado. Temos, dentro de todos os tipos de violência, a negligência contra a criança, ela não sendo tratada como prioridade dentro de casa. Também temos a violência psicológica, com todo tipo de ameaça verbal, e a questão da exploração sexual. É como se o risco fosse evoluindo gradativamente. E sabemos que muitas meninas que estão nesta situação foram abusadas dentro de casa. A casa passa a ser uma ameaça, e este é um primeiro passo para a situação de prostituição, já que nem a própria família da criança a protege, ela tem que buscar algum tipo de alternativa fora.

IHU On-Line – Quem geralmente faz a denúncia?

Ana Drumond – Normalmente é alguém próximo que está observando essa situação. Pode ser a mãe, a avó ou alguém da escola que já comprovou uma situação de abuso. É alguém próximo que já colheu elementos para encaminhar a denúncia, que já chegou à conclusão de que a criança está sofrendo algum tipo de violência, não só abuso, mas violência física ou psicológica.

IHU On-Line – A maior incidência é de violência sexual ou de violência psicológica?

Ana Drumond – Em primeiro lugar, vem a negligência, já vemos que uma criança não está sendo bem tratada ou cuidada pela família. Depois, vem a questão da violência física, psicológica e do abuso sexual. Percebemos que a família já está descuidando dessa criança de várias formas, não necessariamente toda a criança que está sofrendo uma situação de negligência evoluirá para uma situação de abuso sexual, mas é um grande indicador de alerta.

IHU On-Line – Isso indica uma crise da família?

Ana Drumond – Sabemos, há muito anos, que a família desestruturada abre portas para uma série de

"A família desestruturada abre portas para uma série de situações"

situações. Não sei se existe uma crise da família, sei que está sendo difícil fornecer um atendimento especializado para famílias que estão em situação de risco. Quando falo situação de risco, não é só porque a família é pobre, devemos tomar cuidado para não associar violência com pobreza, associamos pobreza com vulnerabilidade social. Devem existir serviços especializados para atendimento dessa família, com diagnósticos da situação familiar e encaminhamento para serviços públicos. A partir do momento que existirem serviços que cuidem dessas questões, outras podem ser evitadas. É um trabalho de prevenção.

IHU On-Line – Há uma relação entre masculinidade e violência?

Ana Drumond – Costumo dizer que, se eliminássemos a violência no país, e se o Brasil não fosse mais campeão de desigualdade social, mesmo assim, a exploração sexual ainda aconteceria. Temos uma herança cultural que é machista, onde a mulher ainda é vista como objeto, principalmente uma adolescente, que está mais sujeita a uma situação de dominação por um adulto. Ainda temos essa forte questão, em nossa sociedade, que precisa ser trabalhada.

Tem muitas organizações sociais fazendo belíssimos trabalhos em relação a isso, como o Instituto Papai, em Recife; o Promundo, no Rio de Janeiro. Em todo e qualquer trabalho que fazemos, investimos muito na capacitação de agentes públicos, como conselheiros tutelares e técnicos da vara da infância. Esse tema está sempre presente, não tem como tratarmos a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes se não olharmos para aspectos de gênero e de sexualidade. São aspectos que temos de cuidar sempre.

IHU On-Line – E como a pedofilia se insere nesse contexto?

Ana Drumond – A pedofilia é uma doença. Hoje está muito

"Nem todo o abusador é pedófilo"

presente na mídia o termo pedofilia, e as pessoas o confundem com abuso sexual. É preciso esclarecer que o pedófilo é uma pessoa doente, e nem todo o pedófilo comete o abuso, como nem todo o cleptomaníaco rouba. Outra questão é que nem todo o abusador é pedófilo. Devemos cuidar com alguns discursos que escutamos por aí, como “vamos acabar com os pedófilos”. Esta é uma visão muito simplista. Primeiro porque os pedófilos precisam de tratamento, e este tratamento precisa ser muito pesquisado. Não podemos culpar a doença e dizer que, se encontrássemos a cura para a pedofilia, não existiria mais abuso sexual. Isso não é verdade.

IHU On-Line – Quais são os impactos da violência na saúde das crianças e adolescentes?

Ana Drumond – Total, pois uma criança que é vítima da violência, em muitos casos, desenvolve uma depressão e tem dificuldade de aprendizagem. A criança entra em um conflito interno muito grande, principalmente se passa anos sem relatar o que está acontecendo. Ela fica muito confusa e bastante abalada psicologicamente. Os danos são seríssimos. É difícil resgatar todo o alicerce da criança depois de anos de violência, pois, geralmente, ela só conta o que aconteceu quando está na fase adulta. Assim, fica com dificuldades de se relacionar e tem o emocional muito frágil. É muito importante que a denúncia seja feita, e que a criança seja encaminhada para um atendimento adequado.

"É difícil resgatar todo o alicerce da criança depois de anos de violência"



Nossa organização acompanhou o trabalho da Graça Pizá, uma psicanalista do Rio de Janeiro que dava atendimento a crianças que vinham da Barra da Tijuca ou de uma favela. Era muito bonito olhar o processo de “cura” dessa criança. Todo o processo de atendimento individualizado dessa criança é composto por desenhos, que passam de um patamar sombrio, de desespero – uma das crianças se colocava dentro de uma teia de aranha – para um patamar de liberdade. Vemos isso ao longo dos anos, é um processo longo e exige muita coragem da família, a criança precisa estar amparada por alguém. Na maioria dos casos, é a mãe, mas, muitas vezes, ela se recusa a aceitar a realidade. Sabemos que é difícil para um adulto passar por um processo de atendimento psicológico, mas imagina para uma criança que não sabe exatamente o que está acontecendo. É um sofrimento silencioso.

IHU On-Line – O diálogo e a educação sexual podem ajudar a amenizar o problema? De que forma?

Ana Drumond – Sem dúvida. O diálogo, acima de tudo, é a primeira coisa que colocamos em todos os nossos materiais. Se não houver esse diálogo, seja dentro da escola ou da família, não há espaço para a criança relatar todas as situações que ela está vivenciando. A sexualidade é uma coisa saudável, deve ser exercida de forma saudável em cada faixa etária. A conduta autoprotetora é o que criança aceita em termos de cuidado que o adulto exerce sobre o corpo dela, que tipo de carinho é ou não aceitável em um banho, por exemplo.

Sobre este tipo de coisa prática, as crianças pequenas também podem ser orientadas. Não devemos entrar em uma paranoia, mas, se não falarmos sobre sexualidade, a partir de uma determinada faixa etária, como essas crianças vão poder lidar bem com sua própria sexualidade e ter consciência de que podem dizer não? Chamou-me atenção o caso de uma menina, em Londrina, que estava usando aquelas pulserinhas coloridas que geraram uma grande polêmica. Quando se arrebenta a pulserinha, deve-se realizar o proposto de acordo com a cor. No caso da menina, era fazer sexo, mas ela não soube dizer não. Por mais que ela estivesse com a pulseira, ela se sentiu intimidada e com medo de ser criticada depois. Que autoestima é essa? Que consciência é essa em relação aos seus próprios limites? Fiquei muito triste com esse relato, pois, imagine quantas meninas por todo o Brasil se sentem constrangidas em dizer não para determinadas situações. Que pena, pois elas estão supervulneráveis a relações de poder e ameaça.
 
IHU On-Line – Com a vinda, para o Brasil, de eventos como Copa do Mundo e as Olimpíadas, o problema pode se agravar ou uma coisa não tem nada a ver com a outra?

Ana Drumond – O país avançou muito a respeito disso, existe um programa nacional, no âmbito do Ministério do Turismo, que se chama Turismo Sustentável e Infância. Existem ações objetivas nesse aspecto, mas precisamos de plano de ação em relação à Copa e às Olimpíadas, e esse plano deve ser lançado logo para que seja multiplicado e descentralizado.

Notas:


[1] As pulseiras do sexo são usadas por adolescentes como uma espécie de código para experiências sexuais, onde cada cor significa um grau de intimidade, desde um abraço até o ato sexual completo.




[2] Aracelli Cabrera Sanches tinha 8 anos e vivia em Vitória (ES) quando foi seqüestrada, no dia 18 de maio de 1973, e, seu corpo, encontrado somente seis dias depois. O dia da morte de Aracelli foi transformado no Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual de Crianças e de Adolescentes.

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