Cloroquina, ausência de consulta e outras irregularidades marcaram visita “surpresa” do governo à Terra Indígena Yanomami

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05 Agosto 2020

Nota da Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana aponta que indígenas não foram consultados sobre missão, realizada em junho e que contou com mais jornalistas do que agentes de saúde.

A reportagem é publicada por Instituto Socioambiental – ISA, 03-08-2020.

Uma viagem que pretendia demonstrar as ações do governo brasileiro no combate à Covid-19 na Terra Indígena Yanomami acumulou uma série de irregularidades e trouxe preocupação aos indígenas. Segundo nota técnica elaborada pela Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana (Rede Pró-YY), apresentada dia 16 de julho à 6ª Câmara do MPF e ao MPF-RR, a comitiva interministerial, além de não consultar previamente as lideranças indígenas para desembarque nas comunidades, permitiu que jornalistas se aproximassem das populações e tomassem fotos sem consentimento. Além disso, foram entregues, segundo documentação do Ministério da Saúde (MS), 49 mil comprimidos de cloroquina, cuja eficácia contra a Covid-19 não está comprovada. Também foram feitos testes rápidos, considerados pouco confiáveis na detecção da doença.

Apesar das evidências científicas recomendarem o não uso da cloroquina contra o novo coronavírus, o medicamento é administrado no tratamento da malária causada pelo protozoário Plasmodium vivax. Ao ser questionado sobre qual era a real intenção envolvida na distribuição da cloroquina na Terra Indígena Yanomami, o MS, por meio de nota oficial da Sesai expedida em 03/07, disse que o medicamento deveria ser utilizado para o tratamento da malária. Contrariando o conteúdo da nota, porém, o coordenador do DSEI Leste de Roraima, Tércio Pimentel, havia admitido um dia antes, em reunião do MPF em Boa Vista-RR, que a cloroquina enviada pelo governo fazia parte de um kit para o tratamento da Covid-19.

Outro dado reforça o real motivo da distribuição da cloroquina. Se, conforme o próprio governo, a cloroquina levada seria para o tratamento de malária, estaria faltando no lote um medicamento complementar e fundamental no tratamento da malária “vivax”: a primaquina. De acordo com a nota dos pesquisadores da Rede Pró-YY, para o tratamento da malária “vivax”, mais comum na Terra Indígena Yanomami, o protocolo padrão de tratamento inclui, além da cloroquina em doses diárias por 3 dias, o uso de primaquina ou tafenoquina por um período de 7 a 14 dias.

A primaquina previne recaídas ou novo adoecimento pelo Plasmodium vivax. Nos medicamentos entregues pelo governo federal, por intermédio do Ministério da Saúde, nos DSEI Yanomami e Leste, não foi listado primaquina. Para a malária decorrente do protozoário Plasmodium falciparum, resistente à cloroquina, não se usa a medicação. Apesar de ser mais rara que a “vivax”, a malária “falciparum” está em crescimento na TIY [ler abaixo].

Com a cloroquina, também foram distribuídos 7.858 comprimidos de azitromicina, antibiótico usado em protocolos iniciais no combate à Covid-19 para casos graves. “O fato de a comitiva do governo federal ter distribuído cloroquina e azitromicina conjuntamente na TI Yanomami aumenta os indícios de que a finalidade do envio destes medicamentos era o tratamento do novo coronavírus”, escreve a Rede Pró-YY.

Militares levam medicamentos e insumos em viagem interministerial por terras indígenas. (Foto: Agência Saúde | ISA)

“Em um só tempo, o governo federal contraria as recomendações da OMS e propõe a utilização de um protocolo de tratamento não sustentado nas melhores evidências científicas disponíveis até o presente momento, em uma população reconhecidamente vulnerável”, afirma a nota dos pesquisadores.

A Rede Pró-YY trouxe relatos de indígenas das comunidades de Auaris e Waikás, na TI Yanomami, que acompanharam a chegada da missão do governo. Segundo eles, não houve qualquer orientação sobre o uso dos medicamentos. “Afirmaram ainda que em nenhum momento foi dito que a cloroquina deveria ser utilizada para o tratamento de malária.”

Além disso, de acordo com lideranças Ye'kwana de Waikás, no dia em que a missão esteve na comunidade, agentes fizeram pelo menos 100 testes rápidos, “de maneira apressada, sem aguardar os 10 minutos necessários para aferição correta”. Os moradores de Waikás, onde já havia transmissão comunitária, estranharam o fato de que todos os testes feitos pelos médicos da comitiva militar deram negativo.

A Rede Pró-YY, em contato com as lideranças, foi informada de que novos testes rápidos foram realizados pela equipe do polo base e mais de 30 casos foram confirmados na semana do dia 8 de julho. Até o dia 16, Waikás, cuja população é de cerca de 170 pessoas, tinham mais de 40 casos confirmados oficialmente pelo DSEI Yanomami.

Visitantes forasteiros

Outro elemento problemático da visita foi a ausência de consulta prévia às comunidades, conforme prevê o protocolo de Yanomami e Ye'kwana. Segundo lideranças de comunidades próximas aos três polos-base visitados pela missão, a quantidade de jornalistas superava a de profissionais de saúde na comitiva. “Tiraram fotos e foram embora”, denunciaram.

“Portanto, o desrespeito à decisão das comunidades indígenas pelo auto-isolamento é agravado ainda mais pela presença de jornalistas que capturaram suas imagens, levando-as para longe. Ao que indicam os relatos recebidos pela Rede Pró-YY, não foram solicitadas autorizações daqueles que foram fotografados nem da coletividade Yanomami e Ye’kwana, conforme preconizado pela Portaria da Funai nº 177 de 200647”, diz a nota.

“Tampouco foram prestados esclarecimentos sobre os motivos para a produção dessas imagens. Hoje, circulam nas redes sociais e nos mais diversos jornais imagens de crianças e mulheres yanomami do Surucucu registradas durante a missão, que inclusive estão sendo vendidas”, detalham os pesquisadores.

Explosão de malária na TIY

A partir das análises para a nota técnica, houve outra descoberta. No DSEI Yanomami, a quantidade de contaminados pela malária mais que dobrou entre 2018 e 2019, saltando de 9738 para 14.827 casos, segundo dados da Sesai. A TIY apresenta um grau de risco de malária mais de nove vezes maior que o estabelecido pela OMS.

A malária é uma comorbidade que pode agravar o quadro de Covid-19. Em abril, o primeiro Yanomami morto pelo novo coronavírus no Brasil, um adolescente de 15 anos, tinha acabado de se recuperar de malária falciparum, a mais grave. Em maio, outra vítima da Covid-19 entre os Yanomami foi um senhor de 68 anos da comunidade Maturacá, em tratamento pelo mesmo tipo de malária.

“As áreas desmatadas para exploração mineral promovem as condições ideais para a proliferação do mosquito vetor da malária, o Anopheles spp., além de os próprios garimpeiros se tornarem reservatórios humanos da doença”, diz a nota da Rede Pró-YY.

Segundo o Ministério da Saúde, a TIY respondeu sozinha por 45% de todos os casos da doença registrados nas terra indígenas no país todo no mesmo ano (36.384).

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