A radical visão teológica do Papa Francisco

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17 Julho 2019

Em um discurso amplamente ignorado, o papa jesuíta oferece uma teologia renovada para estes nossos tempos turbulentos.

A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 05-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

“Entre todos os líderes políticos e sociais do mundo, o Papa Francisco está cada vez mais sozinho como a força mais poderosa em favor da paz e da estabilidade globais.”

Assim começou o prelúdio de um artigo anterior intitulado “Papa Francisco ou Steve Bannon? Os católicos devem escolher”.

Em parte, o texto tentou mostrar como o papa está buscando unir toda a humanidade – especialmente as pessoas das várias religiões – em contraste com aqueles que deliberadamente manipulam a religião para semear a divisão.

“Em uma época em que os populistas da direita alternativa se disfarçam de cristãos e usam os símbolos religiosos para assustar os fiéis e fazê-los adotar o racismo, a xenofobia, a islamofobia e o ultranacionalismo – tudo tão flagrantemente em desacordo com o Evangelho, aliás – Francisco desempenhou um papel indispensável na prevenção de uma espiral perigosa rumo a um choque total de civilizações...

“Outro papa poderia não ter tido a coragem, a força ou a fé profunda e genuína para se levantar contra tudo isso e não se deixar ser cooptado pela causa dos soberanistas cristãos.”

Fim do prelúdio.

A fé do papa evangélico

Desde os primeiros dias do seu pontificado, Francisco mostrou-se não ideológico e surpreendentemente apartidário. Apesar da vociferação de alguns de seus detratores, mesmo dentro dos setores mais intransigentes da hierarquia da Igreja, esse papa é definitivamente católico. Mas, ainda mais que isso, ele é cristão.

Semelhante ao seu homônimo papal, Francisco de Assis, a fé e a liderança do papa estão profundamente enraizadas em uma leitura e adesão radicais ao Evangelho de Jesus Cristo.

Como bispo de Roma, ele não está obcecado em tentar mostrar que seus próprios ensinamentos estão em continuidade com os pronunciamentos magisteriais anteriores, especialmente quando esses ensinamentos anteriores provaram-se falhos (ou falsos).

Francisco está mais preocupado em converter a Igreja à radicalidade do Evangelho, mesmo que isso signifique perder poder, prestígio, privilégio e influência mundanos.

Ele não está interessado na preservação de qualquer coisa que não seja essencial para esse Evangelho. Ele também não está afeito a manter qualquer tipo de aparência de que a Igreja – e os papas – nunca possam errar.

Por essa e muitas outras razões, ele tem sido criticado por ser fraco teologicamente.

O cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tem sido um dos críticos mais contundentes, apesar de usar o clássico ardil cortesão vaticano para jogar a culpa disso sobre os conselheiros do papa, em vez de mirar diretamente no próprio papa.

Muitos teólogos profissionais parecem pensar que o Papa Francisco é pouco letrado em teologia. Eles estão muito enganados.

Teologia renovada e em contexto específico

O papa de 82 anos de idade recentemente fez um dos mais importantes discursos teológicos do seu pontificado. É uma pena que ele foi amplamente ignorado, porque foi uma apresentação clara de como ele vê a teologia e o seu papel na Igreja e no mundo de hoje.

Ele fez o discurso no dia 21 de junho em uma faculdade de teologia administrada pelos jesuítas na cidade portuária italiana de Nápoles. Ele foi tão extraordinário na forma como foi apresentado, quanto naquilo que o papa realmente disse.

Antes mesmo de falar, Francisco passou a maior parte da manhã ouvindo apresentações teológicas feitas por vários outros oradores. Só depois disso é que ele ofereceu os seus próprios pensamentos.

O título de seu discurso foi “A teologia segundo a Veritatis gaudium (a constituição apostólica de 2018 sobre as universidades e faculdades eclesiásticas) no contexto do Mediterrâneo”.

É importante notar que Francisco acredita que a teologia só pode ser feita em um contexto real, de carne e osso. Ela nunca pode ser exercida como uma mera ideia ou ideal.

E foi no contexto do Mediterrâneo, berço da civilização ocidental – mas do modo como ele é hoje –, que o papa procurou mostrar como as investigações teológicas da Igreja devem prosseguir.

“O Mediterrâneo é desde sempre um lugar de trânsitos, de trocas e, às vezes, até de conflitos”, disse Francisco.

Ele observou que se trata de uma área que enfrenta várias questões dramáticas, que ele e os líderes muçulmanos destacaram durante sua histórica viagem em fevereiro passado aos Emirados Árabes Unidos.

“Eles podem se traduzir em algumas perguntas que nos fizemos no encontro inter-religioso de Abu Dhabi: como cuidar uns dos outros dentro da única família humana? Como alimentar uma convivência tolerante e pacífica que se traduza em fraternidade autêntica?

“Como fazer prevalecer nas nossas comunidades a acolhida do outro e de quem é diferente de nós por pertencer a uma tradição religiosa e cultural diferente da nossa? Como as religiões podem ser caminhos de fraternidade, em vez de muros de separação?”, relembrou o papa.

O diálogo como algo essencial para a teologia

“Essas e outras questões pedem para ser interpretadas em vários níveis e exigem um compromisso generoso de escuta, de estudo e de debate para promover processos de libertação, de paz, de fraternidade e de justiça.

“Devemos nos convencer: trata-se de iniciar processos, não de fazer definições de espaços, de ocupar espaços... Iniciar processos!”, disse ele às pessoas reunidas no pátio ao ar livre debaixo do famoso sol napolitano.

Diálogo sobre as grandes questões para a nossa humanidade comum, como filhos do Deus Único, em prol da convivência pacífica... Tudo isso faz parte da teologia na visão de Francisco.

“Não se perde nada com o diálogo. Sempre se ganha. No monólogo, todos perdemos, todos”, alertou.

Ele disse que o diálogo “não é uma fórmula mágica”, mas é essencial – especialmente com os muçulmanos e os judeus – para a renovação da teologia de maneira interdisciplinar.

“Os estudantes de teologia devem ser formados no diálogo com o judaísmo e com o Islã para compreender as razões comuns e as diferenças das nossas identidades religiosas e, assim, contribuir mais eficazmente para a edificação de uma sociedade que aprecie a diversidade e favoreça o respeito, a fraternidade e a convivência pacífica”, disse.

Tal diálogo deve ser marcado pela compaixão e pela misericórdia, acrescentou o papa.

“É importante que os teólogos sejam homens e mulheres de compaixão – eu enfatizo isto: que sejam homens e mulheres de compaixão –, tocados pela vida oprimida de muitos, pelas formas de escravidão de hoje, pelas chagas sociais, pelas violências, pelas guerras e pelas enormes injustiças sofridas por tantos pobres que vivem nas margens desse ‘mar comum’”, disse.

Uma teologia sem tal compaixão não estaria enraizada na realidade, mas sim em uma sala de aula, afirmou o papa. Ele disse que ela seria “uma teologia de laboratório, uma teologia pura e ‘destilada’ como a água, que não tem gosto de nada”.

Diálogo como acolhida

“Eu diria que a teologia, particularmente nesse contexto, é chamada a ser uma teologia da acolhida”, insistiu Francisco.

Ele disse que ela deve “desenvolver um diálogo sincero com as instituições sociais e civis, com os centros universitários e de pesquisa, com os líderes religiosos e com todas as mulheres e os homens de boa vontade, para a construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna, e também para o cuidado da criação”.

O ponto mais importante para o Papa Francisco é que o núcleo essencial da fé cristã – o querigma – seja o coração da teologia e da evangelização (da pregação da Boa Nova).

“Não a apologética, não os manuais: evangelizar. No centro está a evangelização, que não significa proselitismo”, disse.

“No diálogo com as culturas e as religiões, a Igreja anuncia a Boa Notícia de Jesus e a prática do amor evangélico que Ele pregava como uma síntese de todo o ensinamento da Lei, das visões dos Profetas e da vontade do Pai...

“Somente na escuta dessa Palavra e na experiência do amor que ela comunica é que se pode discernir a atualidade do querigma. O diálogo, assim entendido, é uma forma de acolhida”, acrescentou o papa.

Questionando a tradição e crescendo a partir das suas raízes

Mas isso também significa que os teólogos devem “revisitar e reinterrogar continuamente a tradição”.

“Revisitar a tradição! E reinterrogar”, enfatizou Francisco. Ele disse que temos uma “tradição viva” que pode ajudar a entender as questões contemporâneas.

“Contanto que seja relida com uma sincera vontade de purificação da memória, ou seja, sabendo discernir o quanto ela foi veículo da intenção original de Deus, revelada no Espírito de Jesus Cristo, e o quanto, ao contrário, ela foi infiel a tal intenção misericordiosa e salvífica”, afirmou.

O Papa Francisco disse que o cristianismo ocidental “aprendeu com muitos erros e momentos críticos do passado”. Isso irá ajudá-lo a “retornar às suas fontes na esperança de poder testemunhar a Boa Notícia aos povos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul”.

“Mantendo a mente e o coração fixos no ‘Deus misericordioso e piedoso’ (cf. Jn 4, 2)”, a teologia deve encorajar “as populações do Mediterrâneo a rejeitarem toda tentação de reconquista e de fechamento identitário”, que são o resultado do medo, de acordo com o papa.

“A teologia não pode ser feita em um ambiente de medo”, disse.

A teologia renovada que Francisco quer

“Eu sonho com faculdades teológicas em que se viva a convivialidade das diferenças, em que se pratique uma teologia do diálogo e da acolhida; em que se experimente o modelo do poliedro do saber teológico em vez de uma esfera estática e desencarnada. Em que a pesquisa teológica seja capaz de promover um desafiador, mas convincente processo de inculturação”, disse o Papa Francisco, resumindo seu longo discurso.

E aqui está a “moral da história”:

“A teologia depois da Veritatis gaudium é uma teologia querigmática, uma teologia do discernimento, da misericórdia e da acolhida, que se põe em diálogo com a sociedade, as culturas e as religiões para a construção da convivência pacífica de pessoas e povos.”

Isso não é uma rendição da fé cristã ou uma diluição da fé da Igreja na verdade da mensagem do Evangelho. Ao contrário, é uma audaz afirmação de ambas as coisas.

E esse é o único modo responsável – e evangélico – de fazer teologia em um mundo onde alguns usam a religião para dividir em vez de unir, para destruir em vez de construir, para incutir medo em vez de amor e esperança.

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