A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz historiador

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13 Junho 2017

Ao aprovar o princípio das cotas étnico-raciais, a Unicamp se alinhou às grandes universidades do mundo, como Harvard, Yale e Columbia, que adotam a diversidade como critério para o ingresso de seus estudantes. O pressuposto dessas instituições é que a diversidade melhora a qualidade. A afirmação é do historiador Sidney Chalhoub, professor titular colaborador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e docente do Departamento de História da Universidade de Harvard (EUA).

Foto: Antonio Scarpinetti/Jornal da Unicamp

Na entrevista que segue, concedida ao Jornal da Unicamp, 07-06-2017, Chalhoub salienta a importância das ações afirmativas como mecanismo de reparação e promoção de justiça social e contesta argumentos utilizados pelos críticos das cotas, como a necessidade de preservar a meritocracia. “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar”, defende.

Eis a entrevista.

Quem tem medo das cotas étnico-raciais?

Quando esse assunto começou a ser discutido no Brasil, ainda nos anos 1990, houve uma resistência grande entre intelectuais e acadêmicos que consideravam que a adoção desse sistema provocaria tensões raciais na sociedade brasileira. No entanto, o que se viu, conforme essas políticas foram sendo adotadas, primeiro isoladamente por algumas universidades estaduais, e depois em várias universidades federais, até que uma legislação federal sobre o assunto fosse aprovada, foi que as cotas foram muito bem acolhidas no interior das instituições. Hoje, o que se vê na Unicamp é a defesa das cotas pelo movimento estudantil. A defesa não está restrita ao movimento negro. A partir das experiências das universidades estaduais e federais, houve o entendimento de que a diversidade do corpo discente contribui para a qualidade acadêmica e para a produção de conhecimento nas universidades. Os que têm medo das cotas são os setores que têm tido acesso às universidades públicas e gratuitas como uma prerrogativa sua, de muitas décadas. São pessoas que vão a escolas particulares porque têm maior poder aquisitivo e que defendem a exclusividade de acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade. Esta é uma distorção grande na sociedade brasileira.

Entretanto, não é possível generalizar. Hoje você tem um contingente grande de estudantes da Unicamp que são brancos e de classes favorecidas e que também entendem a importância das cotas para promover a diversidade no corpo discente e para promover diferentes perspectivas a respeito dos assuntos abordados pela universidade. Esse novo contingente de alunos colocará em cheque vários hábitos da universidade. Vai forçar um questionamento a respeito da importância da existência da universidade pública, a quem ela deve servir e que tipo de conhecimento ela deve produzir. Essa experiência é muito bem-vinda. A resistência às cotas é mais barulhenta que generalizada. O país convive bem com a ideia das cotas. O engajamento dos estudantes da Unicamp em geral mostra a receptividade à ideia. As pesquisas de opinião mostram que a maior parte da população brasileira é favorável às políticas de ação afirmativa e o próprio Supremo Tribunal Federal aprovou por unanimidade a necessidade dessas políticas para combater o racismo e as consequências dele na sociedade brasileira.

O princípio das cotas é um tema novo?

Não. O tema está longe de ser uma originalidade brasileira. As melhores universidades do mundo, aquelas que a própria Unicamp utiliza como referência para qualificar suas atividades, adotam a diversidade no ingresso dos estudantes há bastante tempo. Harvard, Yale e Columbia, para ficar em três exemplos, adotam políticas agressivas de promoção da diversidade do corpo discente. Não fazer isso deixaria a Unicamp na contramão da história. A decisão do Conselho Universitário em aprovar o princípio das cotas foi muito bem-vinda.

Correntes contrárias às cotas étnicos-raciais argumentam que esse tipo de política pode comprometer a qualidade do ensino, ao permitir o ingresso de estudantes “despreparados” na vida acadêmica. Como o senhor analisa esse tipo de justificativa?

A primeira observação a respeito disso é que, como mencionei anteriormente, o pressuposto das grandes universidades do mundo é que a diversidade melhora a qualidade. Obriga a um contraste de pontos de vista. Enquanto a universidade existe como prerrogativa de uma mesma classe social, de uma mesma raça e dos mesmos setores, ela não se abre ao tipo de questionamento e de tensões que são criativas, oriundas da necessidade da convivência de grupos sociais e raciais com perspectivas diferentes. O segundo ponto é que, na prática, todas as pesquisas existentes demonstram claramente que o desempenho dos estudantes cotistas é igual ou superior ao desempenho dos não cotistas nas universidades estaduais e federais que adotaram esse tipo de política afirmativa. Isso é fácil de entender.

Ao contrário da propaganda maldosa que se faz, a adoção de cotas não tem nada a ver com a exclusão do mérito. Tem a ver com a utilização de critérios de seleção que promovam a competição entre estudantes que tiveram oportunidades educacionais semelhantes até o momento em que se candidatam ao ingresso na universidade. Dessa forma, os estudantes negros e indígenas que serão selecionados representarão uma fração dos que postularam uma vaga na universidade. Serão, portanto, os melhores entre eles. A tendência é que sejam ótimos alunos, tanto quanto os não cotistas. Por fim, a universidade evidentemente tem o desafio de lidar com eventuais dificuldades que existam entre os estudantes de modo geral. Tanto as dificuldades de origem socioeconômica quanto as acadêmicas e pedagógicas. Nada disso impede, porém, que a apolítica de cotas seja implementada. Essa é uma dívida das universidades públicas em relação à população afrodescendente. Obviamente, os programas de permanência estudantil são tão importantes quando a criação de oportunidades de ingresso. Esse é um desafio que a Unicamp terá que enfrentar.

Numa das audiências públicas promovidas em 2016 pela Universidade para discutir o princípio das cotas, um professor universitário de origem indígena disse que os indígenas não querem mais ser apenas estudados pela academia. Eles também querem contribuir para a construção da ciência...

Esses novos sujeitos que ingressam na universidade representam um deslocamento importante de negros, indígenas e populações pobres, que são objeto de estudos da academia, mas que raramente têm a oportunidade de se tornarem sujeitos do conhecimento. Isso também é uma experiência fundamental e epistemológica. Isso descentraliza o conhecimento e permite que perspectivas diferentes passem a fazer parte do cenário das universidades. Um assunto no qual a universidade é bastante carente diz respeito a uma reflexão conjunta sobre que tipo de conhecimento ela deve produzir e para quem são esses conhecimentos.

Será que o conhecimento que a universidade produz na área de energia, por exemplo, deve estar voltado às necessidades do mercado ou deve priorizar as necessidades de preservação do planeta? Até que ponto os conhecimentos gerados na área médica priorizam o bem-estar do conjunto da sociedade? O conhecimento de ponta pode ser produzido em várias frentes. A escolha de que frentes serão priorizadas é uma questão que precisa ser politizada na universidade. Não se pode partir do pressuposto de que o conhecimento deve necessariamente atender às necessidades do mercado. É preciso haver debate a respeito dos motivos pelos quais a instituição deve investir nesta ou naquela frente. Na minha opinião, o critério fundamental é produzir o bem-estar social. Esse é um tema que a universidade discute pouco.

O senhor mencionou a questão do mérito numa resposta anterior. Correntes contrárias às cotas alegam que o modelo desconsidera a meritocracia, o que geraria injustiças. O que o senhor pensa a respeito desse tipo de argumento?

O fundamental é questionar a ideia da meritocracia como um valor abstrato universal, que justifique a existência de alguma medida comum da aptidão e de inteligência da humanidade. Fica parecendo que a meritocracia partiu de uma definição abstrata, excluída das circunstâncias sociais e materiais de vida das pessoas. A universidade, sendo pública, é da sociedade inteira. O ideal seria que todos aqueles que tivessem condições intelectuais e interesse em entrar na universidade, obtivessem uma vaga. Como não há nenhuma perspectiva de que nossos políticos priorizem o acesso ao ensino universitário, é preciso fazer algum tipo de seleção. A seleção deve fazer com que a sociedade esteja representada no corpo discente da universidade. Não se pode ter somente uma determinada raça ou classe social na universidade.

Já que o ingresso não pode ser da maneira universal, que a sociedade esteja presente, então, por meio da representatividade. Esse foi o princípio aprovado pelo Consu. Não é possível que todos os candidatos entrem em competição pelas vagas como se tivesse havido uma igualdade ideal de oportunidade entre eles. Não se pode fazer com que o aluno negro, pobre e que estudou numa escola pública localizada na periferia de Campinas concorra em igualdade de condições numa prova padronizada com alunos cujos pais cursaram universidade, têm alto poder aquisitivo e tem alto acesso ao capital simbólico. É preciso que a universidade busque equilibrar essa disputa.

Desse modo, quando há reserva de vagas para negros e pessoas de baixa renda, a competição se dá entre eles, entre iguais. Então, não há exclusão do mérito. É uma maneira de ter o mérito qualificado pelas condições sociais e econômicas dos candidatos, e não uma competição que exclui alguns segmentos da sociedade desde sempre. Então, a ideia da meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar.

As cotas étnico-raciais constituem uma política de reparação ou de justiça social?

As duas coisas. Se você pensar na história de São Paulo, onde a Unicamp está localizada, a prosperidade do Estado, principalmente a partir da expansão do café, na década de 30 do Século XIX, se deu por meio de duas ilicitudes praticadas pela classe proprietária de maneira abusiva durante décadas. Ela se beneficiou do contrabando de africanos. A lei brasileira de 7 de novembro de 1831 havia proibido o tráfico africano de escravos, mas a propriedade cafeicultora fluminense e paulista se formou por meio da continuidade do tráfico. Um contingente formado por 750 mil africanos foi trazido ao Brasil ilegalmente, em condições desumanas. Esses negros foram escravizados e seus descendentes também. Além disso, a formação da grande propriedade cafeicultora ocorreu através de invasão das terras. Trabalho e terras foram obtidos pela classe dominante ao arrepio da lei. Portanto, a reparação é uma questão que deve ser levada a sério. Se não for levada a sério do ponto de vista legal, que pelo menos seja levada a sério sob o aspecto da promoção de uma justiça social que é devida a essa população cuja presença no país se deu por meio de crimes cometidos pelos cafeicultores.

No caso de São Paulo, também se adotou políticas afirmativas em favor de imigrantes. No final do Século XIX, foram adotadas políticas para subsidiar a imigração de europeus brancos, italianos inicialmente. A vinda desses imigrantes era subsidiada pelo tesouro da Província de São Paulo e depois pelo Estado de São Paulo, o que favoreceu a adaptação dessas pessoas ao país. Tratou-se de uma política de inclusão social que jamais existiu para a população negra até recentemente. Portanto, já houve no Brasil a adoção de política de ação afirmativa para brancos europeus e seus descendentes. Dessa maneira, não há nada demais que se veja como reparação as políticas de cotas para negros e indígenas.

Além disso, é importante pensar que, no caso da população negra, quando houve uma aceleração no processo de emancipação escrava, nas duas últimas décadas da escravidão, ocorreu uma mudança na lei eleitoral, em 1881, que proibiu o voto de analfabetos, o que não existia antes. Isso, numa situação em que não havia escola primária para negros. Devido à falta de acesso à instrução, nas primeiras décadas após a emancipação, a população negra ficou excluída da política formal. Esse foi outro movimento importante de desvantagem dessa população na luta por direitos na história do país. Eu entendo que as pessoas esbravejem quando perdem privilégios. Mas as razões históricas, sociais e filosóficas em favor das cotas justificam plenamente a medida. Não há futuro possível com esse perfil de desigualdade se reproduzindo ao longo do tempo. É uma missão de todos superar essa desigualdade.

Aproveitando essa reflexão, o quão prejudicial tem sido para o Brasil essas posturas vinculadas à nossa herança escravocrata?

Quando as pessoas se espantam ao constatar que a corrupção no Brasil está tão generalizada, isso é pura ignorância histórica. Como eu citei, o maior exemplo de corrupção na história do país talvez tenha sido a importação ilegal de centenas de milhares de trabalhadores por meio do tráfico africano. Isso no período de formação do Estado nacional, nas décadas de 20 e 30 do Século XIX. Esse Estado se organizou em grande medida para defender os interesses dos contrabandistas e dos cafeicultores. A corrupção está no cerne da formação do Estado brasileiro. Qualquer solução simplista e messiânica para esse problema não faz sentido. É preciso reconhecer a complexidade da questão, o que pode levar a sociedade brasileira a superar essa corrupção crônica que existe no país. Isso tem a ver com a escravidão. A escravidão foi, insisto, a pedra de toque da formação do Estado nacional. A corrupção é capilar na sociedade brasileira e essa capilaridade esteve ligada à própria escravidão no Século XIX.

No contexto da aprovação do princípio das cotas étnicos-raciais, a Unicamp anunciou a criação da Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. Qual a importância dessa instância para promover a reflexão sobre esses aspectos que o senhor abordou?

As cotas vão envolver muitas coisas. Vão envolver mudanças curriculares, para que as disciplinas ligadas à história do racismo e do pensamento negro e indígena sejam disseminadas, de maneira que se reconheça a densidade desse tipo de conhecimento. Há uma série de movimentos que apontam para uma receptividade em relação às cotas. Mas é preciso ser vigilante. Haverá tentativas de fraudes no vestibular. Haverá tentativa de agressões gratuitas, como a do professor da Medicina, que felizmente não representa o pensamento da comunidade da faculdade. É preciso ter acompanhamento desses assuntos. É preciso acolher os ingressantes, oferecer condições para que a inclusão ocorra de fato e fazer com que o conhecimento que essas pessoas trarão à universidade seja reconhecido e disseminado. Tudo isso exige um acompanhamento próximo. Desse modo, a criação da secretaria, que terá essa atribuição, é bem-vinda.

O Brasil está pronto para as cotas. A Unicamp está pronta, sim, para adotar as cotas. E a comunidade está mobilizada nesse sentido. Acho que a nova gestão da Reitoria, que herdou a discussão da gestão anterior, começa muito bem, inclusive para tentar assegurar a governabilidade num momento difícil da universidade, ao abraçar uma causa que é bastante popular entre os estudantes, funcionários e grande parte dos docentes. O Consu, que é o parlamento da universidade, já aprovou. Resta aplicar a política da melhor forma possível e assegurar a permanência estudantil. Daqui a poucos anos, teremos finalmente médicos, engenheiros, físicos, historiadores e biólogos de alto nível formados numa das melhores universidades do país. Pessoas que servirão de exemplo e inspiração para a transformação da sociedade brasileira em uma sociedade racialmente mais justa.

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