Itália. ONGs que trabalham com migrantes são acusadas de fraude. Igreja se mantém cautelosa

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12 Mai 2017

té agora, a Igreja Católica na Itália e o Vaticano adotaram uma postura de cautela diante do escândalo envolvendo acusações em que ONGs estariam conduzindo migrantes a distâncias excessivas para trazê-los a portos italianos, a fim de receber financiamento público pelo serviço prestado. Alguns creem que o que está acontecendo é uma prática fraudulenta, mas outros defendem as ONGs e o compromisso humanitário por elas desempenhado.

A reportagem é de Claire Giangravè, publicada por Crux, 11-05-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Representantes católicos adotaram uma abordagem cautelosa depois que um vídeo recente publicado na internet sugeriu que o serviço de ajuda aos migrantes no Mar Mediterrâneo está se transformando num esquema fraudulento, permitindo que ONGs e traficantes de seres humanos recebam verbas à custa de pessoas vulneráveis.

Este escândalo provocou uma guerra entre Estados soberanos, ONGs, organizações criminosas e a União Europeia.

No centro do debate está a crise migratória da Europa, a pior que o continente tem enfrentado desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com um vídeo postado no YouTube pelo aluno italiano Luca Donadel, parte crise neste momento pode ser artificial. Ele acusa ONGs de estarem pegando migrantes a uns poucos quilômetros do litoral da Líbia e trazê-los para a Europa ilegalmente no intuito de manter o fluxo de dinheiro envolvido no trabalho realizado.

“Os horrores da guerra, o sofrimento e as fugas constantes, os riscos do mar aberto, a exploração econômica e sexual não bastaram”, lê-se em artigo recente publicado no jornal L’Osservatore Romano com base na pesquisa de Donadel.

“Um outro escândalo surge na pele dos imigrantes: a suspeita de manipulação econômica e política nas missões de resgate, suspeita que infelizmente não está totalmente destituída de fundamento”.

Por meio de programas sofisticados e caros de computador, Donadel pôde traçar as trajetórias dos barcos operados por ONGs no Mar Mediterrâneo, e descobriu uma história bem diferente daquela veiculada pelos principais meios de comunicação.

Enquanto as manchetes afirmam que os migrantes estão sendo salvos no canal da Sicília, entre a ilha italiana e a Tunísia, na verdade as ONGs “salvadoras” estavam viajando quilômetros em direção à Líbia onde encontravam barcos abandonados transbordando de migrantes e traziam de volta para a Itália.

De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, se uma embarcação encontra pessoas em necessidade de ajuda, ela é obrigada a levá-las para o porto seguro mais próximo, o que, no caso dos migrantes encontrados no litoral da Líbia é a cidade de Zarzis, na Tunísia.

Em entrevista ao Crux, Mario Marazziti, presidente do comitê para assuntos sociais da Câmara dos Deputados italiana e ex-porta-voz da comunidade de Sant’Egidio, movimento católico de leigos atuante no setor migratório, aponta para o fato de que a Tunísia não representa um porto seguro devido à agitação social e política.

“É também necessário garantir ‘a possibilidade de pedir asilo e ter uma acolhida digna’”, disse Marazziti. “É por isso que essas pessoas são trazidas para a Itália e, através de uma outra rota, para a Grécia”.

Mas por que, pergunta-se Donadel, as ONGs estão viajando três vezes a distância para trazer estas pessoas para a Itália? De acordo com ele, a resposta é simples: lucro.

Citando um livro publicado em 2016 por Mario Giordano, intitulado “Profugopoli”, Donadel aponta para os lucros exorbitantes feitos por ONGs desde que o início da crise migratória. Só a União Europeia repassa aproximadamente 100 mil dólares para ajudar a Itália na acolhida aos migrantes, com este país ainda tendo em mãos um cheque de 3 bilhões de dólares restante.

A maior parte deste dinheiro é destinado a ONGs, as quais, segundo Donadel, estão interessadas em manter um alto fluxo de migrantes. O negócio em torno destas migrações vem crescendo na Itália e na Europa, criando centenas de milhares de empregos.

Entre janeiro e abril de 2017, cerca de 36 mil pessoas deixaram a Líbia na esperança de encontrar uma vida melhor na Itália. Este número representa um aumento de 30% comparado ao ano anterior.

E o mais importante: Donadel acusa as ONGs que enviam migrantes para a Europa de serem os responsáveis pela onda de mortes no mar. Em 2013, o governo italiano iniciou a Operação Mare Nostrum, que patrulhou o Mediterrâneo num esforço para estancar a crise migratória. Um ano depois, foi substituída pela Operação Triton, sob a liderança da agência de segurança fronteiriça da ONU, a Frontex.

Mas dados demonstram que, desde a implementação destas organizações, o número de mortes no mar multiplicou-se por 10. Desde as 700 mortes registradas em 2013, o número aumentou para mais de 5 mil em 2016, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR.

“Sem ONGs, o número dos que morreram no mar seria o dobro, provavelmente muito, muito maior”, sublinhou Marazziti.

“Se as ONGs não fizessem este trabalho nos 20 quilômetros de litoral líbio, haveria 1.100 quilômetros marítimos sem controle, e um número muito mais alto de casualidades”.

A realidade é que os traficantes estão hoje confiantes de que botes operados por ONGs irão resgatar estas pessoas tão logo deixam o litoral, e portanto contam com padrões ainda mais baixos de barcos para essa transferência. Enquanto antes tinham de se preparar para jornadas longas e angustiantes ao longo do Mar Mediterrâneo, atualmente eles sabem que o resgate chegará.

Infelizmente, muitas vezes a missão de resgate falha, ou chega tarde demais para evitar tragédias.

Mas uma outra resposta para a explicação da onda de mortes é a norma da Frontex de destruir os barcos dos traficantes assim que salvam os passageiros e a tripulação. Este sistema, cujo objetivo é desencorajar os traficantes de navegar, teve o efeito não previsto de forçá-los a usar, cada vez mais, embarcações menos resistentes para as viagens.

Porém, de acordo com um advogado de Catania, na Sicília, Antonio Zuccaro, alguns traficantes até mesmo telefonam para os barcos das ONGs a fim de serem salvos. Na quarta-feira passada, ele apresentou um caso diante da Comissão para a Defesa, do Senado italiano, e em breve irá falar no Alto Conselho do Judiciário.

Mas Marazziti insiste que não existe uma tal conexão e que o advogado não tem nenhuma prova para justificar estas afirmações.

“Ligadas ou não à Igreja Católica, não há ONGs relacionadas com estas realidades, organizações que estejam envolvidas nessa questão. No momento, pelo que parece, há apenas escutas que mostram comunicações entre traficantes e um membro da tripulação de um barco privado. Isso pode acontecer. Raramente as tripulações possuem ligação com as ONGs”, contou ele ao Crux.

Até que haja provas mais robustas, a Igreja Católica vem adotando uma postura de cautela.

“As ONGs salvam vidas: não devemos confundir os que ajudam com os que querem tirar vantagem”, advertiu Dom Nunzio Galatino, secretário geral da Conferência Episcopal Italiana – CEI em entrevista à revista Il Secolo.

A ONG espanhola Proactiva Open Arms tem atuado no Mediterrâneo desde 2015, e até hoje realizou 37 missões e salvou mais de 10 mil pessoas. O seu fundador, Oscar Camps, teve uma audiência de 40 minutos com o Papa Francisco no dia 22 de abril, assim que se iniciaram as acusações contra as ONGs.

Em conversa com a imprensa depois do encontro, Camps disse que a audiência foi uma oportunidade para falar sobre as histórias das pessoas salvas no mar e que o papa é o único líder mundial que tem profundamente a questão migratória em seu coração. Camps reuniu-se com Francisco em 2016, quando o presenteou com o colete salva-vidas de uma menina de 6 anos de idade falecida no mar.

O papa fez da crise migratória uma pedra angular de seu pontificado. Embora reconhecendo que “todo país tem o direito de controlar as suas fronteiras”, Francisco declarou ao jornal espanhol El País em janeiro que ele também estava pedindo à comunidade internacional para que seus países ajam com solidariedade junto aos migrantes.

No começo deste pontificado, o papa lançou uma coroa de flores no Mar Mediterrâneo, palco onde muitos migrantes vieram a falecer, e pediu “por aqueles que, com as suas decisões a nível mundial, criaram situações que conduzem a estes dramas”.

Os migrantes foram abandonados por muitas organizações internacionais e têm pago as consequências “na própria pele”. Mas, segundo ainda Marazziti, as ONGs desempenham uma tarefa que não só é necessária como também humana, e as críticas recentes só lhes dificultam a vida.

“O dano é enorme. É cultural: ele confirma a visão de que tudo é sujo, nada é seguro, e isso prejudica a sociedade”, declarou Marazziti ao sítio Crux.

“Eu não me surpreenderia se dissessem que estes ataques foram incentivados por setores que gostariam de tirar da Itália e de sua guarda costeira o controle dessas operações”, falou. “Talvez no intuito de permitir uma política mais agressiva no futuro, uma prática mais proibitiva, mais forte, e com mais mortes”.

Por enquanto, as ONGs e a União Europeia estão entrelaçadas num debate sobre o cuidado e o tratamento aos migrantes, com a Igreja, em certo sentido, à margem. Só o tempo vai dizer quem surgirá vitorioso, e se os migrantes continuarão a ser as vítimas.

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