Grupo Kaingang segue preso dois meses depois de operação de guerra articulada por ruralistas

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

25 Janeiro 2017

Seis indígenas Kaingang completaram dois meses de prisão nesta segunda-feira, 23. São 60 dias de uma história com detenção "ilegal em massa, abuso de autoridade, violência, segregação e exposição vexatória", conforme relatório acolhido pelo Ministério Público Federal (MPF) e organizado pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo e Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Outros três agricultores foram presos, mas soltos dias depois por força de habeas corpus - a prisão dos indígenas foi mantida e o caso corre agora no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A reportagem foi publicada por Conselho Indigenista MissionárioCIMI, 23-01-2017.

Na madrugada de 23 de novembro, uma operação de guerra acordou a comunidade da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, em Sananduva (RS). Determinada pela Justiça Estadual, com base em um decreto da Prefeitura Municipal, os mandados de prisão foram requisitados pela Polícia Federal com base em investigação da Polícia Civil. Uma verdadeira globalização de esferas, irregularidades e incompetências. Assista aos vídeos da operação aqui.

Na aldeia não houve quem fosse poupado: crianças, mulheres, idosos e idosas. Casas foram revistadas e reviradas, objetos destruídos, gritos no pé do ouvido dos indígenas, arrombamentos. Muitos foram tirados da cama, sobretudo crianças pequenas e de colo. Pais e mães foram humilhados na frente dos filhos e filhas apavorados. Se por um lado a imprensa foi informada previamente da operação, o MPF e organizações de direitos humanos não. Até mesmo cestos e demais objetos tradicionais foram apreendidos.

"Primeiro nos colocaram amontoados sob o sol. Nos deixaram lá. Depois levaram para um galpão onde todos e todas foram colocados deitados, de barriga para baixo e com as mãos na cabeça", relata uma Kaingang que não identificamos por razões de segurança. Com as fotos dos indígenas a serem presos, os agentes levantavam as cabeças pelos cabelos para identificar os rostos.

Elementos que confirmam abusos, excessos e uma particular violência contra os indígenas demonstrando as peculiaridades da operação. "Entre as vítimas da prisão em massa estavam deficientes físicos, adolescentes e idosos. As pessoas foram brutalmente conduzidas a um ginásio (...) mediante abuso de autoridade. Não havia ordem de prisão contra as mesmas", aponta o relatório levado ao MPF.

Mesmo sob segredo de Justiça, a operação foi registrada pela imprensa. "Enquanto os advogados dos investigados não tiveram acesso aos autos do processo, a Polícia Federal violou o segredo de justiça ao levar consigo jornalistas de veículos de comunicação sabidamente contrários à causa indígena", diz outro trecho do relatório. Dois indígenas só não terminaram encarcerados porque os advogados da comunidades perceberam que contra eles não havia mandados.

No relatório ao MPF, é denunciada ainda uma "inconformidade na atuação da Polícia Federal, haja vista que o processo está tramitando na Justiça Estadual. Nas prisões também verificou-se, novamente, abuso de autoridade considerando que duas das onze pessoas presas, foram detidas ilegalmente, pois contra elas não havia mandado de prisão". Tiros de bala de borracha alvejaram indígenas, caso de Laerte Franco.

"A decisão judicial que decretou a prisão preventiva contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para quem “é ilegal a prisão preventiva para a garantia da ordem pública, baseada tão somente na gravidade do fato, na hediondez do delito ou no clamor público” (Habeas Corpus 91.616-3 RS, ministro Carlos Ayres Britto)".

O coordenador do Cimi regional Sul, Roberto Liebgott, afirma que há uma "aberração" nesse caso: "Porque todo o inquérito foi conduzido pela Polícia Civil e os mandados de prisão feitos por uma juíza estadual a pedido da Polícia Federal. Um habeas corpus foi impetrado para que os indígenas possam lutar contra tamanha arbitrariedade em liberdade e esperamos que o caso seja transferido para a Justiça Federal".

O delegado e o decreto

O efetivo mobilizado demonstra intenções que vão além de simplesmente se cumprir mandados de prisão: mais de 150 policiais, três guarnições dos Bombeiros, Polícia Federal, Brigada Militar, Batalhão de Operações Especiais (BOE), Grupo de Pronta Intervenção(GPI), dezenas de viaturas, helicópteros, matilhas de cães e cavalos. Chegaram sorrateiros, como se fossem estourar alguma fortaleza criminosa.

No comando desta ação desproporcional estava o delegado Federal Mário Luís Vieira, personagem alvo de denúncias por parte de indígenas e agricultores. A Kaingang Marcelina da Silva, presa sem mandado e liberada cerca de 4 horas depois, denunciou que foi espancada na cabeça, esbofeteada por uma policial e chamada de “vagabunda” pelo delegado. Todavia, não apenas tais denúncias pesam contra o policial.

"O delegado Mário Vieira não possui imparcialidade para seguir (...) nos processos contra os povos indígenas naquela região. Existem inúmeras denúncias contra ele de ingerência na livre escolha de lideranças, criminalização dos povos indígenas, apoio ao movimento anti-indigenista, abuso de autoridade e ilegalidades em diligências da CPI da Funai", aponta o relatório acatado pelo MPF.

De acordo com os advogados que tiveram acesso aos autos, o delegado faz juízo de valor no pedido de prisão contra os indígenas e manifesta opinião pessoal contrária aos movimentos reivindicatórios que existem na região. "Além disso, há clara tentativa de criminalização pelo delegado, haja vista a tentativa de enquadrar a organização indígena (Kaingang) na Lei de Organização Criminosa (lei 12.850/2013)".

A ação do delegado, contudo, não foi isolada. Contou com uma rede anti-indígena, conforme atesta o relatório entregue ao MPF. "O fundamento da decretação das prisões dos Kaingang expedidas pela Justiça Estadual é a garantia da “ordem pública” e está baseado em Decreto da Prefeitura Municipal de Sananduva". O Decreto, baixado num domingo, dia 20, determinou 'Estado de Calamidade Pública' na cidade.

A Farsul

“Considerando que o clima tenso e hostil provocados pelos atos dos indígenas, beirando as vias do conflito, o que pode resultar em eminente risco à segurança e a vida dos envolvidos, bem como da população sananduvense”, diz um trecho do decreto assinado pelo vice-prefeito de Sananduva, Leovir Fidêncio Antunes Benedetti, horas depois de um incêndio ter destruído plantações de fazendeiros.

A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) acusou publicamente os Kaingang e os agricultores pelo fogo. Sem provas ou quaisquer investigações policiais, o vice-prefeito decretou Estado de Calamidade Pública, um dia depois a PF já tinha solicitado à Justiça Estadual a prisão de seis indígenas e dois agricultores e no dia 23 a operação de guerra, que em tese levaria tempo a ser mobilizada, fez a invasão.

As plantações queimadas pertencem, coincidentemente, aos fazendeiros que não permitiram a Funai realizar o trabalho envolvendo a demarcação física da terra indígena, que teve o Relatório Circunstanciado publicado pelo Ministério da Justiça em 25 de abril de 2011, com 1.916 hectares. Os Kaingang, que contam com o apoio dos agricultores, resistem a tentativas de arrendamento e invasões de terras na região.

"Consideramos a decisão judicial que determinou a prisão dos indígenas e agricultores descabida, pois também desborda dos limites do Estado Democrático de Direito, eis que fundada em Decreto Municipal de legalidade duvidosa, promulgado por órgão que tem se manifestado contrário aos indígenas", diz trecho do relatório. Aos indígenas, tudo pareceu estar perfeitamente encaixado para as prisões e criminalizações.

Histórico de perseguições

Ireni Franco Kaingang foi preso no sábado, dia 19 de novembro, ou seja, antes do incêndio. Seus dois filhos, entre eles o cacique da aldeia, estão com a prisão decretada. Com os familiares e demais membros da comunidade, passaram anos vivendo às margens de uma rodovia. Muitos morreram ali mesmo, atropelados. Depois de recuperado parte do território tradicional, as perseguições tiveram início.

A juíza Estadual Daniele Conceição Zorzi sustentou nos mandados de prisão que Ireni e os filhos agiram de forma "exclusivamente pessoal, praticando crimes comuns, ausente de interesses dos indígenas". No entanto, a defesa dos indígenas rechaça a tese de que os indígenas tenham cometido crimes. O procurador Federal Marcelo Zeni, lotado na Funai, afirma que não há elemento que ateste a prática de tais crimes.

"Pra gente Kaingang é tudo uma armação. Prenderam o Ireni sem dizer quando, como e onde ele cometeu algum crime. Depois aparece o incêndio e a mídia, a Farsul e a Prefeitura de Sananduva dizem que dissemos que íamos incendiar em retaliação ao que fizeram com o Ireni. Em Sananduva dizem até que vamos queimar tudo, matar gente. Tudo mentira", explica um Kaingang.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Grupo Kaingang segue preso dois meses depois de operação de guerra articulada por ruralistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU