Terceirização ampla e irrestrita é rebaixamento das condições de trabalho

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18 Novembro 2016

"Se um projeto como o PLC 30 for aprovado, estaremos chancelando simbolicamente o rebaixamento das condições de trabalho, de produção, de consumo e de convívio humano", escreve Valdete Souto Severo, doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTSRede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social, em artigo publicado por Justificando, 17-11-2016.

Segundo a juíza, "aprovar o PLC 30 é aprovar o calote institucionalizado. Quem perde são os trabalhadores, mas é também a sociedade que, especialmente em caso de terceirização em favor de ente público, acaba pagando a conta. Paga a conta com o aumento do número de benefícios sociais e previdenciários, com a redução do consumo, com a piora na qualidade dos produtos e serviços ofertados, e com a invisibilidade para a qual joga uma parcela significativa da sua população".


Foto: Divulgação. Fonte: Portal Justificando.

Eis o artigo.

Anunciada ontem a pauta do Congresso Nacional, com inclusão do PLC 30, que trata da terceirização ampla e irrestrita, para votação no próximo dia 24/11. É uma dança. Ou melhor: um movimento de guerra, em que estratégias são utilizadas para fazer prevalecer a vontade de alguns, em detrimento da maioria, que ainda resiste.

A inclusão do processo que versa sobre terceirização, na pauta do último dia 09, no Supremo Tribunal Federal (STF), teve o objetivo de impor ao Congresso a votação do PLC 30. Aliás, o Ministro Gilmar Mendes disse isso expressamente. Fazem eles, ou faremos nós. Não fizeram. O processo foi retirado de pauta, mas o Congresso entendeu o recado. E reincluiu em pauta de votação um projeto de lei de 2004, contra o qual a sociedade organizada, através de entidades representativas de classe, dos movimentos sociais e do Ministério Público do Trabalho, vem incessantemente lutando.

Foram realizadas mais de vinte audiências públicas, por todo o Brasil, nas quais denunciados números irrefutáveis. Terceirização é rebaixamento das condições de trabalho; é incentivo ao trabalho infantil ou em condições de escravidão. O material empírico que demonstra isso renova-se a cada dia. Em fevereiro deste ano, a prestadora de serviços Higilimp desapareceu sem pagar salários, vale refeição e vale transporte atrasados há meses.

Em outubro, empregados terceirizados que trabalham no município de Jequié, na Bahia, contratados através da empresa Terceira Visão, protestaram contra o atraso de mais sete meses no pagamento dos salários. Em Porto Alegre, mais da metade das demandas trabalhistas envolve terceirização e na grande maioria delas a prestadora de serviços já desapareceu ou comparece à audiência apenas para dizer que encerrou suas atividades ou não tem patrimônio para adimplir seus débitos.

Os trabalhadores, desesperados, se veem diante de grandes empresas, como instituições financeiras ou companhias telefônicas, que se negam a realizar acordos ou efetuar pagamento espontâneo dos salários não adimplidos, ao argumento de que não tem responsabilidade. Enquanto isso, essas pessoas de carne e osso seguem sua vida na miséria, fazendo empréstimos nessas mesmas instituições financeiras para as quais prestaram serviço, atrasando a conta de telefone e sujeitando-se aos juros abusivos que daí decorrem; pedindo dinheiro a amigos e parentes.

Perdem seus empregos e nada recebem. Não recebem o valor do trabalho que realizaram, mas também lhes é negada a própria condição de trabalhador. A frase “eu nem sei se ele trabalhou ou não em favor da minha empresa”, repetida por prepostos de tomadoras dos serviços de limpeza, vigilância, TI, telemarketing, vendas, entregas, e tantas outras atividades, releva a face mais cruel da terceirização.

O terceirizado, embora muitas vezes sequer conheça a sede da prestadora; embora tenha trabalhado, por meses ou anos, dentro da sede de uma ou mais tomadoras, não tem sequer o direito ao reconhecimento de que trabalhou, de que seu trabalho tornou possível aquele empreendimento, de que foi ele, e mais ninguém, quem levantou pela manhã, tomou um ou dois ônibus, colocou o uniforme e limpou, atendeu, vendeu, protegeu o patrimônio daquela empresa.

Se um projeto como o PLC 30 for aprovado, estaremos chancelando simbolicamente o rebaixamento das condições de trabalho, de produção, de consumo e de convívio humano. A terceirização estimula a realização de contratos mais curtos, aumentando a rotatividade e, portanto, o uso de benefícios sociais como o seguro desemprego. Os acidentes e doenças do trabalho ocorrem com muito mais frequência entre os terceirizados, trazendo consigo consequências sociais e previdenciárias graves. Essas consequências, especialmente a redução da remuneração, tem efeitos diretos sobre o mercado de trabalho, pois a circulação de riqueza depende da existência de sujeitos capazes de consumir e, portanto, bem remunerados.

O projeto de lei abre as portas para a existência de empresas sem empregados, pois permite que toda a força de trabalho necessária à consecução do empreendimento seja contratada por intermédio de terceiros. Essa distância (apenas formal) entre o empregado e o verdadeiro beneficiário da sua força de trabalho, provoca invisibilidade, descomprometimento, e, como consequência, a fragmentação da classe trabalhadora em prejuízo direto à organização sindical.

O direito do trabalho e, portanto, as relações trabalhistas, foram construídas no tempo pela organização e resistência. Pulverizando os trabalhadores, atrelando cada setor da fábrica a uma empresa prestadora diferente, por exemplo, o capital consegue aniquilar essa “sensação de pertencimento” a uma mesma classe de trabalhadores, porque promove a concorrência interna e, com isso, elimina a possibilidade de resistência coletiva organizada. É preciso perceber que qualquer redução de direitos sociais implica, em última análise, piora das condições sociais de vida de toda a população, o que significa dar muitos passos atrás em relação ao projeto de sociedade que instituímos com a Constituição de 1988, promover um retrocesso que certamente terá custos históricos que hoje sequer conseguimos projetar integralmente.

Aprovar o PLC 30 é aprovar o calote institucionalizado. Quem perde são os trabalhadores, mas é também a sociedade que, especialmente em caso de terceirização em favor de ente público, acaba pagando a conta. Paga a conta com o aumento do número de benefícios sociais e previdenciários, com a redução do consumo, com a piora na qualidade dos produtos e serviços ofertados, e com a invisibilidade para a qual joga uma parcela significativa da sua população. A lição de Saramago é mais atual do que nunca: quando tratamos pessoas como animais, elas passam a guiar seus atos pelo extinto de sobrevivência, pois nada mais lhes resta de humano a preservar. Se esse projeto de lei for aprovado ou se o STF chancelar a terceirização através de decisões com repercussão geral, em breve teremos de fechar as portas da Justiça do Trabalho. Sobrará muito pouco para discutir em demandas trabalhistas. Eis mais uma batalha importante a ser travada: não, não, não à terceirização!

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