Lutero: santo ou demônio? Artigo de Giovanni Giavini

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10 Agosto 2016

Mesmo com os seus limites, erros e pecados,  Lutero (falecido em 1546) também aparece como um forte crente em Cristo, ainda ligado ao Credo tradicional de todas as Igrejas. Dentre outras coisas, Lutero acredita na presença "real e também misteriosa" de Cristo na Eucaristia e tem um admirável comentário ao Magnificat de Maria.

A opinião é do biblista e monsenhor italiano Giovanni Giavini, ex-capelão de Sua Santidade, durante o pontificado de João Paulo II. O artigo é publicado por Settimana News, 07-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

1517 – 2017

Em 2017, será celebrado o quinto centenário do início da Reforma luterana, sendo 1517 o ano da publicação em Wittenberg das famosas 95 teses dedicadas por Lutero especialmente à crítica da pregação sobre as indulgências na sua Alemanha. Foi como um fósforo em um barril de pólvora.

No início, Lutero não quis criar outra Igreja, mas apenas reformar evangelicamente a Igreja do seu tempo; assim como não quis eliminar o papado, nem a hierarquia eclesiástica ou imperial: ele pretendia apenas, precisamente, reformar. E certamente tinha muitas razões para isso, mais ou menos conhecidas por qualquer história séria da Igreja. A sua reforma tem motivos históricos muito concretos (incluindo o peso enorme dos impostos eclesiásticos, sobretudo sobre as Igrejas alemãs e sobre os príncipes católicos, até porque estava sendo construída a nova Basílica de São Pedro em Roma). Mas a reforma se baseia, principalmente, em motivos religiosos de fé.

Estes também não eram uma novidade, tendo já havido, nos séculos anteriores, católicos de diferentes níveis, bastante críticos sobre a vida de eclesiásticos e sobre a fé bastante superficial de religiosos e de leigos: a Lutero (talvez exagerando) parecia que toda a religião cristã tinha muito pouco de... cristão, que dependia muito pouco de uma fé profunda em Jesus Cristo; parecia-lhe que tudo ou quase dependia de palavras e obras humanas, consideradas por si mesmas meritórias: ofertas em dinheiro (especialmente para lucrar fáceis indulgências), penitências exteriores, devoções a Nossa Senhora e relíquias, procissões e festas, peregrinações, acúmulo de missas, obediências a superiores e a votos expressos como por escravos a estruturas jurídicas etc.

Em suma: sou eu quem me salvo, ou é Jesus o meu salvador? São as minhas obras que importam, ou é a fé na obra de Deus realizada em Cristo morto e ressuscitado? Essa é a pergunta de Lutero, dentre outras coisas, obcecado pelo medo do inferno, também para ele, pecador.

Obras humanas ou obra de Deus?

Lutero, cada vez mais decisiva e polemicamente (a polêmica vale, mas ofusca as ideias), desloca a ênfase da sua vida de severo religioso agostiniano e da sua pregação oral e escrita, dirigida à hierarquia eclesiástica, aos príncipes e ao povo, das obras humanas à obra da graça de Deus em Cristo, que só a fé me abre: apenas esta basta para a minha "justificação" diante de Deus, ou seja, para poder me colocar diante d’Ele como "justo embora pecador".

Lutero afirma isso especialmente com base no seu Santo Agostinho (o doutor da Graça!) e no estudo de São Paulo, em particular da carta aos Romanos, à qual dedica anos de pesquisa apaixonada e de ensino.

Obviamente, essa sua ênfase na Graça e na fé justificante imediatamente levanta a questão: e as obras humanas não importam em nada? Posso, portanto, agir como eu quiser e como me agradar, sem qualquer preocupação moral e sem qualquer atenção a leis eclesiásticas ou civis (incluindo aquelas sobre os impostos!), a autoridades externas à minha fé? Não é por nada que os camponeses alemães também elogiariam Lutero, que, porém, depois, os desapontaria amargamente.

O problema fé-obras é imediatamente sentido em todos os níveis e continuará angustiando os próprios protestantes por muito tempo, mas, obviamente, acima de tudo, os católicos. Ou, melhor, de fato, parece que foi sobretudo essa discussão sobre a obediência a leis e a hierarquias que provocou a excomunhão de Lutero, ocorrida em 1520 por parte do Papa Leão X, embora depois de tentativas de diálogo. O problema, além de contingente e econômico, era e é realmente crucial, e o próprio Lutero sabia disso.

Qual é, então, o seu verdadeiro pensamento a respeito? Escutemos uma página dele, escrita em 1522, na introdução ao seu comentário à carta de São Paulo aos Romanos; é uma página nada fácil, mas merece atenção pela sua substância, uma vez aproximada com liberdade de espírito. Transcrevo-a quase toda, tomando-a de V. Vinay, Scritti religiosi di Lutero (Turim: Utet, 1967, pag. 520).

Fé e justiça diante de Deus

Fé não é aquela humana ilusão e aquele sonho que alguns pensam que é a fé (...) A fé, em vez disso, é uma obra divina em nós, que nos transforma e nos faz nascer de novo por Deus. Ela mata o velho Adão, transforma a nós, homens, completamente, no coração, na alma, no sentimento e em todas as energias e traz consigo o Espírito Santo. Oh, a fé é coisa viva, ativa, operante, potente, razão pela qual é impossível que o bem não opere continuamente (...) Fé é uma confiança viva e audaz na graça de Deus, tão certa desta que morreria mil vezes em vez de duvidar dela. E tal confiança e conhecimento da Graça divina nos torna felizes, corajosos e alegres diante de Deus e de todas as criaturas por obra do Espírito Santo na fé.

Por isso, o homem se torna disposto, sem restrição, e alegre em fazer o bem a todos, em servir a todos, em suportar todas as coisas, no amor e no louvor a Deus que manifestou nele tal Graça. Portanto, é impossível separar as obras da fé, assim como é impossível separar calor e esplendor do fogo. Por isso, guarda-te dos teus falsos pensamentos e das conversas vãs que querem ser inteligentes e fazer julgamentos sobre a fé e sobre as boas obras, enquanto são sumamente tolos. Pede que Deus opere em ti a fé, ou, independentemente do que tu possas imaginar ou fazer, sempre permanecerás sem a fé.

Justiça (em relação a Deus) é apenas essa fé, e ela se chama justiça de Deus, ou seja, justiça que vale diante de Deus, porque Deus a dá e a coloca na conta da justiça por amor de Cristo, nosso mediador, e leva o homem a dar a cada um o que lhe deve. Mediante a fé, o homem é purificado do pecado e encontra prazer nos mandamentos de Deus. Desse modo, ele dá glória a Deus e lhe dá o que Lhe deve. Ele serve de bom grado aos homens naquilo que pode e, assim, dá a cada um o que lhe deve.

Natureza, livre vontade e as nossas forças não podem implementar essa justiça (...) Por isso, é hipocrisia e pecado tudo o que ocorre fora da fé ou na incredulidade, por mais esplêndido que se queira [talvez como a Basílica de São Pedro em construção].

Esplendores e limites

Várias vezes me aconteceu de ler essa página, sem dizer o seu autor, até mesmo para grupos de padres. A reação: "Uma página belíssima! Deve ter sido o papa que a escreveu!". Surpresa e incredulidade, depois de conhecer o seu autor.

Efetivamente, é uma página muito bonita, fruto de uma grande fé em Cristo e no seu Deus, aberta a uma imensa esperança também para camponeses e pobres pecadores de todas as categorias, clara sobre a conexão quase imediata entre fé e boas obras. Estas são vistas não como méritos, mas apenas como fruto da fé.

De qual fé? Não a da Igreja (embora Lutero nunca tenha querido excluí-la), mas apenas ou quase a "minha". Para ele, essa é determinante, e basta, sem qualquer necessidade de autoridades diversas para me ensinar o Credo e a moral.

É sacrossanto o destaque posto sobre a fé pessoal. Porém – e provavelmente esse é o erro mais grave de Lutero – tudo ou quase tudo acaba fechado no individualismo, um individualismo ainda crente e cristão, mas não católico-romano (talvez seja significativo que, na página lida acima, não se faça referência a hierarquias); mas, depois, esse individualismo desembocará no individualismo cartesiano do "penso, raciocino (não mais creio), logo sou" e no individualismo moderno do "na minha opinião, a verdade e a justiça são...".

Junto com esse individualismo, entrevê-se naquela página o pessimismo luterano (embora corrigido em outras páginas): eu, sozinho, não posso fazer nada de bom ou, melhor, sou sempre e para sempre um pecador destinado à perdição. A única alavanca de justificação e de salvação é a Graça de Deus e a fé em Cristo. Na verdade, Lutero reconhece que cada um, embora imbuído de pecado, pode, ao menos, "pedir que Deus opere nele a fé", e portanto, depois e sem qualquer mérito verdadeiro, pode saber "dar a cada um o que lhe deve". É sabido que o catolicismo enfatizava e enfatiza ainda a importância, ao lado e depois da Graça, da liberdade humana, até uma excessiva ênfase nos "méritos" pessoais (embora o Concílio de Trento já negasse a existência de verdadeiros méritos).

Das lutas ao diálogo

Infelizmente – e apesar das tentativas de diálogo –, até no Concílio de Trento (1538-1563), por quase cinco séculos, ninguém se entendia e se combatia até mesmo sangrentamente (cf. a guerra dos 30 anos na Alemanha, 1608-1648). Lutero também foi caluniado por católicos e incompreendido por muitos protestantes ou, melhor, até mesmo bastante rejeitado por eles. Apenas há cerca de um século é que Lutero foi reavaliado (talvez mais entre nós do que entre eles) e mais compreendido. Mesmo com os seus limites, erros e pecados, Lutero (falecido em 1546) também aparece como um forte crente em Cristo, ainda ligado ao Credo tradicional de todas as Igrejas. Dentre outras coisas, Lutero acredita na presença "real e também misteriosa" de Cristo na Eucaristia e tem um admirável comentário ao Magnificat de Maria.

Um dos mais visíveis sinais desse novo clima é a surpreendente Declaração Conjunta sobre a Justificação, assinada em 1999 por duas comissões oficiais, uma pontifícia e a outra de pastores e teólogos protestantes: católicos e luteranos, substancialmente, estão de acordo sobre aquele tema crucial!

Outro sinal será o discurso do Papa Francisco na Suécia, para a inauguração oficial do quinto centenário do início da Reforma Luterana. Seria bom se, recuperando também os valores fundamentais de Lutero, todos juntos conseguíssemos fazer redescobrir em todas as Igrejas e na humanidade inteira a luz esplêndida da pessoa e da mensagem de Jesus. Não precisamos disso? O resto, ou seja, outros aspectos mais ou menos importantes do diálogo católico-luterano, podem esperar por um futuro próximo. Por enquanto, o essencial.

* * *

Para saber mais:

  • Walter Kasper, Martin Lutero. Una prospettiva ecumenica, Ed. Queriniana, 2016, pp. 80;
  • Stefano Cavallotto, “Lutero e la riforma tedesca”, in Storia religiosa della Germania, Ed. Centro Ambrosiano, 2016, vol. I, pp. 241-282;
  • Michel Lemonnier, Storia della Chiesa, Ed. Isg, 2013, pp. 307-322.

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