"O povo de Deus acolheu bem a Amoris laetitia." Entrevista com Víctor Manuel Fernández

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14 Junho 2016

"É preciso convidar os pastores e os leigos para que leiam e discutam especialmente os capítulos 4 e 5 da Amoris laetitia. O capítulo sobre a doutrina, o terceiro, é muito clássico. Mas pede que todo o ensinamento sobre o matrimônio seja relido à luz do querigma, e nós devemos fazer isso. A grande maioria do povo de Deus acolheu bem o documento." A afirmação é do arcebispo Víctor Manuel Fernández, reitor da Universidade Católica Argentina, teólogo muito próximo do papa.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 13-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

O senhor participou da comissão encarregada de escrever o documento final do Sínodo: como o documento papal levou em conta os trabalhos sinodais?

O texto da Amoris laetitia está repleto de citações dos relatórios finais dos dois Sínodos. Mas é preciso entender o "Sínodo" como um caminho, que inclui as respostas de todo o mundo que chegaram a Roma, muitíssimas cartas que o papa recebeu ao longo daqueles dois anos e, especialmente, a escuta pessoal do papa, que recebia cada palavra dos Padres sinodais. Muitas daquelas ideias talvez não acabaram nos dois relatórios finais, mas, para o papa, também eram importantes. Assim, o papa criou aquele "poliedro" que não entendemos se levarmos em consideração cada opinião isolada. No entanto, é verdade que o papa acrescentou algo de muito pessoal na Amoris laetitia. O seu comentário a 1Coríntios 13, por exemplo, ou a sua insistência tão forte no crescimento do amor, que estava presente nos dois Sínodos, mas não com a força que se encontra na Amoris laetitia.

Quais são, na sua opinião, as partes mais significativas e mais importantes da Amoris laetitia? Quais são as suas novidades?

Sem dúvida alguma, como diz o próprio documento, os capítulos centrais são os dedicados ao amor, porque, como afirma o subtítulo, este é um documento "sobre o amor". Por isso, pode-se dizer que o texto mais importante é o hino à caridade de São Paulo. É preciso convidar os pastores e os leigos para que leiam e discutam especialmente os capítulos 4 e 5, que o papa escreveu com cuidado particular. O capítulo sobre a doutrina, o terceiro, é muito clássico. Mas pede que todo o ensinamento sobre o matrimônio seja relido à luz do querigma, e nós devemos fazer isso. Depois, naquele capítulo, ele afirma que a vida sexual do matrimônio também é um caminho de crescimento na graça. Isso supera definitivamente todo dualismo. Outra questão a se ressaltar é que, sobre as questões pastorais, delega-se a reflexão amplamente às Igrejas locais e aos bispos. Assim, uma certa descentralização continua seguindo em frente. Não se diz de Roma: "Essa deve ser a pastoral familiar". Diz-se: "Cada diocese vai encontrar os seus caminhos pastorais".

Muitos dizem que, sobre o discernimento – em relação ao capítulo oitavo – teriam sido úteis indicações mais claras. Pode explicar o significado do percurso proposto por Francisco?

É preciso esclarecer duas coisas. A primeira: o que o papa diz que no capítulo oitavo não deve ser reduzido à questão dos divorciados recasados. É muito importante para abrir novas portas tanto à teologia moral quanto à pastoral, para que se tornem mais misericordiosas, mais transformadas pelo primado da caridade e mais próximas da realidade concreta das pessoas. Depois, o papa não quis desenvolver mais a questão da comunhão aos divorciados recasados, porque queria que fosse apenas uma pequena referência que abrisse uma porta pastoral, e não uma questão fundamental. A maioria das páginas da Amoris laetitia são dedicadas a promover o crescimento do amor, e esse é o propósito do papa. Certamente, há um passo muito importante depois da Familiaris consortio. Mas é melhor permitir que os bispos, em diálogo com o papa, reflitam sobre esse tema. Para a Igreja inteira, os temas principais são outros. O tempo vai colocar as coisas no seu lugar, e é assim que o papa entende: "O tempo é superior ao espaço". Algumas mudanças fazem barulho demais, mas depois tudo se ajeita.

Depois de dois meses da publicação da exortação pós-sinodal Amoris laetitia, como avalia a sua recepção?

Em alguns lugares, ela está sendo feita com muito entusiasmo, generosidade e responsabilidade. Em particular, muitos levaram a sério os capítulos centrais, que são aqueles que o papa quis destacar mais. Outros se entretiveram excessivamente – a favor ou contra – na questão da comunhão aos divorciados recasados. Chama a atenção a reação de alguns grupos católicos que se recusam a aplicar o documento, com toda a riqueza que ele contém, só porque estão com raiva do capítulo oitavo. Foi assim também com os documentos anteriores. Mas, graças a Deus, não é a atitude da grande maioria do povo de Deus.

Com base em que o senhor afirma isso?

Por exemplo, nos últimos meses, na Argentina, desenvolveram-se fortes movimentos político-midiáticos voltados a ridicularizar Francisco, mas uma recente pesquisa realizada pelo jornal Clarín mostra que o papa tem 75% de imagem positiva e apenas 4% de imagem negativa. Confirma-se, assim, aquela discreta e silenciosa fidelidade do povo, apesar dos murmúrios e das críticas de alguns. Os frutos desse dom do Espírito poderão ser mais bem vistos ao longo do tempo, mas não podemos negar que foram abertas novas possibilidades para a Igreja, que deveremos aproveitar muito melhor, sem perder tempo.

No ano passado, em outubro, o senhor participou de um simpósio que reuniu teólogos e estudiosos na sede da revista La Civiltà Cattolica, para refletir sobre a reforma da Igreja. Quais são as conclusões?

Em breve, será publicado um trabalho que contém várias contribuições. Partindo de um profundo espírito de comunhão com o papa, os teólogos tentaram acolher a sua proposta de reforma da Igreja, o seu convite a pensar em um estilo mais sinodal e também aquilo que ele nos pediu na Evangelii gaudium – que parece não ter sido ouvido – de dar mais competências às Conferências Episcopais, incluindo alguma autoridade doutrinal. Os progressos são muito lentos, não porque o papa não os encorajou, mas porque, como teólogos e pastores, não ousamos reagir com generosa criatividade.

Provocaram discussão algumas de suas afirmações de um ano atrás, em uma entrevista a um jornal italiano. Por que o senhor disse o papa, no futuro, poderia até não residir em Roma?

Na realidade, eu estava respondendo a uma pergunta sobre a Cúria Romana e sobre o Vaticano. Eu queria dizer, ao contrário, "fora do Vaticano". Mas eu quero enfatizar que o papa é o pastor universal a partir da sua missão como bispo de uma Igreja local. Isso significa que ninguém pode ser supremo pastor de toda a Igreja, se não for, de fato, o pastor de uma igreja local. Essa consideração é fundamental e vem teologicamente antes do fato de que a Igreja local é a de Roma, embora as duas coisas não podem ser separadas. A realidade é que, desde o início, a Igreja local do papa é a última diocese dirigida por São Pedro, ou seja, a de Roma. Eu não saberia dizer qual é a qualificação teológica da necessidade de que a diocese do papa seja a de Roma. Mas é melhor partir da realidade histórica e concreta. É justamente em Roma que se encontra o túmulo da "rocha petrina" que Cristo deixou à Igreja, é o lugar do martírio de Pedro e Paulo, e tudo isso tem um sentido profundo. Então, eu não pretendo diminuir, de modo algum, o vínculo que, desde o início da história cristã, liga Pedro e os seus sucessores a Roma.

A cidade de Roma, portanto, tem uma característica de sacralidade?

É bom especificar que falamos de Roma especificamente como diocese, e não como cidade. Portanto, acho que não seria um problema se o papa residisse em outra região da diocese de Roma. Mas essa é uma especulação inútil e bizarra. O que eu pretendo evidenciar é o núcleo do problema: o papa deve ser bispo, padre e pastor de uma Igreja local e, como tal, recebe a missão de pastor supremo da Igreja inteira.

E a Cúria vaticana?

Uma coisa é a diocese de Pedro, outra são as estruturas da Cúria vaticana, que têm importância apenas enquanto ajudam o papa e o colégio dos bispos. As estruturas da Cúria não são uma parte essencial da sua missão. São apenas uma ajuda "para o exercício" do seu ministério, que pode ser estruturado de modos muito diferentes ao longo da história. E nada descarta que essas estruturas possam ser mínimas. Outra coisa é o Colégio dos Cardeais, que, em um sentido muito especial, pertencem à diocese de Roma.

É possível que alguns escritórios da Cúria sejam colocados fora de Roma?

Acho que é podemos defender isso, mas posso estar errado. Por exemplo, o Pontifício Conselho para a Cultura, ou a Pontifícia Academia da Vida, ou a Congregação para as Causas dos Santos poderiam estar em outro lugar no mundo. Com o crescente progresso das comunicações, isso não impediria a atividade do papa. De fato, existem cardeais da Cúria Romana que viajam com frequência para várias partes do mundo, e também é um fato que há cardeais que auxiliam o papa de longe, sem que seja necessário que eles morem na cidade de Roma. Essa possibilidade poderia ser discutida sem dificuldade e, talvez, em alguns casos, ajudaria a viver aquela saudável descentralização que a Evangelii gaudium pede. Por outro lado, eu soube que a Congregação para a Doutrina da Fé pediu à Comissão Teológica Internacional um aprofundamento sobre a sinodalidade e as estruturas da Igreja, e certamente isso nos oferecerá um esclarecimento muito mais preciso do que aquilo que eu posso oferecer.