‘Estupro é a forma mais explícita da violência de gênero que vemos todos os dias’

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31 Mai 2016

Assobiar para uma mulher na rua, rir de piadas que as representam como seres inferiores, apreciar propagandas que as colocam como um objeto a ser utilizado por homens. Todas essas atitudes, cotidianas e que podem parecer inofensivas para grande parte da população, colaboram para que se crie uma sociedade machista e, assim, são também fatores que incidem sobre a chamada cultura do estupro. A discussão sobre o tema veio à tona especialmente após o estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, o qual foi filmado e divulgado nas redes sociais pelos criminosos.

A reportagem é de Débora Fogliatto, publicada por Sul21, 31-05-2016.

As imagens da menina, que foi violentada por mais de 30 homens, causaram espanto em grande parte da população brasileira, que rapidamente denunciou o caso — foram cerca de 800 comunicações sobre o crime para o Ministério Público do Rio de Janeiro — e lançou campanhas nas redes sociais. Por outro lado, o caso também demonstrou a frequente culpabilização da vítima, termo usado por especialistas para descrever as formas como a sociedade culpa as mulheres pelas violências que elas sofrem.

Poucos dias após a divulgação do vídeo, “já surgem justificativas na mídia ou nas redes sociais tentando mostrar que a culpa é da menina”, aponta a doutoranda em Comunicação e pesquisadora sobre gênero Pâmela Stocker. Primeiramente, foi divulgada a informação de que a jovem teve um filho aos 13 anos, depois surgiram boatos de que ela estaria envolvida com o tráfico. “É um mecanismo para tentar relativizar o estupro, o próprio delegado que era o responsável até ontem pelo caso disse que não havia como comprovar [o estupro], mesmo com todas as provas divulgadas pelos próprios criminosos”, destacou. Após pressão por parte da sociedade, ele foi afastado do caso e a nova delegada responsável já afirmou estar convicta de que houve crime de estupro.

O delegado que antes era responsável pelo caso também questionou a vítima se ela já teria realizado sexo coletivo e, na internet, circularam informações de que a jovem frequentemente trocaria sexo por drogas. “É muito chocante ler isso, porque é como se isso justificasse [o que aconteceu]. A própria delegada que depois assumiu o caso destaca que a menina está visivelmente desacordada no vídeo, as provas são mais do que suficientes para mostrar que houve violência”, completou a professora da UFRGS e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade (NupSex) Paula Sandrine Machado.

Embora tenha chamado a atenção pela brutalidade, o estupro da jovem não é um caso isolado, visto que a cada 11 minutos, uma mulher sofre essa agressão, segundo dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O número de vítimas, porém, deve ser muito maior na realidade, alerta Pâmela, pois muitas mulheres deixam de denunciar os crimes. “A maioria das mulheres não presta queixa, não se sente à vontade, justamente por causa da cultura que a culpabiliza pelo que aconteceu. Estima-se que os números reais sejam dez vezes maiores”, alertou. Ela lamenta, porém, que o dado alarmante por si só não gere a discussão na sociedade. “Mesmo tendo esses números terríveis, não se fala sobre isso, que de cada 5 mulheres, 3 vão sofrer algum tipo de violência ao longo da vida. E a sociedade continua normalizando isso”, destaca.

Essa normalização acontece, aponta a pesquisadora, a partir de diversas pequenas violências que não são reconhecidas como tal: “Desde a cantada de rua, a publicidade machista, o humor machista, as diversas formas de expressão do machismo na mídia também são violências de gênero, e as violências psicológicas e físicas vão derivar dessas pequenas atitudes. O estupro, assim como o feminicídio e as agressões, é a forma mais explícita da violência de gênero que vemos todos os dias na nossa sociedade”.

Para Paula, a cultura do estupro pode ser definida como uma cultura do machismo, que coloca alguns corpos como passíveis de serem violados. E estes corpos, em geral, seriam os identificados como femininos. “A inviolabilidade não é uma garantia para todos os corpos. Essa é uma violência que não acontece isoladamente, não são 33 caras malucos que se reuniram e fizeram isso. Mas são homens que foram produzidos nesse sistema que permite isso, que é legitimado por uma série de instâncias sociais. Eles são a face mais brutal, mais extrema, de uma sociedade absolutamente sexista, que se permite rir do estupro, cantar músicas que fazem apologia à violência sexual, que se permite botar como propaganda de cerveja que as mulheres quando dizem ‘não’, querem dizer ‘sim'”, destaca a professora.

Tudo isso está relacionado à produção de diferença entre os corpos considerados masculinos e femininos, à restrição das mulheres a meros objetos sexuais e à heterossexualidade obrigatória, que impõe determinados lugares e lógicas para mulheres e homens na sociedade, aponta Paula. “E que o ‘não’ da mulher nunca é verdadeiro, nunca é reconhecido. Essa lógica de que a mulher quer dizer sim, está na trama de diversas novelas, por exemplo, é muito romantizado”, aponta.

Por isso, ela classifica que há uma série de instâncias que são “co-autoras” desse estupro, como o sistema educacional, onde a discussão de gênero nas escolas foi vetada recentemente por parlamentares em todo o país. “As mesmas pessoas que dizem que esses homens devem ser linchados, ao mesmo tempo falam da moralidade das mulheres, dizem que elas têm que ser obedientes, e é isso que alimenta essa cultura do estupro. E são contra pensar uma educação em que essas questões sejam discutidas na escola, para criar uma forma de lidar com a situação que não seja apenas uma punição individual”, reflete.

Pâmela também considera a educação como um possível campo em que haja mudanças nesse sentido, mas lamenta que a oportunidade de debater essas questões tenha sido perdida nas votações dos planos de educação. “Essa mesma sociedade que está chocada com o caso da menina teve a oportunidade de fazer essa mudança. E esse debate sobre desigualdade e violência de gênero nas escolas é considerado ‘ideológico’, é desqualificado. Então como a gente vai mudar esse cenário sem conversar sobre isso?”, questiona.

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