Assassinato de jovens: a epidemia mortal que assombra a América Latina

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29 Abril 2016

Nem todos os casos estão registrados. Nem todos os governos querem divulgar a informação. E quando alguns deles a compartilham, sua exatidão e atualidade frequentemente são postas em dúvida.

Mas é certo que o problema dos assassinatos de jovens na América Latina se propaga como um vírus letal.

A reportagem é de Margarita Rodríguez, publicada por BBC Brasil, 28-04-2016.

"Tudo o que ganhamos neste continente durante tantos anos em tentar evitar a mortalidade infantil por razões de saúde como diarreia e desnutrição, estamos perdendo quando eles chegam à adolescência", disse à BBC Mundo José Bergua, assessor regional de proteção do Unicef.

"Agora mesmo estamos todos muito preocupados e correndo atrás da zika neste continente. Vemos que os Estados Unidos e as Nações Unidas começaram a responder ao problema, o que me parece perfeito, mas há outros vírus que estão instalados ao nosso redor, como é o caso da violência. E a resposta está muito longe de ser satisfatória, não está sequer à altura do problema."

De acordo com os estudos mais recentes do Unicef e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a região América Latina e Caribe tem os mais altos índices de homicídios entre crianças e adolescentes do mundo.

O relatório "Hidden in plain sight" ("Escondido em plena vista", em tradução livre), publicado pelo Unicef em setembro de 2014, é uma análise estatística da violência contra as crianças que inclui informação de 190 países.

Considerado o estudo mais completo sobre o tema até o momento, o relatório diz que, de acordo com estatísticas de 2012, homicídio é a principal causa de morte entre garotos de 10 a 19 anos em sete países da América Latina e do Caribe – Brasil, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Panamá, Trinidad e Tobago e Venezuela.

Nestes países, os homicídios superam as mortes por acidentes de trânsito e doenças não transmissíveis.

No Brasil, do total de 56.337 homicídios ocorridos em 2012, 57,6% tiveram com vítimas jovens com idade entre 15 a 29 anos. Destes, 93,3% eram homens e 77%, negros.

Os dados são do relatório Mapa da Violência, compilado com base no Datasus de 2012 – dado mais atual disponível.

Em 2012, mais de 25 mil vítimas de homicídios na América Latina e Caribe tinham menos de 20 anos, "o que representou cerca de 25% de todas as vítimas de homicídios no mundo".

'Devastador'

"Meu filho tinha 18 anos. No dia em que morreu, tinha saído com os amigos. Eles estavam em um táxi quando dois ladrões os abordaram. Como o táxi não parou, eles atiraram e a bala atingiu meu filho na nuca. Ele estava sentado no banco do carona", disse Gentil Ortiz, da Colômbia, à BBC Mundo.

"Isso é a coisa mais difícil que pode acontecer com um ser humano."

E depois de um longo silêncio, conclui: "Enterrar os filhos... Isso é devastador".

"Eles o mataram há três anos. Ele só tinha 20 anos", diz Ana, uma mãe hondurenha que pediu para não ser identificada. "Ele foi confundido (com outra pessoa). Chegou do trabalho, estava tomando banho e o tiraram do banho. Membros de gangues o mataram."

"Isso não se apaga nunca", diz, após desculpar-se pela falha na voz. "É uma dor que a pessoa sempre leva."

"Meu filho tinha acabado de cumprir 18 anos. Ele tinha saído com uns amigos para comprar algo em uma loja quando uns malandros começaram a atirar e atiraram nele", diz Ramón, da Venezuela, que também prefere não ser identificado.

"Geralmente, quando a pessoa escuta os tiros, vai ver quem é a vítima. Como aconteceu muito perto da minha casa, vieram me avisar. Assim como havia acontecido com outros, esse dia infelizmente chegou para mim: a vítima era meu filho. Não consegui mais vê-lo com vida. Nós o levamos para o hospital, mas ele já estava morto", relembra.

Buchas de canhão

Durante 24 anos, a professora Julia Edith Cardozo Leal educou crianças e adolescentes de algumas das comunidades mais afetadas pela violência no município de Neiva, no sul da Colômbia.

"Calculo que perdi mais de 10 alunos por mortes violentas", disse à BBC Mundo.

"Houve uma morte que me impactou muito: um garoto, que acabava de voltar da escola, estava com sua mãe e sua irmã fora de casa. Eles estavam conversando quando chegaram dois sujeitos em uma moto. Um deles se abaixou e perguntou pelo irmão do meu aluno. O garoto respondeu: O que você quer, se ele não está? E o sujeito respondeu: 'Ah, tem uma coisa para você também. Tome!' e atirou nele na frente de sua mãe."

Horas antes, o adolescente estava na sala de aula com Cardozo. Ela descobriu o ocorrido na manhã seguinte.

"É muito triste ouvir as histórias que as crianças contam quando chegam à escola. Eles falam do que aconteceu no dia ou na noite anterior: 'Vimos que a polícia entrou na casa do colega tal...'. Às vezes não querem que a gente escute, se intimidam e se calam, mas em outros momentos eles nos contam."

"Certa vez, um garoto me disse: 'Professora, sabe quantos tiros deram em fulano? Lembra? Aquele de quem eu falei outro dia'. Outro garoto me contou que viu quando homens em um carro passaram dando tiros em sua vizinhança. Esses testemunhos são tristes e terrivelmente frequentes."

Ela diz ainda que criminosos costumam usar garotos em alguns setores para vigiar o entorno em que eles operam.

"Desde pequenos, dizem para eles: 'Esperem na esquina, quando a polícia vier, corram e nos avisem'. E em troca dão doces ou uma porção pequena de maconha. Mas quando começa o enfrentamento, seja com autoridades ou com um grupo rival, esses garotos ficam no meio. Muitos morreram e outros ficaram deficientes."

'Epidemia'

Uma garota de 5 anos foi morta por uma bala perdida em Petare, um dos bairros mais perigosos de Caracas, a capital venezuelana.

"Ela estava dormindo em sua caminha quando começou um tiroteio na rua. A bala atravessou a parede de sua casa e a atingiu diretamente na cabeça", disse à BBC Mundo Gloria Perdomo, coordenadora da ONG Observatório Venezuelano de Violência (OVV).

A insegurança na Venezuela é alarmante, segundo organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, que identificam Caracas como uma das cidades mais perigosas do mundo.

"Há um contexto social que faz com que nas comunidades mais afetadas pela violência o crime seja visto como algo atraente. Muitos jovens se deslumbram quando um criminoso lhes oferece a oportunidade de ganhar uma quantia considerável de cinco ou seis salários mínimos em apenas uma noite para cometer um crime", afirma Perdomo.

Para a especialista, no entanto, a violência na Venezuela não está ligada apenas à impunidade. A normalização da violência faz com que os homicídios de jovens em países da região pareçam inevitáveis.

Para José Bergua, do Unicef, a desigualdade que caracteriza as grandes cidades da região é uma das principais responsáveis pela violência.

"Muitos de nossos jovens estão crescendo em sociedades que não lhes oferecem oportunidades. Deixam a escola muito cedo e suas expectativas de integração são mínimas. Tudo o que têm a seu redor os leva aos caminhos da violência", diz José Bergua.

Por isso, em sua opinião, a violência contra os adolescentes deve ser vista como uma doença, um vírus, uma epidemia "que é possível curar e prevenir".

 

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Assassinato de jovens: a epidemia mortal que assombra a América Latina

BBC

28-04-2016

Margarita Rodríguez

Nem todos os casos estão registrados. Nem todos os governos querem divulgar a informação. E quando alguns deles a compartilham, sua exatidão e atualidade frequentemente são postas em dúvida.

Mas é certo que o problema dos assassinatos de jovens na América Latina se propaga como um vírus letal.

"Tudo o que ganhamos neste continente durante tantos anos em tentar evitar a mortalidade infantil por razões de saúde como diarreia e desnutrição, estamos perdendo quando eles chegam à adolescência", disse à BBC Mundo José Bergua, assessor regional de proteção do Unicef.

"Agora mesmo estamos todos muito preocupados e correndo atrás da zika neste continente. Vemos que os Estados Unidos e as Nações Unidas começaram a responder ao problema, o que me parece perfeito, mas há outros vírus que estão instalados ao nosso redor, como é o caso da violência. E a resposta está muito longe de ser satisfatória, não está sequer à altura do problema."

De acordo com os estudos mais recentes do Unicef e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a região América Latina e Caribe tem os mais altos índices de homicídios entre crianças e adolescentes do mundo.

O relatório "Hidden in plain sight" ("Escondido em plena vista", em tradução livre), publicado pelo Unicef em setembro de 2014, é uma análise estatística da violência contra as crianças que inclui informação de 190 países.

Considerado o estudo mais completo sobre o tema até o momento, o relatório diz que, de acordo com estatísticas de 2012, homicídio é a principal causa de morte entre garotos de 10 a 19 anos em sete países da América Latina e do Caribe – Brasil, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Panamá, Trinidad e Tobago e Venezuela.

Nestes países, os homicídios superam as mortes por acidentes de trânsito e doenças não transmissíveis.

No Brasil, do total de 56.337 homicídios ocorridos em 2012, 57,6% tiveram com vítimas jovens com idade entre 15 a 29 anos. Destes, 93,3% eram homens e 77%, negros.

Os dados são do relatório Mapa da Violência, compilado com base no Datasus de 2012 – dado mais atual disponível.

Em 2012, mais de 25 mil vítimas de homicídios na América Latina e Caribe tinham menos de 20 anos, "o que representou cerca de 25% de todas as vítimas de homicídios no mundo".

'Devastador'

"Meu filho tinha 18 anos. No dia em que morreu, tinha saído com os amigos. Eles estavam em um táxi quando dois ladrões os abordaram. Como o táxi não parou, eles atiraram e a bala atingiu meu filho na nuca. Ele estava sentado no banco do carona", disse Gentil Ortiz, da Colômbia, à BBC Mundo.

"Isso é a coisa mais difícil que pode acontecer com um ser humano."

E depois de um longo silêncio, conclui: "Enterrar os filhos... Isso é devastador".

"Eles o mataram há três anos. Ele só tinha 20 anos", diz Ana, uma mãe hondurenha que pediu para não ser identificada. "Ele foi confundido (com outra pessoa). Chegou do trabalho, estava tomando banho e o tiraram do banho. Membros de gangues o mataram."

"Isso não se apaga nunca", diz, após desculpar-se pela falha na voz. "É uma dor que a pessoa sempre leva."

"Meu filho tinha acabado de cumprir 18 anos. Ele tinha saído com uns amigos para comprar algo em uma loja quando uns malandros começaram a atirar e atiraram nele", diz Ramón, da Venezuela, que também prefere não ser identificado.

"Geralmente, quando a pessoa escuta os tiros, vai ver quem é a vítima. Como aconteceu muito perto da minha casa, vieram me avisar. Assim como havia acontecido com outros, esse dia infelizmente chegou para mim: a vítima era meu filho. Não consegui mais vê-lo com vida. Nós o levamos para o hospital, mas ele já estava morto", relembra

Buchas de canhão

Durante 24 anos, a professora Julia Edith Cardozo Leal educou crianças e adolescentes de algumas das comunidades mais afetadas pela violência no município de Neiva, no sul da Colômbia.

"Calculo que perdi mais de 10 alunos por mortes violentas", disse à BBC Mundo.

"Houve uma morte que me impactou muito: um garoto, que acabava de voltar da escola, estava com sua mãe e sua irmã fora de casa. Eles estavam conversando quando chegaram dois sujeitos em uma moto. Um deles se abaixou e perguntou pelo irmão do meu aluno. O garoto respondeu: O que você quer, se ele não está? E o sujeito respondeu: 'Ah, tem uma coisa para você também. Tome!' e atirou nele na frente de sua mãe."

Horas antes, o adolescente estava na sala de aula com Cardozo. Ela descobriu o ocorrido na manhã seguinte.

"É muito triste ouvir as histórias que as crianças contam quando chegam à escola. Eles falam do que aconteceu no dia ou na noite anterior: 'Vimos que a polícia entrou na casa do colega tal...'. Às vezes não querem que a gente escute, se intimidam e se calam, mas em outros momentos eles nos contam."

"Certa vez, um garoto me disse: 'Professora, sabe quantos tiros deram em fulano? Lembra? Aquele de quem eu falei outro dia'. Outro garoto me contou que viu quando homens em um carro passaram dando tiros em sua vizinhança. Esses testemunhos são tristes e terrivelmente frequentes."

Ela diz ainda que criminosos costumam usar garotos em alguns setores para vigiar o entorno em que eles operam.

"Desde pequenos, dizem para eles: 'Esperem na esquina, quando a polícia vier, corram e nos avisem'. E em troca dão doces ou uma porção pequena de maconha. Mas quando começa o enfrentamento, seja com autoridades ou com um grupo rival, esses garotos ficam no meio. Muitos morreram e outros ficaram deficientes."

'Epidemia'

Uma garota de 5 anos foi morta por uma bala perdida em Petare, um dos bairros mais perigosos de Caracas, a capital venezuelana.

"Ela estava dormindo em sua caminha quando começou um tiroteio na rua. A bala atravessou a parede de sua casa e a atingiu diretamente na cabeça", disse à BBC Mundo Gloria Perdomo, coordenadora da ONG Observatório Venezuelano de Violência (OVV).

A insegurança na Venezuela é alarmante, segundo organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, que identificam Caracas como uma das cidades mais perigosas do mundo.

"Há um contexto social que faz com que nas comunidades mais afetadas pela violência o crime seja visto como algo atraente. Muitos jovens se deslumbram quando um criminoso lhes oferece a oportunidade de ganhar uma quantia considerável de cinco ou seis salários mínimos em apenas uma noite para cometer um crime", afirma Perdomo.

Para a especialista, no entanto, a violência na Venezuela não está ligada apenas à impunidade. A normalização da violência faz com que os homicídios de jovens em países da região pareçam inevitáveis.

Para José Bergua, do Unicef, a desigualdade que caracteriza as grandes cidades da região é uma das principais responsáveis pela violência.

"Muitos de nossos jovens estão crescendo em sociedades que não lhes oferecem oportunidades. Deixam a escola muito cedo e suas expectativas de integração são mínimas. Tudo o que têm a seu redor os leva aos caminhos da violência", diz José Bergua.

Por isso, em sua opinião, a violência contra os adolescentes deve ser vista como uma doença, um vírus, uma epidemia "que é possível curar e prevenir".

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