Desafio é fechar as contas mantendo rota de redução das desigualdades

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26 Julho 2016

Os autores apontam fatores que levaram à queda da desigualdade a partir da Constituição de 1988 e consideram que tal processo precisa prosseguir, apesar da urgência do ajuste. Defendem a manutenção de vinculações orçamentárias para educação e saúde, bem como piso previdenciário atrelado ao mínimo.

O artigo é de Marta Arretche, professora de ciência política da USP, diretora do Centro de Estudos da Metrópole e Naercio Menezes Filho, professor de economia da USP e do Insper, é coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 24-07-2016.

Eis o artigo.

Um dos grandes desafios da conjuntura em que vivemos envolve escolhas estratégicas que permitam dar continuidade à bem sucedida trajetória recente de redução das desigualdades sociais no Brasil sem gerar crises fiscais que impeçam a sustentabilidade das políticas. Essas escolhas, por sua vez, estão estreitamente associadas a concepções normativas sobre o tipo de sociedade que desejamos.

Estamos entre os que acreditam que as políticas sociais devem produzir igualdade de oportunidades, de modo que as condições econômicas da família ao nascimento, a cor ou a região de origem não sejam uma barreira intransponível para os indivíduos poderem ter uma vida decente, preferencialmente com seu próprio trabalho. Deste ponto de vista, é importante que se diga com toda a clareza que, a despeito dos inegáveis avanços das últimas décadas, ainda temos um longo caminho pela frente para nos aproximarmos desse ideal.

Duas questões são incontornáveis nesse debate. A primeira diz respeito às políticas desejáveis, que deveriam ser preservadas em uma estratégia de enfrentamento da crise fiscal (o desequilíbrio financeiro do Estado). Responder a essa questão requer identificar os fatores que mais contribuíram para a redução das desigualdades no passado recente.

A segunda, não menos relevante, diz respeito à viabilidade política dessas políticas desejáveis, sem a qual tais preferências não passam de "wishful thinking".

Quando a democracia foi reinstaurada no Brasil, em 1985, além da elevada concentração da renda entre os mais ricos, a dívida social brasileira também resultava de uma grande divisão entre "insiders" (os incluídos) e "outsiders" (os excluídos).

Desde Getúlio Vargas, a legislação trabalhista protegia apenas os trabalhadores do mercado formal que compunham o setor industrial urbano. O vínculo trabalhista era requisito para aposentadorias e serviços de saúde. Estima-se que apenas 40% dos trabalhadores estavam nessa condição.

Viam-se excluídos, portanto, da proteção trabalhista e do direito à aposentadoria e a cuidados de saúde cerca de 60% dos trabalhadores, que acumulavam a desvantagem da baixa escolaridade e de ocupações precárias. Um elemento central do modelo adotado por Vargas, mantido até 1988, é que eram principalmente esses "outsiders" que contribuíam para financiar os benefícios dos "insiders".

Sob o modelo de substituição de importações, em uma economia fechada, os custos da proteção social dos "insiders" eram transferidos para os preços dos produtos, e, portanto, pagos por todos os consumidores. 

Educação

Além disso, a despeito de iniciativas reformistas que datam do Império, o fato é que o Estado brasileiro nunca deu prioridade à educação. Em 1980, apenas metade dos jovens com 12 a 15 anos de idade tinha completado o ensino primário. Entre os jovens de 16 a 18 anos, apenas 20% tinha o ensino fundamental completo. Essa oferta abundante de trabalhadores pouco qualificados gerou fortes incentivos para um modelo de industrialização de baixa intensidade tecnológica. A indústria acomodou-se com essa estratégia e apostou que os cursos de qualificação profissional seriam suficientes para gerar mão de obra capacitada. Grave erro.

A combinação de limitados esforços para a universalização do acesso à educação, mantendo-se forte associação entre origem familiar e avanço no sistema escolar, com direitos previdenciários e de saúde vinculados a empregos formais para uma pequena parcela implicou uma fusão de vantagens para os "insiders" que não representavam nem metade da população brasileira.

Desde meados dos anos 1980, o Brasil vem experimentando um processo incremental de inclusão dos "outsiders". Essa trajetória não é explicada por um único fator isolado. Ela resulta de uma combinação de mudanças demográficas, forças de mercado e políticas deliberadas.

Na dimensão demográfica, a mudança no comportamento reprodutivo das mulheres mais pobres, a partir dos anos 1980, com consequente queda nas taxas de fertilidade, estancou a fonte da abundante oferta de jovens pobres no mercado de trabalho. Essa trajetória demográfica dificilmente será revertida.

Por outro lado, o boom das commodities e as baixas taxas internacionais de juros, que também afetaram outros países da América Latina, foram uma forte alavanca do crescimento econômico –o que favoreceu a expansão das receitas governamentais, sem que políticas impopulares de expansão da taxação fossem necessárias. Essas condições não estão mais presentes, o que eleva a temperatura dos conflitos redistributivos, como já estamos tendo oportunidade de observar.

O comportamento desses fatores –a demografia e o boom internacional das commodities– está fora do alcance das escolhas institucionais. Por essa razão, nossa avaliação deve se concentrar sobre as políticas deliberadas que favoreceram a inclusão.

A constitucionalização dos sistemas universais de educação e saúde, bem como a vinculação do piso das aposentadorias (contributivas e não-contributivas) ao salário mínimo, estão entre as principais políticas de inclusão dos "outsiders" que afetaram as historicamente elevadas taxas de desigualdade no Brasil.

A vinculação do piso das aposentadorias ao valor do salário mínimo produziu um colchão de proteção para os mais pobres, mesmo em contextos recessivos, como em 1992 e 2003. Além disso, a valorização do mínimo em termos reais reduziu a desigualdade no mercado de trabalho, contribuindo para a inclusão de milhares de brasileiros no universo de consumo. A conjunção de fatores externos e demográficos favoráveis fez com que o impacto do salário mínimo fosse sancionado pelo mercado de trabalho, não resultando em maior desemprego ou informalidade. Ao contrário, tanto um quanto outro diminuíram na primeira década do século 21.

Transferência

A expansão da escolaridade, por sua vez, reduziu (não eliminou) a influência da origem social sobre a educação e a oferta abundante de jovens não qualificados que chegavam todos os anos ao mercado de trabalho.

Vale notar que tal inclusão favoreceu muito mais as mulheres do que os negros e pardos. Mas, o fato é que essa expansão decorreu da vinculação de recursos estabelecida pela Constituição de 1988 e que foi aprofundada com a adoção do Fundef e do Fundeb.

Continuar na trajetória de redução das desigualdades de acesso à educação, estancando a oferta abundante de mão de obra não qualificada, é, portanto, uma condição essencial para dar continuidade à queda das desigualdades no mercado de trabalho brasileiro.

Por fim, o SUS garantiu o acesso aos cuidados de saúde para os trabalhadores menos qualificados e com precária inserção no mercado, garantindo uma queda notável nas taxas de mortalidade –com consequente expansão da expectativa de vida e redução substancial das diferenças regionais nas condições de saúde.

Nesse sentido, os programas de transferência condicionais de renda, como o Bolsa Família, e de visitação domiciliar, como o Programa Saúde da Família, também tiveram papel fundamental.

A citada constitucionalização dos sistemas universais de saúde e de educação, bem como do piso dos pagamentos previdenciários, foi resultado de um grande consenso, ainda na transição para a democracia, em torno da ideia de que a democracia não seria sustentável sem políticas de inclusão. A politização da extrema pobreza e da desigualdade, vocalizada por grupos progressistas e de esquerda, inscreveu o tema na agenda política da transição democrática. Tal como Ulysses Guimarães, aquela geração parlamentar amarrou essas políticas ao mastro da Constituição para protegê-las contra maiorias ocasionais no futuro.

É possível que aquele consenso esteja em processo de erosão, dada a crescente mobilização política dos grupos conversadores no Brasil. Mas nossa avaliação é de que a vinculação constitucional dos gastos em saúde e educação para os três níveis de governo ainda é a melhor proteção contra o canto das sereias.

Além disso, o fato é que as taxas de participação eleitoral no Brasil variam em torno de 80%, o que quer dizer que os (antigos) "outsiders" votam. Uma vez incluídos na arena eleitoral, os beneficiários das pensões e benefícios indexados ao salário mínimo e dos sistemas universais de saúde e educação representam um grande número de eleitores, que pode ser decisivo em um pleito majoritário. Eles podem influenciar sobremaneira os cálculos eleitorais dos parlamentares na tramitação de propostas orientadas a impor perdas a categorias concentradas de beneficiários. A recente aprovação de aumentos salariais para o funcionalismo público é um exemplo nessa direção.

Assim, propostas de imposição de perdas que tenham alta visibilidade política terão muita dificuldade para formar coalizões de apoio no Congresso, tendo em vista as eleições municipais deste ano e as majoritárias em 2018.

Há razões para crer, com base no comportamento parlamentar na tramitação dessas matérias, que mesmo partidos conservadores terão dificuldade para apoiar medidas de imposição de perdas, dada a necessidade de expandir sua base eleitoral para além dos setores de classe média e alta.

Custo eleitoral

Os custos eleitorais de aprovar medidas que afetem negativamente uma parcela substancial da população brasileira, como os que ganham um salário mínimo no mercado de trabalho, ou via Previdência, por exemplo, são extremamente altos para os políticos. O mesmo ocorre com o fim das vinculações de gastos com educação e saúde.

Em suma, estamos passando por um período turbulento em termos econômicos e políticos. O nosso problema fiscal precisa ser enfrentado ao mesmo tempo em que passamos por uma recessão sem precedentes em nossa história. Novas denúncias envolvendo a credibilidade dos partidos aparecem todos os dias.

Não sabemos se o sistema partidário atual e sua estrutura de competição política sobreviverão ao tsunami. Mas, é certo que os eleitores do piso da pirâmide social e suas preferências não desaparecerão –e terão que ser levados em conta na tramitação das medidas de ajuste fiscal. Combinar equilíbrio fiscal e a popularidade das políticas de inclusão é, e continuará sendo, um grande desafio a ser enfrentado pela elite política brasileira.

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