Por que falar em especismo?

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29 Outubro 2016

"Criado por Richard D. Ryder, o termo “speciesism” designa uma forma de injustiça para com os que não integram a mesma espécie. Nas palavras do autor, “especismo significa ofender os outros porque eles são membros de outra espécie”. De modo similar ao racismo e ao sexismo, a ideologia especista classifica seres em “inferiores” e “superiores”, sendo que somente a estes últimos seriam garantidos direitos em sua plenitude, enquanto que os primeiros são relegados à categoria de coisas", Fernanda Orsomarzo, pós-graduada em direito penal, pós-graduanda em filosofia e direitos humanos pela PUC-PR e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia), em artigo publicado por Justificando, 27-10-2016. 

Eis o artigo.

“Todos os argumentos para provar a superioridade do homem não podem quebrar essa dura realidade: no sofrimento, os animais são nossos iguais.”

Peter Singer

Atualmente, abrir um jornal ou assistir a um noticiário tem exigido coragem. E aqui não faço alusão ao ato de suportar a forma tendenciosa, manipuladora e sensacionalista de que se valem muitos canais de comunicação ao noticiarem um fato, encarando leitores e espectadores como meras marionetes a serviço de seus interesses. Falo da tragédia moderna diariamente vivenciada por todos nós. Refiro-me às guerras, aos refugiados, às epidemias, à violência, à fome, aos estupros, às prisões superlotadas, à intolerância.

Assim, diante dos inúmeros problemas sociais, políticos e econômicos que refletem a barbárie na qual o ser humano se encontra inserido, a discussão acerca dos direitos dos animais não-humanos poderia ser interpretada como banalidade ou mera tentativa de inovação. Como refletir acerca do tema enquanto crianças morrem na África e na Síria, trabalhadores têm seus direitos negociados e seriamente ameaçados no Brasil, pessoas são mortas em razão de sua religião, orientação sexual ou cor de pele, mulheres são oprimidas e estupradas porque “não se deram ao respeito”? Como falar em direitos dos animais não-humanos enquanto o próprio ser humano está longe de ter garantidos os seus?

A pergunta, realmente, não é simples. Todavia, a reflexão se torna mais fácil ao constatarmos que os capítulos mais tristes da história humana decorrem, em última análise, da ideologia de dominação de uns sobre outros.

A crença da superioridade do homem branco legitimou – e ainda legitima – as mais variadas atrocidades cometidas em face das minorias, num intenso e cruel processo de desconsideração de interesses e invisibilidade.

A resposta ao questionamento acima formulado, portanto, tem por base a necessidade – cada vez mais urgente – de desconstrução dos dogmas e paradigmas que nos são impostos desde cedo por uma sociedade acostumada a reproduzir sem questionar. Deveras, no momento em que o indivíduo adquire uma visão crítica dos hábitos a ele transmitidos, decorrentes de uma herança social altamente antropocêntrica e arcaica, seus horizontes morais alargam-se. E, a partir desse alargamento, o ato de olhar para si próprio torna-se um exercício do olhar para o outro, fundado na empatia e na negação de qualquer ideologia de dominação.

Lembremo-nos que a opressão vivenciada por diversas minorias somente fora colocada em xeque no instante em que práticas institucionalizadas e fomentadas pelo Estado passaram a ser questionadas e criticadas, como a escravidão do povo negro e o holocausto dos judeus na Alemanha Nazista. De fato, o ato de duvidar das verdades apresentadas como absolutas implica no rompimento com a reprodução automática dos mais diversos preconceitos e intolerâncias, o que desemboca na evolução de um pensamento que, até então, era desprovido de reflexão.

Com relação aos animais não-humanos, o raciocínio é o mesmo. Ao longo dos séculos, perpetuou-se a crença, fundada em preceitos de ordem religiosa, filosófica e científica, de que não-humanos existem para o desfrute dos humanos. Inexiste neles qualquer característica que possibilite o reconhecimento de sua dignidade intrínseca. E, a partir desse perverso processo de desconsideração de interesses e instrumentalização de vidas, animais são encarados como meio à satisfação dos desejos do ser humano, o fim de todas as coisas.

O especismo surge, assim, como base legitimadora de toda sorte de opressão e crueldade em face de animais não-humanos. A humanidade, apoiada na falaciosa ideia de superioridade perante o restante dos habitantes da Terra, e utilizando-se de critérios arbitrários e egoísticos, elege quais seres são passíveis de consideração moral, condenando aqueles não abrangidos em sua esfera de afetividade à uma existência fundada na exploração e no sofrimento.

Criado por Richard D. Ryder, o termo “speciesism” designa uma forma de injustiça para com os que não integram a mesma espécie. Nas palavras do autor, “especismo significa ofender os outros porque eles são membros de outra espécie” [1]. De modo similar ao racismo e ao sexismo, a ideologia especista classifica seres em “inferiores” e “superiores”, sendo que somente a estes últimos seriam garantidos direitos em sua plenitude, enquanto que os primeiros são relegados à categoria de “coisas”.

Por meio da comparação entre as formas de discriminação com base na raça e no sexo, Ryder defende a total insustentabilidade do especismo, já que “se presta (…) para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de preconceito que se baseiam em aparências. Se o outro indivíduo tem um aspecto diferente deixa de ser aceito do ponto de vista moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas inteligentes e compassivas e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também para as outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até mesmo sexismo) não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aqueles contra quem este discrimina. Ambas as formas de preconceito expressam um desprezo egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento”[2].

Ao tratar do tema, Sônia T. Felipe aponta que nossa herança moral humanista tem por matriz cognitiva o fato de sermos especistas e antropocêntricos. E, a partir do instante em que constatamos que nossas relações com não-humanos são pautadas nessa ideologia de dominação, “tendemos a adotar uma postura anti-especista elitista, marcada pelo especismo eletivo: passamos a defender os animais escolhendo os que julgamos mais adequados à expressão de nossa necessidade afetiva, estética, econômica, etc. Elegemos, então, certos animais, de acordo com nossa predileção.

A autora diferencia o especismo em duas formas: o elitista e o eletivo. O primeiro caracteriza-se por conferir maior importância aos interesses dos indivíduos racionais pelo simples fato de serem pertencentes à espécie Homo sapiens. Já o especismo eletivo ou afetivo considera importante a defesa dos animais, elegendo, porém, apenas as espécies que se incluem no âmbito de predileção do sujeito, o qual permanece indiferente em relação aos animais que não se encontram inseridos em seu círculo de compaixão.

Aqui entra a “esquizofrenia moral”, termo cunhado por Gary Francione e que faz alusão à maneira contraditória e incoerente que baseia a visão da sociedade acerca dos animais não-humanos, dispensando-lhes tratamento digno na medida em que inseridos em sua esfera de afetividade. Assim é que, segundo o autor, enquanto alguns animais são membros da família, outros são o jantar.

É urgente a necessidade de repensarmos a maneira pela qual enxergamos a disciplina afeta aos direitos dos animais. Não há como negar o martírio imposto diariamente aos não-humanos nos laboratórios de experimentação, na indústria farmacêutica, de entretenimento e alimentícia.

Será mesmo necessário impormos todo tipo de penúria a seres sencientes, sob a justificativa de que são meras coisas, criadas para servirem incondicionalmente ao ser humano? Qual é o critério para afirmar que somos, realmente, tão superiores a eles?

Nas palavras de Daniel Braga Lourenço, um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, “a decisão de manter os animais não-humanos classificados como objetos, e não como sujeitos de direitos, obedece a uma perversa lógica de dominação, na medida em que a história das sucessivas gerações de direitos passa a ser identificada como uma forma de inclusão social da própria espécie humana e tão somente dela”.[3]

Deveras, a concepção de que o ser humano é o centro de emergência de todas as coisas já mostrou, com exemplos práticos, o quanto é falha. A crise imposta pela adoção do modelo antropocêntrico desencadeou não só a destruição da natureza em si, mas também a falência de nossas estruturas sociais por meio de um processo de naturalização e aceitação de toda sorte de tragédia e de desrespeito à univocidade do ser.

Não se pretende, com o presente texto, apontar dedos ou externar intolerâncias. Longe disso, propõe-se apenas uma reflexão, mesmo porque todos nós estamos inseridos num intenso processo de evolução e aprendizado.

Questionar a instrumentalização e objetificação de seres, sejam humanos ou não humanos, implica na emergência de uma nova ética, capaz de romper com paradigmas arbitrários e egoístas e expandir o horizonte moral do indivíduo, a fim de que todos os seres sejam nele incluídos. Essa nova ética advirá da superação da ideia de superioridade ou de qualquer critério de exclusão de não-humanos, já que, como disse o filósofo Jeremy Bentham, “a questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘Eles são capazes de falar?’, mas sim, ‘Eles são capazes de sofrer?’.

[1] RYDER apud GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo Animal. Salvador: Evolução, 2008. p. 17.

[2] RYDER apud FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: Alcances e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. p. 83-84.

[3] LOURENÇO, Daniel Braga. Direitos dos Animais. Fundamentos e Novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 27.

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