28 Mai 2012
O engenheiro agrônomo André Fleury de Alvarenga, sócio do frigorífico familiar Temra, em Araçariguama, a 50 quilômetros da capital de São Paulo, tornou a marca da empresa conhecida entre consumidores da classe A e B por oferecer cortes de carne diferenciados de ovinos e javalis provenientes de criações próprias e de parcerias com outros produtores. Só que nos últimos tempos, ele atiça esse mesmo mercado com a finalidade de abastecê-lo com porco caipira.
A reportagem é de Janice Kiss e publicada pelo jornal Valor, 28-05-2012.
Há dois anos, Fleury percorre algumas cidades do interior paulista com o intuito de resgatar esses animais - as raças mais comuns são nilo, piau e sorocaba -, que ficaram fora de moda a partir da década de 70, quando a produção industrial de suínos com raças importadas, como landrace e large white, entre outras, fortaleceu-se com o sistema de integração e deu origem a um plantel que hoje soma 39 milhões de cabeças no país, conforme os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010. Suínos industriais costumam ter maior teor de carne e baixos índices de gordura, ao contrário do caipira.
Na avaliação do pesquisador Elsio Figueiredo, da Embrapa Suínos e Aves, de Santa Catarina, a padronização da criação aconteceu para atender à maior demanda de consumo - que foi de 3,3 milhões de toneladas no ano passado - e porque os animais caipiras tornaram-se sinônimo de sujeira e verminose. "Eles foram criados de qualquer jeito e não havia assistência por parte dos órgãos de fiscalização. O caminho mais fácil foi entrar na criação dos suínos comerciais", explica.
É atrás de criadores persistentes que André Fleury de Alvarenga se dispõe a correr. Mas com muita cautela. Os animais são submetidos a uma série de exames para detectar possíveis doenças que possam comprometer o plantel e por a saúde do consumidor em risco. Nesses dois anos, Fleury firmou parceria apenas com quatro produtores que mantinham criações para consumo próprio, e formou com eles um plantel de 600 cabeças avaliadas com frequência pelos veterinários da Temra. "É um caipira com luxo", brinca. Fleury garante a assistência técnica e de manejo ao suinocultor, que recebe entre R$ 5 e R$ 7 por quilo do animal abatido, que não passa dos 50 quilos nas raças caipiras, contra o dobro do peso das industriais.
Um de seus parceiros é José Adivino de Oliveira, do Sítio Novo Horizonte, em Piedade (SP). Ele conta com uma criação que oscila entre 90 e 120 suínos e mantém um xodó especial pela raça sorocaba de pelo vermelho. Oliveira sempre manteve porcos caipiras na propriedade porque não troca a carne deles por nenhuma outra e aprendeu a criá-los com o pai. No entanto, ele se dispôs a inserir algumas práticas exigidas pelo frigorífico Temra. Uma delas é oferecer na medida milho, sorgo e soja, porque a proteína em excesso aumenta muito a gordura animal. A restrição só é suspensa para as ofertas de cenoura, beterraba, cascas de abóbora, fartos na região. A alimentação fica disponível no piquete de 2 hectares, com muito verde, para o porco pastar e andar. O custo para formar o animal é de R$ 9 por quilo.
A dieta e o semiconfinamento espaçoso vão resultar em uma carne suína marmorizada e um toucinho com espessura de 4 centímetros, ante os 2 do animal industrial. No entanto, é atrás desta gordura que chefs de cozinha e apreciadores da gastronomia estão atrás. "A gordura não é demônio, é a parte boa. Ela dá maciez e sabor à carne", argumenta o italiano Sauro Scarabotta, cozinheiro e proprietário do restaurante Friccò, em São Paulo. Ele foi o incentivador de Fleury na busca pelo porco caipira e, por isso, é considerado um dos parceiros do projeto. Scarabotta garante que existem evidências químicas da qualidade da gordura. Estudos feitos com porcos ibéricos e da raça italiana cinta senese, criados livres e abatidos tardiamente, mostram que, além da quantidade maior de proteínas na carne, a gordura em maior porcentagem é rica em ácidos graxos insaturados, considerados saudáveis. "A boa gordura do porco é rosada, seguida da branca, como a do bacon de boa qualidade", afirma o chef.
Os porcos caipiras que o frigorífico Temra se dispôs a resgatar, são descendentes destas raças ibéricas trazidas pelos portugueses no século XVI. Agora, o desafio de André Fleury é abaixar um pouco o teor de gordura, que chegou aos 70% nos primeiros animais abatidos, para 50%, para haver um equilíbrio entre a formação de carne e toucinho. "É um longo trabalho, pois buscamos uma raça que não fosse de alta genética, como as comerciais, e com um manejo diferenciado para obtermos uma carne mais saborosa", avalia. Ele espera que em um ano tenha condições de colocar 3 toneladas por mês de carne - por enquanto só os chefs de cozinha têm acesso ao produto - e diz que sua clientela tradicional de javalis e ovinos, composta por supermercados e empórios, está afoita pela entrega. "Não me pressiono, pois quero entrar no mercado com uma carne nobre, que foi inspecionada do começo ao fim", diz Fleury. O consumidor que também aguarda pelo produto sabe que terá que pagar pelo resgate e pesquisa da raça de porco caipira. Ela não custará menos que R$ 50 por quilo.
Embrapa vê potencial em nicho de mercado
Nos anos 80, a Embrapa Suínos e Aves (SC) montou um programa para resgatar as linhagens de frangos e porcos caipiras. A intenção era atender pequenos e médios produtores dos Estados de Santa Catarina e Paraná, que tinham nesses animais uma fonte de consumo de carne ou os vendiam ao comércio local. No caso dos suínos, os pesquisadores localizaram exemplares das raças piau, canastra e pirapetinga, muito comuns nos faxinais da região Sul do país no passado- uma forma coletiva de produção agrícola trazida pelos imigrantes europeus há mais de um século - e desenvolveram um projeto de doação de reprodutores.
"Além de oferecer o animal, ensinamos o manejo correto aproveitando a alimentação disponível na propriedade, com grãos e tubérculos, sem abrir mão do controle de doenças e vacinações", explica o pesquisador Elsio Figueiredo.
O programa continua à disposição, embora os criadores sejam poucos. Apenas quatro deles, no Paraná, interessaram-se pelo projeto nos útlimos tempos. "Por isso, quem investir de forma correta nessa área certamente atenderá a um potencial nicho de mercado", acredita. Para o pesquisador, existe um movimento ainda não dimensionado de consumidores que buscam resgatar alimentos que não entraram em escala industrial".
O porco caipira é um deles. Sua história remonta a época de descobrimento do Brasil, quando os portugueses trouxeram raças ibéricas que deram origem às nacionais (piau, tatu, canastra, nilo, caruncho, pereira e pirapitinga). No fim dos anos 50, teve início o controle genealógico dos suínos e a importação de raças, com o objetivo de melhorar a produtividade da criação e aumentar a produção de carne, já que a banha, principal produto dos animais nativos, começava a perder espaço para os óleos vegetais.
Na década de 70, o sistema de integração com as agroindústrias se fortaleceu com a introdução de materiais genéticos trazidos de fora como forma de melhorar a matéria-prima para a indústria. Na época, para diferenciar os preços dos animais comprados nos frigoríficos, eles passaram a ser classificados em três categorias: carne, misto e banha.
"Suínos carne" eram animais de cor branca, descendentes de raças importadas mais recentes (landrace e large white). No tipo misto, estavam enquadrados os animais avermelhados descendentes da raça duroc, que predominou durante muitos anos no Brasil. Na classificação banha, entravam os restantes dos suínos, geralmente de cor preta com as características típicas das raças denominadas nacionais.
Com a padronização dos animais em busca da maior produção de carne, a suinocultura comercial tornou-se uma importante atividade no país, que movimenta cerca de US$ 14 bilhões por ano entre mercados interno e externo. Nos últimos 30 anos, a produtividade teve um considerável ganho tecnológico. O plantel cresceu 9,6% enquanto a produção de carne aumentou 261%.
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Porco caipira ensaia volta ao cardápio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU