Carlo Maria Martini, a corrida da Palavra

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02 Setembro 2015

Três anos após a morte de Carlo Maria Martini, saiu um livro contendo 111 retratos inéditos do cardeal qu é comentado por Enzo Bianchi. A tradução é de Ramiro Mincato.

Eis o artigo.

O significado fundamental da existência consiste na vida mesma do Cristo, que nos foi dada no batismo, na justiça e no amor Dele operantes em nós a serviço dos irmãos, dando um sabor diferente, de alegria, a todo tipo de experiência e de encontro cotidiano.

Mensagem de posse da Arquidiocese de Milão, em 10 de fevereiro de 1980 (in Le Ragioni del Credere. Scritti e Interventi, Mondadori, Milano 2011, p. 6).

Em Jerusalém, nos encontramos, pessoalmente, pela primeira vez: Padre Carlo Maria Martini, professor do Pontifício Instituto Bíblico, mantinha habitualmente um semestre de ensino na Terra Santa; e eu aproveitava um período sabático de alguns meses para aprofundamento do estudo do hebraico bíblico. Naquela época, já familiarizado com seus estudos exegéticos, que sempre me impressionavam pela rara capacidade de ressaltar a "letra" de maneira a penetrar melhor no "espírito” da Escritura.

Estávamos no Instituto Bíblico, na Cidade Nova, para conversar ou jantar juntos, porque o padre Martini estava interessado na “leitura orante”, um texto que tinha publicado sobre a prática da lectio divina. Destas reuniões e encontros nasceu uma amizade profunda. Voltando ambos para a Itália, padre Martini nunca deixava de passar em Bose, quando, de Roma, visitava sua família em Turim: oração comunitária, às vezes refeição fraterna, e sempre a solicitude pela Igreja de Deus, que era o amávamos compartilhar.

Sua nomeação de arcebispo de Milão mudou os tempos e os modos dos encontros, assim como seu ministério, mas não o coração de cristão e pastor. Durante os longos anos de bispo e, depois, os do progressivo enfraquecimento, continuamos nos encontrando algumas vezes por ano, não só para iniciativas, como a Cattedra dei non credenti, nas quais ele queria me envolver, mas para momentos de análise, no arcebispado em Milão, de algo que estava no coração de ambos, a presença da Igreja na sociedade contemporânea, o impacto do Evangelho na vida cotidiana de hoje, tanto na Itália como no mundo. Quando ele visitava-me em Bose, admirava sua delicadeza e carinho com os irmãos e irmãs da Comunidade, particularmente com aqueles vindos da Diocese de Milão, que tinham percorrido o caminho, como cristãos adultos, sob sua orientação pastoral: tinha palavras de encorajamento e de confiança, lampejos de visão ampla, pensamentos e palavras cheias de parrésia evangélica e macrothymia, capacidade de pensar grande, de oferecer um respiro de dimensão humana.

Encontrar o cardeal Martini sempre foi, para mim, voltar-se ao essencial do significado de sermos homens da Palavra: lida, estudada, meditada, orada, amada, a Palavra de Deus era para ele "lâmpada para os seus pés e luz para o seu caminho" e foi também, e por esta razão, chave de leitura do agir cotidiano, lugar de escuta, de discernimento e de visão profética. Mas o aspecto ainda mais impressionante de seu ser homem, cristão, bispo da Palavra, emergia da sua grande capacidade de ouvir: o diálogo com ele era saborear o um bom ouvido e um coração quente, descobrir o que significa pensar e rezar antes responder, colher o não dito a partir das poucas palavras proferidas pelo interlocutor, compreender os silêncios. A partir dessa escuta atenta da Palavra e do interlocutor, eu vi nascer, no Cardeal Martini, a capacidade dos gestos proféticos, a solicitude pela Igreja e pela sua unidade, a proximidade aos pobres, o ser próximo aos distantes, o diálogo com os não-crentes. Podia colher nele uma das raras figuras de eclesiásticos sem táticas, estratégias ou cálculos do governo, mas a vida de Cristo e em Cristo, posto como chave de leitura da existência de cada batizado e do seu ministério pastoral, desde sua mensagem à diocese, no dia em que tomou posse.

Permitam-me concluir esta lembrança recordando sua última visita a Bose, quando suas forças já começavam a abandoná-lo, mas sem atacar minimamente sua lucidez e sua paixão pelo Evangelho e pela "corrida da Palavra" entre os homens e mulheres do nosso tempo. "Já vejo diante de mim a vida eterna - disse-nos com grande simplicidade e força – por isso vim para dar-lhes o meu último adeus, meus agradecimentos ao Senhor por esta longa amizade em Seu nome: conto com suas orações e seu afeto". E assim, como um pai cheio de solicitude, falou da morte e do morrer, da ressurreição e da vida: "Nós morremos sós! Todavia, como Jesus, quem morre em Deus sabe-se bem acolhido nos braços do Pai, que no Espírito, preenche o abismo da distância e faz nascer a eterna comunhão de vida. À luz da ressurreição de Jesus podemos intuir alguma coisa do que será a ressurreição da carne. A antecipação vigilante da ressurreição final encontra-se em toda a beleza, em cada momento feliz e em cada alegria profunda que atinge também o corpo e as coisas".

Ter conhecido e amado o Cardeal Martini, ter vivido o grande dom da sua amizade foi para mim ocasião de felicidade e júbilo profundo, que significou compreender por que os Santos Padres costumavam dizer que os autênticos discípulos do Senhor são sequentiae sancti Evangelii, passagens do Evangelho, narrações do amor de Deus por toda a humanidade.

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