Fascismo, a política oficial do Antropoceno. Entrevista especial com Marco Antonio Valentim

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Por: Ricardo Machado | 31 Outubro 2018

Um nó górdio amarra o Antropoceno ao fascismo. Ambos aniquilam, ao mesmo tempo, o planeta e as formas de vida que dependem diretamente da diversidade ambiental, mas não somente, afinal nós, os metropolitanos, estamos cada vez mais sujeitos à implacável intrusão de Gaia. “O paradoxo do fascismo, que necessita do outro cuja existência se empenha em aniquilar, se revela, desde uma perspectiva ecopolítica, como sendo o mesmo que o paradoxo do Antropoceno: a época do Homem é o tempo de sua própria extinção”, avalia o professor e pesquisador Marco Antonio Valentim, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Conforme podemos testemunhar mundo afora, o fascismo é a política oficial do Antropoceno (assim como o capitalismo, o seu sistema econômico)”, complementa.

Autor do livro Extramundanidade e sobrenatureza. Ensaios de ontologia infundamental (Desterro [Florianópolis]: Editora Cultura e Barbárie, 2018), lançado em julho de 2018, Valentim toma categorias hegemonizadas do campo filosófico, como mundo e natureza, e as coloca em outro lugar. “O mundo reúne tudo o que há de pensável pelo homem. Quanto ao extramundo, ou seja, a um complexo de sentido em que a natureza humana não atua como centro único de referência, é preciso uma estrutura de pensamento completamente outra, capaz de romper com os limites estabelecidos pela Crítica para a esfera do pensável”, propõe.

Se o Antropoceno pode ser interpretado como o fim de um mundo, o fenômeno mostra os sinais de esgotamento também de uma forma de pensar, que tende a sobreviver sob a forma não do espectro, mas do zumbi. “A meu ver, os saberes ancestrais ameríndios, bem como de outros povos extramodernos, se demonstram bem mais capazes de fazer frente à catástrofe dos dias atuais e futuros do que o pensamento ocidental mais contemporâneo, o qual, por sua vez, assim ameaçado, tende cada vez mais a ceder a uma ancestralidade repressora. Num caso, trata-se do pensamento dos futuros viventes; no outro, do pensamento dos mortos-vivos”, provoca.


Marco Valentim | Foto: Reprodução - Youtube

Marco Antonio Valentim graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e realizou mestrado e doutorado em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Realizou estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro. É professor no Departamento de Filosofia da UFPR. Publicou estudos de história da filosofia sobre temas metafísicos, com foco no pensamento de Heidegger, Descartes, Kant, Platão e Hegel. Atualmente desenvolve pesquisa em metafísica comparativa, articulando concepções referenciais da filosofia moderna com ideias ameríndias transmitidas pela etnografia e pela antropologia contemporânea. É pesquisador do SPECIES – Núcleo de Antropologia Especulativa.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como é possível pensar um (extra)mundo e uma filosofia pós-kantiana?

Marco Antonio Valentim – O conceito kantiano de mundo resulta de uma redução da cosmologia à antropologia. Mundo constitui, nesse sentido, o espaço-tempo de desdobramento da natureza humana. Assim, em chave kantiana, o mundo reúne tudo o que há de pensável pelo homem. Quanto ao extramundo, ou seja, a um complexo de sentido em que a natureza humana não atua como centro único de referência, é preciso uma estrutura de pensamento completamente outra, capaz de romper com os limites estabelecidos pela Crítica para a esfera do pensável. Isso não significa subverter o assim chamado “correlacionismo” kantiano pela simples eliminação do polo humano da correlação (como propõe o contemporâneo “realismo especulativo”). Pois uma tal subversão só consuma, por negação, o projeto cosmológico cuja face positiva é o antropocentrismo.

Pelo contrário, romper com esse projeto implica multiplicar os sentidos de humanidade, borrar em múltiplas direções a fronteira entre humanidade e não-humanidade, no sentido de favorecer a concepção e a formação de outros mundos humanos, bem como de mundos extra-humanos. Assim, pensar um extramundo, em sentido pós-kantiano, exige necessariamente abrir o pensamento a outra perspectiva, experimentar sua própria humanidade, supostamente autorreferente, sob o ponto de vista de outrem, ao mesmo tempo extra-humano e diferentemente humano. Trata-se, portanto, de uma revolução contra-antropológica, a ser operada a partir de uma expansão política da cosmologia.

IHU On-Line – Como Deus abandonou seu espaço transcendente para ocupar o interior de cada indivíduo e como isso produziu rupturas importantes nos modos de vida (especialmente no que diz respeito à divisão radical entre cultura e natureza)?

Marco Antonio Valentim – A pergunta faz referência a uma hipótese originalmente elaborada por Eduardo Viveiros de Castro, segundo a qual, na passagem à modernidade, Deus se transfigura com a divisão radical entre natureza e cultura. Menciono essa hipótese em Extramundanidade e sobrenatureza (cf. Prólogo) no contexto de um estabelecimento provisório do conceito de sobrenatureza. A ideia era indicar que, bem ao contrário de superar de todo o sobrenatural, com o banimento metafísico de Deus, o pensamento moderno não fez senão redimensioná-lo, particularmente no sentido da dominação do Homem sobre a natureza. O pensamento moderno é sobrenatural, mágico, mítico – à sua maneira. Seu mito fundador consiste naquilo que Lévi-Strauss chamou de “o mito da dignidade exclusiva da natureza humana”, o qual teria chancelado “todos os abusos”, ao mesmo tempo no sentido do especismo e do racismo. De outro modo, à luz da problemática ecológica contemporânea, poder-se-ia dizer que, transfigurado monstruosamente em Homem, Deus tornou-se o agente por excelência do estado de exceção/extinção que chamamos hoje de Antropoceno, que jamais teria sido metafisicamente possível sem a grande instauração, peculiarmente sobrenatural, da divisão moderna entre natureza e cultura.

IHU On-Line – O que significa dizer que o Antropoceno é o resultado do banquete da constante e ininterrupta canibalização de Gaia?

Marco Antonio Valentim – A afirmação é de autoria do antropólogo Mauro William Barbosa de Almeida. Cito-a nas páginas iniciais do livro para delinear o contexto metafísico em que ele procura se movimentar. Gaia, ou seja, o sistema biogeofísico da Terra, é “canibalizada” pelos agentes do Antropoceno, no sentido do colapso ambiental planetário, mediante a exploração ilimitada das formas de vida que a constituem. Trata-se, em outros termos, do processo maximamente acelerado de entropização do sistema Terra, característico das sociedades que Lévi-Strauss qualifica de “quentes” por oposição às sociedades “frias”, caracterizadas, de seu lado, por uma virtude neguentrópica capaz de sustentar relações minimamente equilibradas com o ambiente.

Segundo Almeida, tal processo é equivalente à dinâmica do Capital, o progresso modernizante pelo qual “plantas, animais e escravos humanos” são literalmente consumidos “para aumentar a energia disponível para classes dominantes e sustentar cidades e impérios”. Enquanto Gaia se mantém pela transformação contínua de energia em informação mediante a proliferação desenfreada de formas de vida, o Capital se instaura com maximização sem limite da transformação reversa, com a redução drástica das formas de vida em função da antivida dos canibais. Mas, assim como o Antropoceno põe em xeque a continuidade da vida da espécie/povo que o desencadeou, assim também a canibalização de Gaia implica necessariamente a destruição autofágica dos seus agentes. O paradoxo do fascismo, que necessita do outro cuja existência se empenha em aniquilar, se revela, desde uma perspectiva ecopolítica, como sendo o mesmo que o paradoxo do Antropoceno: a época do Homem é o tempo de sua própria extinção. Conforme podemos testemunhar mundo afora, o fascismo é a política oficial do Antropoceno (assim como o capitalismo, o seu sistema econômico).

IHU On-Line – De que maneira a composição de uma “história cosmopolítica da filosofia” pode conformar um tensionamento à tendência antropocêntrica e etnocêntrica da historiografia filosófica?

Marco Antonio Valentim – A ideia de uma história cosmopolítica da filosofia é a ideia de uma história em que a filosofia (bem entendido, a consciência espiritual do Ocidente moderno) seja revelada, em seus mais variados desdobramentos, à luz de suas relações internas com outras tradições e mundos de pensamento, que em geral não dispõem de nenhuma voz na história que a filosofia conta a respeito de si, bem como à luz de sua situação “ambiental”, relativa à conexão também interna com outras formas de vida e existência, extra-humanas. Tome-se, por exemplo, o cogito de Descartes, um dos pilares de sustentação da filosofia moderna: sob um ponto de vista cosmopolítico, relativo à divergência entre mundos, a existência autoconsciente de um sujeito soberano está intrinsecamente conectada, ao mesmo tempo como causa e efeito, ao colonialismo – afinal, os grandes inimigos de Descartes não seriam os canibais de Montaigne? – e ao especismo – com efeito, o cogito tem sua necessária contrapartida extra-humana na tese igualmente cartesiana das “bestas-máquinas”, de consequências devastadoras para animais não-humanos.

Subverter o etnocentrismo da filosofia, colocando-a sob o ponto de vista daqueles que ela expulsa para fora de si (ao mesmo tempo em que não hesita em falar em seu nome), implica necessariamente combater seu antropocentrismo, pois aqueles outros se caracterizam por diferentes conceitos e experiências de ser humano (que abarcam, por sua vez, diferentes modos de relação com os não-humanos), e o antropocentrismo moderno sempre foi marcado, a despeito de (ou justamente devido a) suas pretensões universalistas, pela eleição de um tipo próprio e exclusivamente humano. Por tudo isso, a história cosmopolítica da filosofia não será escrita por filósofos (pelo menos, não em primeiro lugar).

IHU On-Line – A propósito, como o conceito de cosmopolítica, que se tornou famoso nos escritos de Isabelle Stengers, transformou-se numa categoria central para pensarmos os desafios à vida e ao pensamento contemporâneos?

Marco Antonio Valentim – Apesar de possuir diferentes versões e aplicações, a referência principal para o conceito de cosmopolítica é a obra de Stengers. Em um ensaio de enorme importância (“The Cosmopolitical Proposal”, 2005), a filósofa elabora o conceito construindo-o por equivocação a partir de e, ao mesmo tempo, contra o conceito kantiano de cosmopolitismo. O que mais me interessou no conceito foi sua dimensão ontológico-política: ao afirmar, contra a postulação “cosmopolita” de um ponto de convergência universal a todos os povos e seus respectivos mundos, a existência “desconhecida” (unknown) de um plano de divergência irredutível entre múltiplos mundos, humanos e não-humanos, o conceito abre a possibilidade de uma outra política, na qual está em jogo a composição, a transformação e destruição mútua de mundos.

Quanto à dimensão ecológica do conceito, ela é explícita na própria formulação de Stengers, que vincula sua proposta a uma “ecologia das práticas”. Além disso, o conceito se encontra numa relação intrínseca com a problemática da “intrusão de Gaia” (cf. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac e Naify, 2015), pois a possibilidade de elaborar conceitualmente o fenômeno dessa intrusão, que é o Antropoceno experimentado desde o mundo ocidental moderno, depende de uma abertura cosmopolítica do pensamento, em particular no que se refere aos modos pelos quais diferentes mundos (ethoi) compõem, por seu próprio conflito, diferentes ambientes (oikoi). Elaborações similares foram feitas, por exemplo, por Marisol de La Cadena, que investiga a “ecologia das práticas através dos mundos andinos” (Earth beings, Duke University, 2015), e Mauro W. B. de Almeida, que elabora o conceito de “conflitos ontológicos” para considerar a guerra entre o Estado capitalista e Caipora na Amazônia (“Caipora e outros conflitos ontológicos”, 2013).

No que se refere precisamente ao vínculo do capitalismo contemporâneo com o Antropoceno, vale lembrar também o livro de Luiz Marques, Capitalismo e colapso ambiental (Campinas: Editora Unicamp, 2015), que, embora não explore a dimensão ontológica do problema, investiga o fenômeno por meio de uma vertiginosa “cosmopolítica” de disciplinas, ciências humanas e naturais. No caso de Extramundanidade e sobrenatureza, o conceito de Stengers inspira decisivamente suas articulações mais importantes, pois meu propósito era, sobretudo, realizar especulativamente uma passagem entre mundos de pensamento divergentes e mesmo incomensuráveis, cujo choque exprime a catástrofe antropocênica e, ao mesmo tempo, suas possíveis linhas de fuga.

IHU On-Line – Os dois termos da primeira parte do título de seu livro – Extramundanidade e sobrenatureza – produzem, por si próprios, um deslocamento semântico. Mas a que exatamente eles se referem? Como podemos compreendê-los?

Marco Antonio Valentim – Extramundanidade resulta de uma transformação do conceito ontológico-existencial de mundo, tal como este é formulado por Heidegger em Ser e tempo. O filósofo elabora nessa obra uma ontologia cujo centro é o mundo, compreendido como esfera do sentido humano. No que se refere aos entes não-humanos, ele os dirá “intramundanos”, significando com isso o suposto fato de que, apesar de (à diferença do homem) não formarem mundo, eles fazem parte do mundo humano, ocupando aí uma posição ontologicamente subalterna. Ao propor o conceito problemático de extramundano, meu experimento consiste em liberar esses entes, inclusive o humano, das amarras da mundanidade. Considerar a extramundanidade de um ente significa encontrá-lo, como diria Deleuze, “em estado livre e selvagem, além dos ‘predicados antropológicos’”. Mas, obviamente, essa liberdade selvagem implica outras formas de “domesticação”: a possibilidade de mundos em que o homem existente (no sentido de Heidegger) não constitui a referência central.

Logo, extramundanidade diz respeito antes a uma situação variável que a uma condição imutável: não se trata daquilo que jaz além de todo mundo possível, mas, como disse, da possibilidade de um outro mundo, estruturalmente divergente daquele que é tomado como referencial. Assim, por exemplo, as cosmologias ameríndias são, quando comparadas à ontologia fundamental, rigorosamente extramundanas; porém, quando tomadas por si mesmas, revelam sentidos inteiramente próprios de mundo, irredutíveis à mundanidade existencial.

Já o conceito de sobrenatureza foi haurido da antropologia de Viveiros de Castro, na qual é empregado em vista de seu potencial ontológico-político para designar um certo regime de transformação entre humanos e extra-humanos (a rigor, de metamorfose transespecífica). É, sobretudo, tal possibilidade contra-ontológica que se encontra totalmente afastada, por uma questão de princípio, do horizonte especulativo de Ser e tempo. Assim, o que extramundanidade designa como que em negativo (um outro mundo possível que não é o nosso), sobrenatureza o faz positivamente (um certo mundo efetivo em que o nosso não tem lugar).

A articulação entre os dois conceitos – um de origem filosófica, o outro de origem antropológica – perfaz o eixo principal de Extramundanidade e sobrenatureza. Procurei indicar isso adaptando os termos (mundo, natureza, extra- e sobre-) à sua composição na “fórmula canônica do mito” cunhada por Lévi-Strauss (cf. epígrafe). Assim, a primeira parte do livro trata de extra-natureza e sobre-mundo como elementos, expondo assim a grande divisão entre natureza e cultura, habitada por animais e humanos. Por sua vez, a segunda parte tomando como elementos extra-mundo e sobre-natureza, configurando uma zona de indiscernibilidade entre natureza e cultura, povoada de espíritos e espectros. Na passagem entre as partes, animais viram espíritos, e humanos, espectros. Essa é a transformação que o livro busca explicitar mediante o arranjo instável entre aqueles conceitos principais.

IHU On-Line – Como a perspectiva da ontologia infundamental oferece alternativas para o pensamento? Qual o papel da “sobrenatureza” nesse processo?

Marco Antonio Valentim – Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que a ontologia infundamental não constitui nenhuma disciplina nem um projeto de disciplina filosófica. Trata-se de um oxímoro com o qual denominei a operação de descentramento do humano que o livro procura empreender. Uma ontologia infundamental é, a rigor, algo que não existe… Pois não há, em filosofia, discurso mais “fundamentalista” que o da ontologia. Assim, aspirar a uma pluralidade ontológica é, no fundo, encaminhar-se a um pensamento capaz de prescindir do próprio conceito de ser, o qual implica, invariavelmente, a forma de fundamento. Logo, ontologia infundamental é um título provisório para uma disciplina inexistente (e que nem pretende existir como tal). Trata-se de um pensamento que não procura ser “alternativo”, como uma variante do mesmo mundo, mas sim alterado, por contágio com outro mundo.

A sobrenatureza – em seu sentido estrito, a saber, como dinâmica relacional de transformação entre mundos divergentes – é uma potência antifundamental por excelência. O fundamento exige a extinção do sobrenatural enquanto ameaça incompreensível que o acossa de fora (mas também, em muitos casos, de dentro). Experimentar algo como sobrenatural é conhecê-lo como o que faz radicalmente exceção à estrutura ou forma a priori do pensamento. Trata-se, no fundo, do encontro com um pensamento transcendentalmente outro. A sobrenatureza consiste na experiência da multiplicidade transcendental, refratária a toda e qualquer espécie de unificação e normatização. Todo fundamento é sobrenaturalmente contingente: como diz Lévi-Strauss, “isso [o fundamento] não é tudo”.

IHU On-Line – De que maneira o ser, no sentido heideggeriano, exprime um devir-branco?

Marco Antonio Valentim – Essa é uma questão particularmente polêmica, visto que ser, no sentido de Heidegger, jamais equivaleria a um devir, no sentido de Deleuze. Pois devir diz respeito sempre a “movimentos aberrantes”, que contrariam radicalmente a instituição do referencial, fundamental e normativo, como é o caso do Ser. Acontece que, a partir da aplicação do conceito filosófico de devir a cosmologias ameríndias (aplicação empreendida, com enorme rendimento, por Viveiros de Castro e outros antropólogos), ocorreu-me a hipótese segundo a qual o que se toma, do lado ocidental, como Ser não poderia senão ser compreendido, do lado ameríndio, como uma forma, ainda que extrema, de devir: uma transformação-limite que tende ao fim absoluto das transformações, pois ser é a extinção do devir.

Se, do nosso ponto de vista, estamos por princípio condicionados a compreender os devires indígenas como modos de ser, nosso ser mesmo consiste, do ponto de vista indígena, em um modo extremamente problemático de transformação, metamorfose descontrolada ou “baixa antropofagia” (Oswald de Andrade), capaz, no limite, como adverte Davi Kopenawa, de provocar a “queda do céu”, entendida como colapso irreversível da vida na Terra. Se, como propõe Heidegger, existir em vista de si mesmo é a própria forma da relação com o ser em geral, devir-branco é um “mau devir” (Tânia Stolze Lima), pois implica, com o ingresso no ser, a impossibilidade de tornar a devir. Enfim, devir-branco é um conceito com que procurei especular sobre qual seria a situação virtual do conceito existencial de ser, enquanto elemento completamente outro, no pensamento ameríndio. Trata-se, portanto, de um conceito infundamental do branco como polo de uma certa transformação sobrenatural, no caso, da extinção – acontecimento, por sua vez, quase inefável (não fossem os brancos…) do ponto de vista indígena.

IHU On-Line – Qual a importância de levar em conta os saberes ancestrais ameríndios na produção do pensamento contemporâneo?

Marco Antonio Valentim – Permito-me divergir um pouco da formulação da pergunta, pois ela parece contar com uma oposição estanque entre ancestral e contemporâneo. É que, a meu ver, os saberes ancestrais ameríndios, bem como de outros povos extramodernos, se demonstram bem mais capazes de fazer frente à catástrofe dos dias atuais e futuros do que o pensamento ocidental mais contemporâneo, o qual, por sua vez, assim ameaçado, tende cada vez mais a ceder a uma ancestralidade repressora. Nada mais contemporâneo, face ao Antropoceno, do que, por exemplo, a memória ancestral das idades da Terra que o xamanismo yanomami mantém e reelabora constantemente. Nada mais obsoleto, face ao mesmo acontecimento, do que a pós-história proclamada pelos avatares da filosofia aceleracionista. Num caso, trata-se do pensamento dos futuros viventes; no outro, do pensamento dos mortos-vivos.

A importância de levar a sério saberes como os dos ameríndios reside, como afirma Lévi-Strauss, no fato de que nossa própria sobrevivência, espiritual e física, depende de algo assim. Tudo o que nos falta em termos de “abertura ao Outro” e capacidade ecopolítica concernem diretamente aos princípios da sua sabedoria. Conforme diz Kopenawa, no dia em que não houver mais xamãs, o céu cairá: não porque os Yanomami sejam o povo mais importante da Terra, mas porque a sabedoria extra-humana que os xamãs yanomami ainda portam e transmitem, resistindo a todo custo ao seu extermínio pelos brancos, está à altura de compreender as profundas transformações pelas quais o planeta passa atualmente. Qualquer um pode fazer a experiência: compare-se A queda do céu aos mais importantes dos ainda raros discursos filosóficos contemporâneos sobre o Antropoceno. A diferença, em termos de amplitude de horizonte e complexidade de diagnóstico, é acachapante. É como se só pudéssemos entrever o que realmente está acontecendo, em termos de suas razões e consequências mais profundas, através dos olhos dos outros. Como propõe Viveiros de Castro em seu prefácio ao livro de Kopenawa & Albert, a nós, que nos tornamos alienígenas em nosso próprio planeta natal, é preciso, mais que nunca, reconhecer, mundo afora, a “contemporaneidade absoluta” do pensamento indígena.

IHU On-Line – Como foi o processo de construção do seu livro Extramundanidade e sobrenatureza? Por onde ele transita?

Marco Antonio Valentim – Atinei para a possibilidade de compor um livro reunindo ensaios sobre a divergência metafísica entre Ocidente moderno e América indígena em meados de 2013, após a realização de um estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, sob a supervisão de Viveiros de Castro, dedicado ao estudo da problemática ontológica no pensamento ameríndio. O projeto seguiu instável e hesitante por vários anos, enquanto meus estudos se aprofundavam confusamente em mais de uma direção. Até que aos poucos uma estrutura foi se consolidando. Foi quando percebi que o livro poderia, ou mesmo deveria, consistir na escrita da passagem dos meus estudos críticos sobre a ontologia fundamental de Heidegger, que a essa altura haviam chegado a um limite intransponível, e meus estudos ainda incipientes de ontocosmologia ameríndia.

Daí para frente escrevi os textos restantes já tendo o livro em perspectiva. A isso se acrescentou ainda um remate decisivo, proveniente de novos estudos de pós-doutorado, dessa vez sob a supervisão de Déborah Danowski, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio, sobre a relação entre metafísica e termodinâmica no Antropoceno. Com base nessas fontes, o livro transita constantemente entre ontologia moderna, antropologia contemporânea, cosmologia ameríndia e cataclismologia (ocidental e indígena). Sobretudo, ele jamais teria sido gestado sem a leitura de A queda do céu, publicado originalmente em 2010. Outra influência muito importante foi a obra do filósofo argentino Fabián Ludueña Romandini, particularmente devido à sua escatologia espectrológica. Ademais, devo mencionar como circunstância fortemente favorável à escrita do livro, bem como aos estudos que lhe deram origem, a interlocução no species – núcleo de antropologia especulativa, o qual fundamos, Alexandre Nodari, Flávia Cera, Miguel Carid Naveira, Vinícius Honesko, Juliana Fausto e eu, no primeiro semestre de 2015, na UFPR. O livro deve demais ao cultivo de “ciências inumanas” que praticamos, junto a vários outros colegas, no âmbito do species.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Marco Antonio Valentim – Terminei a escrita do livro nos idos de março deste ano, quase simultaneamente ao assassinato de Marielle Franco – acontecimento que revela, entre muitos outros desde então, e também antes disso, a captura do Estado brasileiro pela máquina de guerra do fascismo. O livro se encerra apontando para a relação constitutiva que há entre fascismo contemporâneo e Antropoceno.

Como escrevo estas linhas logo antes do que pode vir a se configurar como sendo a captura definitiva, com consequências devastadoras para a vida dos povos no Brasil, para suas terras e até mesmo para o planeta (já que está em jogo nada menos que a sobrevivência próxima da Amazônia), é inevitável que eu me questione sobre o sentido do imbricamento entre o pensamento escrito e o acontecimento, feito de vidas e espíritos, ao qual ele procura de algum modo corresponder. Pode-se escrever para que as coisas aconteçam; também é possível fazê-lo para que elas jamais sucedam. Só agora me dou conta de que o fiz, em grande medida, pelo segundo motivo.

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Fascismo, a política oficial do Antropoceno. Entrevista especial com Marco Antonio Valentim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU