O homem tecnológico: protagonista ou vítima?

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24 Março 2023

As tecnologias da informação e da comunicação mudaram nossos estilos de vida: a dimensão onlife descreve uma condição humana em que os limites da realidade são dilatados pelos espaços informacionais da web.

A reportagem é de Paola Zampieri, publicada por Settimana News, 23-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

A nossa autonomia tecnológica, porém, é a outra face de uma dependência. Tornamo-nos consumidores e produtores de imagens e informações, unidos, por outro lado, pelo destino de sermos, todos nós, objeto de uma cotidiana classificação, que monitora cada nossa mínima atividade, transformando-nos em uma invisível mercadoria de troca, que alimenta o processo econômico que nos faz desfrutar da suposta gratuidade da web.

O perigo do outro lugar

Adriano Pessina (Professor de Filosofia Moral na Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão) falou sobre essas questões em Pádua na palestra "Inteligência artificial e condição humana. Questões em aberto”, que proferiu na aula inaugural em 8 de março de 2023, com a qual a Faculdade Teológica do Triveneto abriu seu décimo oitavo ano de atividade.

Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos

“Toda concessão tecnológica – disse – é uma concessão a alguém que se encontra em outro lugar e marca uma nova forma de heteronímia sutil e invasiva”.

O debate sobre as fake news e sobre a pós-verdade “nos fez entender que somos muito mais crédulos do que imaginávamos na época da suposta emancipação cultural de cada forma de autoridade e poder”.

O outro lugar, aliás, foi o fio condutor do discurso: “A nossa experiência humana está cada vez mais condicionada pela irrupção na nossa vida daquilo que está em outro lugar. A presença contínua daquilo que é ausente, já se tornou a marca da transformação silenciosa da nossa vida”.

O tempo da pandemia foi um acelerador de novas práticas tecnológicas: as mídias sociais e as plataformas como Zoom ou Teams permitiram superar as barreiras espaço-temporais; o Metaverso agora marca a temporada da simulação sensorial, visual, auditiva e em parte tátil em um ambiente virtual tridimensional.

Essa nova presença do que está em outro lugar, mas que condiciona a nossa história pessoal, configura aquele “lugar impróprio” que é o ambiente digital: “Um lugar onde aparecer e fazer aparecer, governado por softwares que expõem e nos expõem, numa sequência sem tempo de representações, imagens e sons, em que tudo é reversível”.

O mundo informacional

É importante entender não apenas o que fazemos com as novas tecnologias, mas o que elas fazem conosco.

Pessina citou Luciano Floridi, segundo quem o onlife está efetivamente desenhando uma nova concepção do humano, sintetizada no neologismo Inforg, que funde as palavras informação e organismo. “Não se trata, como teorizam os pós e transumanistas, – explicou Pessina – de modificar o corpo humano, mas de começar a pensar o homem como uma “entidade informacional” que – como tal – atua, opera e se desenvolve, através do mundo informacional que ele mesmo está gerando com a inteligência artificial. Nesse sentido, a web deveria se tornar um novo espaço para habitar, onde aprender a crescer, desenvolver e cultivar a própria humanidade”.

Uma perspectiva antropológica que também parece encontrar eco em todos os vários projetos de humanização da web. Afinal – pensa-se – um Inforg na rede é, por assim dizer, de casa. “Se essa perspectiva for aceita, como mudará a nossa relação com os lugares e os tempos da vida empírica? Como se transformam as relações humanas substituídas por conexões tecnológicas? Na minha opinião, não são questões a que se possa responder de forma inequívoca – argumentou Pessina -, mas continuam sendo questões decisivas”.

Na última parte do discurso inaugural, o professor da Cattolica (de Milão) propôs uma digressão teológico-filosófica que, acolhendo e desenvolvendo as propostas de Floridi, chegou a afirmar que o que hoje está se desenhando, ou melhor, consolidando, é uma nova era histórica, que Pessina define como da desencarnação da experiência humana.

"Em certos aspectos - disse - a inteligência artificial parece constituir a vingança do platonismo, daquela concepção antropológica que considera o corpo como a prisão de uma alma que aspira a estar em outro lugar e está, no fundo, insatisfeita com o lugar onde se encontra".

ChatGPT e os impactos da inteligência artificial na educação

As novas tecnologias são talvez o exemplo mais evidente da superação dos limites espaço-temporais; na infosfera estamos perante um homem desencarnado que ultrapassou o limiar do espaço e do tempo para expressar a si mesmo no espaço digital, na companhia de uma hipotética inteligência artificial.

Não há experiência humana sem carne

A história do Ocidente, porém, é marcada por um divisor de águas: o antes e o depois do nascimento de Cristo, que, de fato, mediu toda a história da humanidade. “O divisor de águas histórico é também um divisor de águas filosófico - afirmou Pessina -, porque marca, teoricamente mais do que praticamente, o fim daquele império platônico que desconfiava da carne, considerada a prisão de uma alma espiritual que aspirava a uma posição muito diferente”.

E a partir daí, posteriormente, em cascata, muda para sempre a consideração do ser humano, “não mais apenas uma criatura, mas ele mesmo ‘filho’ de Deus que agora podia ser chamado de Pai. E a carne doente deixava de ser maldição e culpa, para se tornar lugar de amor, cuidado, participação, presença de Deus”.

E mesmo o outro lugar da vida, que Platão sonhava como lugar da alma, se abre para a ressurreição dos corpos, para indicar uma unidade do humano que permitia pensar o espírito como a própria forma da corporeidade individual. “Se a história do Ocidente pode ser lida ao longo dessas marcas, a afirmação da Presença da Transcendência na história, que é tese própria da Encarnação, oferece-se, no entanto, como uma reconciliação entre imanência e transcendência, mudando radicalmente a perspectiva: o sentido último da existência e do ser não é em outro lugar e o aqui e agora não é a prisão histórica do humano”.

O nexo com o digital "está no fato de que a era contemporânea reintroduzir, sem grande alarde e sem qualquer pretensão filosófica, uma imagem desencarnada do humano e da sua experiência existencial".

Para privar de significado o espírito, é suficiente transformar o homem numa genérica máquina informacional que se conecta e se relaciona com tudo sem implicar o obstáculo da substância individual, da subjetividade pessoal. “No fundo, hoje, ser apreciadores da diferença ontológica do homem, do seu excedente espiritual, da sua diferença com toda máquina, exige reivindicar o valor da corporeidade, porque o unicum do indivíduo não existe sem carne. De fato, é dentro da carne que geramos e é dentro de um ventre carnal que tomamos forma”.

Não há experiência humana sem carne: nenhum ser vivo pode habitar um espaço digital.

“Esta digressão, obviamente, não legitima qualquer condenação teológica ou filosófica da tecnologia, mas impõe um redimensionamento das suas promessas e das suas funções. Buscar na rede o que não podemos encontrar na realidade e vice-versa, modular a realidade de acordo com a rede e as novas tecnologias - concluiu - implica definitivamente uma perda de realismo. Mas também uma perda de carne e de encanto e, talvez, de humanidade”.

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